Índice
Índice
Boaventura de Sousa Santos tem sido muito criticado ao longo dos anos por duas vias diferentes. De um lado, a fileira científica, com António Manuel Baptista e Sokal à cabeça; do outro, a comitiva política. Ora, o que é mais curioso é que poucas vezes os dois campos se misturam.
Aqueles que criticam a concepção de ciência de Boaventura de Sousa Santos desmerecem as suas teses do ponto de vista científico – estão interessados em mostrar que o nosso eminente sociólogo não percebeu Einstein ou Godel, mas estão pouco interessados na sua sociologia do direito. Os seus adversários políticos, por outro lado, dizem pouco às suas ideias de paradigma científico e aos seus discursos sobre física.
Isto é especialmente estranho porque, para Boaventura de Sousa Santos, os dois campos são indissociáveis. A própria política deriva da sua ideia de ciência, da ideia do que significa uma “ciência pós-moderna”. Como ele explica, o nosso tempo é um tempo de transição, isto é, um tempo em que há ainda uma distância entre o modo de viver e aquilo que são as descobertas da ciência, um tempo em que o social ainda não acompanha o científico.
Ou seja, há de facto, para Boaventura de Sousa Santos, um nexo entre a ciência e a sociedade. Do mesmo modo que o contrato social assenta numa visão do mundo herdeira de Galileu e da Ciência moderna, a nova forma de comportamento social será, completada a transição, herdeira de Einstein.
Isto é reforçado, explica Boaventura, por causa do paradigma de que estamos a sair. Como o paradigma moderno é um paradigma em que a ciência é dominante, a sociedade comporta-se em função da ciência. Ora, é esta ciência, que escorou o modelo das sociedades nos últimos séculos, que Boaventura de Sousa Santos acredita estar em crise.
Esta ciência, explica ele, tem um modelo autoritário – o conhecimento racional, de método científico, é o único válido – e global: isto é, construiu-se um “modelo global de racionalidade científica” que transformou o método científico no metro de todos os outros. As ciências sociais passaram a fazer-se, ou aplicando os métodos das ciências exactas aos fenómenos sociais – como no caso do positivismo – ou por oposição ao eles (caso da fenomenologia mais clássica).
Ora, o que Boaventura quer demonstrar, tanto no seu famoso Um discurso sobre as Ciências, como na Introdução a uma ciência pós-moderna, é a crise desta ciência. Em primeiro lugar, porque alguns dos pilares da racionalidade científica foram postos em causa pela própria ciência dos últimos anos. O espaço e o tempo tidos como absolutos, por exemplo – isto é, a ideia de que espaço e tempo não são variáveis, de que o mesmo fenómeno, nas mesmas circunstâncias, se repete porque o espaço e o tempo, por si só, não são categorias transformadoras – são abalados pela relatividade de Einstein; ao mesmo tempo, cria-se, mesmo entre os cientistas, a ideia de que há uma arbitrariedade nas regras científicas que não é dada pela realidade. A Natureza responde às perguntas que lhe são feitas porque as perguntas são essas e não outras; encontrar na Natureza o número, por exemplo, depende de quem olha, não da Natureza. A ciência não é exactamente real, está mais dependente do sujeito do que do objecto. É “autoconhecimento”, “autobiografia”. É assim, para continuar nas expressões caras ao nosso sociólogo, “um discurso”, uma narrativa.
A ciência pós-moderna
Daí que, para Boaventura de Sousa Santos, a nova ciência, ou ciência pós-moderna, seja acima de tudo uma consciência de que a Ciência é Narrativa. O primado científico da pós-modernidade está então, naturalmente, nas ciências sociais. São estas que se dedicam a analisar aquilo que a ciência também é: um discurso Humano, baseado em estruturas escondidas que as ciências sociais se dedicam a revelar. A verdadeira ciência pós-moderna é, assim, aquela que se dedica a perceber quais são os mecanismos que nos levam a pensar a ciência tal como a pensamos; quais são os mecanismos que moldam, sem que nos apercebamos deles, o nosso discurso.
Como diz Sousa Santos, esta nova ciência não dualista, que se opõe à separação entre sujeito e objecto e à ideia de uma objectividade científica, por ser antes de mais consciência dos mecanismos que moldam o meu discurso, é acima de tudo prática. Ao contrário da ciência moderna, construída ao arrepio do senso-comum, a ciência pós-moderna deve entrar no senso-comum. É ele quem o diz:
“Na ciência moderna a ruptura epistemológica simboliza o salto qualitativo do conhecimento do senso comum para o conhecimento científico; na ciência pós-moderna o salto mais importante é o que é dado do conhecimento científico para o conhecimento do senso comum”.
A ciência moderna teria assim contribuído para uma exclusão e para uma definição de fronteiras – conhecimento racional de um lado, senso-comum do outro; a ciência pós-moderna, autobiográfica, seria inclusiva e aberta a todos.
Deixemos aos cientistas a contestação à História que Boaventura de Sousa Santos faz da ciência; a nós interessa-nos mais realçar dois pontos neste discurso que são típicos da nova esquerda. A ideia de que há estruturas que moldam o nosso modo de pensar até pode ser interessante, e não é necessariamente característica da Esquerda; tanto De Maistre como Bonald usam o exemplo da linguagem para mostrar como o Homem não nasce só, está inserido num mundo que já está em curso, e em que as próprias regras formam o Homem. Boaventura, porém, olha para isto de uma forma diferente.
A Natureza errada
O que é curioso na interpretação que a esquerda faz deste princípio é a assunção de que aquilo que nos é dado está, por si só, errado. Os elementos já avançados por Boaventura seriam suficientes; ele, no entanto, vai mais longe. Explica ele que o senso-comum tem como função “reconciliar a consciência social com o que existe”; é, por isso, naturalmente conservador e um lacaio da opressão. As estruturas que moldam o nosso pensamento – o discurso natural, o discurso científico – precisamente por serem discursos que subordinam o modo de ver as coisas, são já discursos errados. O que interessa na ciência moderna, para Boaventura, não são as conclusões; o facto de se tratar de uma ciência não-crítica, isto é, de uma ciência que está a olhar para outros objectos e não para os seus próprios fundamentos, faz dela já uma ciência errada, uma ciência opressiva.
Não passa pela cabeça, quer de Boaventura, quer de outros pensadores da Nova Esquerda, a ideia de que haja uma estrutura natural precisamente por corresponder à Verdade. O ónus da prova é completamente torcido. Percebe-se melhor o raciocínio a partir de um famoso debate teológico: a questão de haver no Homem uma tendência Natural para acreditar em Deus serviu, durante muitos anos, para sustentar a Sua existência; não só porque o mais pequeno não pode pensar no maior sem exemplo d’Ele mas sobretudo porque, caso Deus existisse, o natural seria que o Homem o pudesse conhecer. Será legítimo afirmar que a pulsão natural para Deus não prova a sua existência; mas o mais cómico na Nova Esquerda é a ideia de que esta pulsão é prova da sua falsidade. As estruturas que não controlamos são estruturas opressivas e, por isso mesmo, estruturas que se devem abater. A destruição do Natural como opressivo é, assim, um dos grandes desígnios da Nova Esquerda.
Há outro aspecto, porém, menos falado mas igualmente curioso, que se encontra na tese de Boaventura de Sousa Santos. A ideia, provavelmente com ressonâncias psicanalíticas, passar por tomar o conhecimento daquilo que molda o nosso modo de pensar como grande desígnio do pensar. Isto é, não interessa em que é que pensamos, interessa o que é que nos faz pensar aquilo que pensamos, de tal modo que este passa a ser o único propósito do pensamento. Da mesma maneira que os detractores de Descartes diziam que o método cartesiano servia apenas para descobrir um método que permite descobrir o método, os pensadores pós-modernos também têm como único propósito a construção de uma ciência voltada para se conhecer a si própria.
Esta ideia, aliás, atravessa todo o romance contemporâneo – que deixou de ter acção propriamente dita, para alicerçar o enredo na ideia de que há um trauma oculto que faz o protagonista agir como age – e passa assim para a ciência. Trata-se da forma mais íntima e opressora de relativismo: o pensamento que importa é o pensamento individual; mas de tal forma que a única coisa verdadeiramente individual é pensar sobre si próprio. Não é, aqui, uma atitude diferente da democracia que só permite a existência de democratas, ou da tolerância de Voltaire, que tomava como fanática qualquer ideia que não consistisse na defesa da tolerância. Em que é que se traduz a ciência “autobiográfica”, senão em mais uma serpente a morder a sua própria cauda?
O contrato Social
Explicámos que, para Boaventura de Sousa Santos, a ideia de paradigma implica um certo nexo entre a ciência e a sociedade. Assim, o contrato social aparece como a grande realização política da ciência moderna – com a sua importância, mas também com os seus defeitos. Boaventura, num ensaio interessante chamado “Reinventar a Democracia”, trata desses limites do contrato social para chegar à ideia daquilo que seria uma nova democracia, baseada na nova ciência pós-moderna.
Ora, o Contrato é a metáfora fundadora da racionalidade social e aparece como algo que pode ser escolhido; isto é, como algo que, ao mesmo tempo que surge como uma possibilidade, também marca uma cisão. Este é o modo racional de viver em sociedade, mas é também uma possibilidade apenas. Isto é, há uma tensão entre a sua ideia – de servir para todos – e a realidade – em que pode haver sociedades não contratualizadas. Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, há uma tensão entra a “lógica de legitimação” e a “lógica operativa” das sociedades contratualizadas. O contrato legitima-se por não deixar ninguém de fora, mas na verdade deixa de fora os que não lhe aderem. No fundo, funciona como a ciência – racional, e por isso ao alcance de todos, mas apenas racional, e que por isso deixa de fora todas as formas alternativas de conhecimento.
O contrato social, para Boaventura, cria uma sociedade baseada em três pressupostos: a ideia de um sistema comum de medidas – o dinheiro é apenas o exemplo mais óbvio, por ser aceite por todos como uma forma universal de quantificar aquilo que de outra forma não teria quantificação possível -, a ideia de um regime geral de valores – de que as sociedades devem procurar responder à vontade geral e ao bem-comum, e de que existe esse bem comum e essa vontade geral –, e a ideia de um espaço/tempo bem definido — o contrato diz respeito à sociedade de um determinado tempo e lugar: são as pessoas de agora que legitimam o governo de Portugal, não os Russos de há trezentos anos.
Estes são os três princípios do contrato social, os pressupostos necessários à sua existência. Os seus fins, por outro lado, são a constituição de um governo legítimo, a manutenção de uma identidade colectiva, a segurança e o bem-estar económico.
O espírito de heterodoxia e o pensamento de Eduardo Lourenço
Ora, para Boaventura, não só os fins entram muitas vezes em contradição uns com os outros, como entram também em contradição com os pressupostos. A ideia de um país contratualizado implica a ideia de uma fronteira com uma barbárie, isto é, a contradição do pressuposto do espaço bem definido com a ideia de vontade geral; a ideia de Bem-estar económico, que deu origem à socialização da economia, leva ao descurar da socialização de outros factores: são descurados os grupos sociais (étnicos ou sexuais, por exemplo), que vêem a sua expressão reduzida ao económico.
Ora, a percepção da falência do Estado numa série de esferas da vida leva à crise do Contrato Social. Isto é, o grupo étnico que vê que os seus direitos são descurados pelo Estado, tende a ver o Estado como apenas mais uma esfera da sua vida. Há o Estado, que regula a economia, há a rua, onde se resolvem os conflitos sociais, como pode haver uma série de outras esferas. O Estado torna-se assim mais um entre uma série de sistemas de poder paralelos, o que acaba por enfraquecê-lo.
Percebem-se as ambições de Boaventura que, embora justificadas por outras vias, não são tão diferentes das que alimentavam os sonhos da velha esquerda. O Estado deve ser total, não deve ser regulador de uma única esfera; o papel do “novo” Estado, baseado num “novo” contrato social com mais alcance, passa por assegurar o cumprimento da igualdade e da justiça em todas as esferas. A ideia de vida privada é quase perigosa para Sousa Santos. Mais uma vez, é a nova Esquerda que é verdadeiramente pessimista. Fora do Estado, a sociedade que se constrói é exploradora e bárbara; o Estado acaba por ser a anti-sociedade, aquilo que impede a sociedade de se cumprir. O garante da justiça está no Estado, que se apresenta como o paladino virtuoso da moral social.
Opressores e Oprimidos
O mais curioso na ideia de Boaventura sobre o Estado é que esta é declaradamente utópica. Não há grande problema nisso: de facto, Boaventura escreve sempre sobre aquilo que deve ser o Estado, sobre a ideia de um “novo” contrato social; o que é engraçado, porém, é a diferença entre o novo estado e as dantescas descrições do Estado actual. Este é verdadeiramente opressor (embora ao mesmo tempo seja impotente) e injusto, o que leva a uma curiosa inversão nos termos do seu pensamento.
Isto é, o Estado, tal como se constitui actualmente, é o mais rematado vilão: tem um direito opressor e minoritário, enquanto nas suas costas um “fascismo societal” vai fazendo as maiores manigâncias contra o povo. No entanto, esta sociedade bárbara e paralela não impede Boaventura de falar constantemente do “direito dos oprimidos”, ou de “epistemologias do Sul” – Sul, aqui, é uma expressão vinda do relatório Brandt, que dividia o mundo entre o Norte próspero e explorador e o Sul, por desenvolver à custa da exploração. A justificação é curiosa e típica da Nova Esquerda: para Boaventura, não interessam os comportamentos ou as ideias deste Sul ou destes oprimidos; como o centro das relações sociais está na lógica “opressão/inclusão”, o que interessa, tanto na ciência como na sociedade, é o facto de os comportamentos serem maioritários ou minoritários.
Nos comportamentos minoritários não interessa o seu conteúdo – a violência, o desrespeito, o que seja – porque a tónica é outra. A origem dos comportamentos vem da exclusão, não o contrário. Os povos não são excluídos porque são violentos, mas são violentos porque são excluídos. O comportamento vem da relação de poder, alterada esta, alterar-se-ia também o comportamento. A questão não está, assim, no simples relativismo que habitualmente se atribui à nova esquerda. É certo que os estudos culturais, as quotas raciais, as “dívidas históricas”, se devem também a uma certa banalização da Verdade; mas há mais do que isso: acredita-se, de facto, que o pagamento da dívida alterará o comportamento. A Nova Esquerda quer o poder do povo, sim, mas não por aquilo que o povo é – antes por aquilo em que se transformará quando estiver no poder. É isto que lhe permite falar em nome do povo – porque o verdadeiro povo ainda está por desvendar – e dispensar a realidade das suas teses. A realidade de que fala Boaventura, como tantos outros, ainda não existe.
Resta, no entanto, um problema que ainda terá de ser resolvido. A grande tensão pós-moderna dá-se entre comportamentos maioritários opressores e comunidades minoritárias oprimidas. Como é que o advento das minorias conviverá então com o sistema democrático, assente precisamente no poder da maioria?