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Inácio Rosa/LUSA

Inácio Rosa/LUSA

O espírito de heterodoxia e o pensamento de Eduardo Lourenço

Eduardo Lourenço foi sempre novo porque sempre o comparámos, não connosco, mas com os grandes espíritos da História. Sempre livre, porque vagueava para saber, conhecer e descobrir sempre mais.

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[este artigo foi originalmente publicado em abril de 2018, a propósito da publicação de “Tolos, Impostores e Incendiários” e atualizado após a morte de Eduardo Lourenço, aos 97 anos]

À lente aproximada dos dias comuns, o título ou é tolo ou malvado. De facto, o primeiro livro de Eduardo Lourenço, Heterodoxia I, já ultrapassou sozinho a idade da reforma, o que diz quanto baste da mocidade do autor. A novidade de Eduardo Lourenço, porém, pode ser tomada, não como uma provocação mesquinha, mas como um elogio. Eduardo Lourenço é novo porque o comparamos, não connosco, mas com os grandes espíritos da História.

Mais a mais, a ideia vem de outro lado. Em 2018 foi publicado pela Quetzal o livro Tolos, Impostores e Incendiários – Os pensadores da nova esquerda, de Roger Scruton. Nele, Scruton debate com os grandes figurões da esquerda contemporânea a uma luz que também podemos voltar para os pensadores portugueses. O pensamento pós-marxista não passou apenas por Sartre e Foucault, chegou também aos fundos da Europa: haverá mais, que também merecerão análise; mas entre todos, Eduardo Lourenço será com certeza dos mais importantes.

Eduardo Lourenço, o pensador que abraçou o Portugal das “ilusões”, da “verdade” e da “liberdade”

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A esquerda de Eduardo Lourenço já não é a esquerda jacobina da Revolução Francesa ou da Comuna, nem um instantâneo da cultura soviética. A sua ideia de Heterodoxia, aliás, não podia ser mais clara em relação a isto. Apesar de escrever na revista Vértice, de acompanhar com interesse o neorrealismo e os movimentos de oposição ao Estado Novo, a ideia de Heterodoxia é já uma porta de saída da ortodoxia comunista, do sistema total de Marx e da sua dialética materialista.

“Tolos, Impostores e Incendiários: os pensadores da nova esquerda”, de Roger Scruton (Quetzal)

Nisto, Eduardo Lourenço acompanha as figuras que inspiraram Roger Scruton no seu livro sobre os pensadores da Nova Esquerda. Como Sartre, como Foucault ou como Zizek, Eduardo Lourenço mata o pai para o ressuscitar como irmão. Nunca deixa a esquerda, mas não abdica de lhe propor um código de conduta. A sua não é uma esquerda já construída, mas uma esquerda que ainda pode ser pensada e renovada.

Eduardo Lourenço, porém, tem uma particularidade que escapa a outros pensadores de esquerda. Diante das disputas titânicas de Sartre com Aron, ou da sanha que motivam Chomsky ou Zizek de cada vez que abrem a boca, Eduardo Lourenço foi mais vezes tomado como um pensador consensual do que propriamente como um pensador da Esquerda.

É certo que o seu feitio diplomático ajuda: vemos nas suas análises literárias que há poucos autores contemporâneos a quem Lourenço não dispense uma palavra simpática. Aliás, é vulgar vermos Eduardo Lourenço a alçar figuras de segunda a patamares filosóficos que eles dificilmente alcançariam sozinhos. É difícil dizer, por muito que gostemos de Ruben A. ou de Nuno Bragança, que a Torre de Barbela de um ou a prosa semi-experimental de outro não saem favorecidas da análise de Lourenço. Este espírito, porém, não justifica completamente a aceitação geral do seu pensamento.

Pouco depois de sair Heterodoxia II, Eduardo Lourenço viu-se obrigado, por interposta pessoa, a esclarecer o crítico Óscar Lopes: ele não era, como cria o crítico, um autor católico. Heterodoxias, aliás, podia ser quase tomado como uma forma de explicar porque é que não era católico. Este pequeno episódio não é apenas mais um relato para a biblioteca monumental de erros da crítica; é, acima de tudo, prova dos equívocos a que se pode prestar a obra de Eduardo Lourenço.

Dado o espectro de interesses de Eduardo Lourenço – cuja genealogia ainda está por fazer --, é normal que o seu pensamento seja apreciado em quase todas as frentes. Pode criticar o idealismo Absoluto, o Catolicismo, a Filosofia Portuguesa, o neorrealismo, o comunismo, mas reserva-lhes sempre uma pureza inicial teórica que guarda uma margem de apreço.

Lourenço, para já, tem um método de crítica que favorece a confusão. Enquanto apóstolo da “realidade situada”, é vulgar que a sua crítica a um fenómeno histórico se faça através da restauração de um purismo teórico. Isto é, um tradicionalista pode facilmente julgar Eduardo Lourenço um involuntário “mestre da contra-revolução”, como António Sardinha fazia com Teófilo Braga. Para Eduardo Lourenço, o tradicionalista só tem consciência de si quando os seus valores estão ausentes. Ora, esta ideia, presente na fórmula “a Aristocracia Histórica não era tradicionalista, mas a tradição mesma” pretende, antes de mais, criticar um movimento: a existência de tradicionalistas provaria a falência do Estado Novo como projecto tradicionalista. Claro que, o ensaio também poderia servir para um tradicionalista perceber como os seus valores estavam ameaçados, ou a que é que corresponderia um verdadeiro tradicionalismo teórico. Para Lourenço, porém, a teoria pura não serve ao Homem situado.

A crítica acaba, assim, por funcionar também como pára-raios contra os criticados. Já com os neorrealistas se segue o mesmo método: louva-se o interesse, restaura-se uma intenção inicial e explica-se de que modo é que não foi cumprida, de que modo é que, na realidade, não é verdadeira.

Ora, dado o espectro de interesses de Eduardo Lourenço – cuja genealogia ainda está por fazer –, é normal que o seu pensamento seja apreciado em quase todas as frentes. Pode criticar o idealismo Absoluto, o Catolicismo, a Filosofia Portuguesa, o neorrealismo, o comunismo, mas reserva-lhes sempre uma pureza inicial teórica que guarda uma margem de apreço. E se isto lhe granjeia admiradores em vários quadrantes, lestos a talhar nacos do seu pensamento, obnubila a compreensão daquele que é um dos seus traços principais: o traço de pensador de esquerda.

O espírito de heterodoxia

Eduardo Lourenço é um pensador de esquerda em vários aspectos, e muitos deles fragmentários (marca, aliás, que ele atribui à esquerda como a entende). Há, no entanto, algumas linhas principais que podem ajudar a perceber o pensamento de Eduardo Lourenço, e em que medida é que este pensamento se revela como próprio da esquerda.

A abertura de “Heterodoxia I”, de Eduardo Lourenço, publicado originalmente em 1949

Para começar pelo princípio, uma das linhas mestras é-nos dada pelo título do primeiro livro, que Lourenço retoma mais duas vezes. Heterodoxia, ou o espírito de Heterodoxia, é já de si um programa.

Para Eduardo Lourenço o espírito de Heterodoxia consiste, antes de mais, em recusar um caminho único. Ora, uma das coisas mais interessantes em Eduardo Lourenço é que ele próprio consegue perceber como podem ser fátuas ou perigosas afirmações como esta, que geram aplausos apaixonados desde que não exijam grandes trabalhos de raciocínio. Por isso, é ele próprio que põe obstáculos à sua ideia. A heterodoxia não significa o nihilismo, isto é, não recusa os caminhos. O nihilista julga que todos os caminhos estão errados, o céptico julga impossível saber se os caminhos estão errados, o heterodoxo simplesmente não sabe. Como é óbvio, a heterodoxia como método é igualmente céptica. Mesmo que não o diga, quem escolhe como método não aceitar nem recusar soluções fá-lo porque não acredita que  possa vir a saber que uma solução está certa; como diz o próprio Eduardo Lourenço, “a heterodoxia é a consciência da pluralidade histórica das ortodoxias”.

A heterodoxia parte do princípio de que há algo da verdade que nos está vedado, acha “que ninguém pode atingir adequadamente a Verdade, nem falhá-la completamente”

O problema, porém, está na possibilidade de haver reflexo vital neste nem/nem heterodoxo. Ponhamos, por exemplo, a questão do ateísmo. Que significa o agnóstico – aquele que representa o heterodoxo na querela de Deus, aquele que não escolhe acreditar nem deixa de o fazer? Significa que, a cada momento, terá de viver como se Deus existisse ou não existisse. A ortodoxia, no fundo, não significa mais do que definição. A própria ideia de recusar a ortodoxia já implica uma certeza, uma definição: o Homem vive como se não houvesse um único caminho, é esta a sua definição. O próprio Eduardo Lourenço admite que “a luta é sempre entre ortodoxias” e que as heterodoxias criam a sua própria ortodoxia. A definição é própria da razão, é própria do Homem.

Já Zizek, no seu recente “A Europa à deriva”, notou o espantoso elitismo da esquerda contemporânea. Ora, este elitismo já se revela na linguagem de Eduardo Lourenço no prólogo sobre o espírito de heterodoxia. A heterodoxia torna-se, de um método, num valor; além de não ser “fácil”, passa também a ser “o respeito”, a “humildade de espírito”, e isto em condições adversas.

Eduardo Lourenço admite-o, embora com matizes que lhe permitem dar um salto. Isto é, admite que a ortodoxia é própria do Homem, porque oferece paz e continuidade, o “desejo mais profundo do Homem”. Ora, colocar a ortodoxia como desejo e não necessidade permite dar o desejado salto. A ortodoxia é percebida como uma tendência e a heterodoxia o espírito que a contradiz. A heterodoxia “não é fácil”, é desinquietação e é contrária à tendência natural do Homem.

É desta fórmula, aliás, que ressumbram dois aspectos típicos da esquerda e contrários à sua genealogia. Em primeiro lugar, o repúdio por aquilo que é natural no Homem. Também o estruturalismo fala de estruturas reaccionárias ocultas de que o Homem tem de se libertar, também as forças da reacção no marxismo mais canónico são estranhamente persistentes, também no feminismo de Simone de Beauvoir o caminho é de desmontagem. A esquerda não é apenas herdeira de Rousseau, ou pelo menos interpreta muitas vezes o seu estado de Natureza num sentido ultra-estrito. O Homem como ele é, na concepção da nova esquerda a que se associa o espírito de heterodoxia, deve ser desconstruído.

Ora, daí surge que aqueles que o desconstruíram, que foram contra a sua natureza reaccionária, formam uma plêiade de eleitos. Já Zizek, no seu recente “A Europa à deriva”, notou o espantoso elitismo da esquerda contemporânea. Ora, este elitismo já se revela na linguagem de Eduardo Lourenço no prólogo sobre o espírito de heterodoxia. A heterodoxia torna-se, de um método, num valor; além de não ser “fácil”, passa também a ser “o respeito”, a “humildade de espírito”, e isto em condições adversas. Os heterodoxos não só atravessam um longo e duro caminho contra si próprios, como ainda são humildes e suportam os ortodoxos, aqueles que os desdizem. Não se trata apenas do discurso da vítima sofredora já denunciado por Girard; esta narração permite colocar os eleitos, ao mesmo tempo, entre os sofredores e os oprimidos, isto é, no lugar que a esquerda toma como seu.

Scruton, no seu livro sobre a nova esquerda, explica como o intelectual se foi transformando, pouco a pouco, de “voz do operário” no próprio operário. Ora, o discurso sobre o espírito de heterodoxia – que tem ramificações artísticas na arte marginal, nos escritores malditos… — é mais uma das etapas deste caminho.

Eduardo Lourenço

O caminho do heterodoxo é ao mesmo tempo um caminho especial e um caminho sofrido. A estrutura natural empurra o Homem para um lugar de que o heterodoxo, numa luta titânica do indivíduo contra algo maior e mais forte, consegue superar.

Não negaremos, decerto, a existência destas estruturas superiores. De Saussure a Barthes, já vários pensadores explicaram com suficiente consistência de que forma a linguagem molda o pensamento, ou de que forma a sociedade é importante para a formação de uma personalidade, mesmo que ela não tenha consciência disso. Este, no entanto, é mais um dos aspectos em que o pensamento da nova esquerda se podia aproximar daquele que professam os teóricos da direita tradicional. Não por acaso, tanto Bonald como De Maistre procuram a mesma analogia entre o comportamento social e o funcionamento da linguagem que é feita, anos depois, pelos grandes pensadores do estruturalismo. O que é curioso é que aquilo que os tradicionalistas vêem como um indicador de Verdade, Barthes e companhia vêem como um indicador de mentira.

Para De Maistre, a estrutura indica o caminho; para Barthes, como para Eduardo Lourenço, a estrutura é o grande opressor. A filosofia deixa-se contaminar por uma narrativa marxista sem fundamento. O que é que prova a maldade da estrutura senão o facto de se apresentar como superior. Barthes aplicou a fórmula – os fortes são a reacção, os fracos a revolução – e tornou a estrutura, arbitrariamente, um mal em si mesmo. Eduardo Lourenço também nunca justifica, filosoficamente, a maldade social; no entanto, a sua predilecção pela liberdade como valor supremo parece indicar o caminho. O homem heterodoxo é o Homem livre; se a estrutura condiciona, impede o Homem de ser livre, pelo que é vista como inimiga.

Livre para não poder ser mais nada

No seu primeiro volume das heterodoxias, Eduardo Lourenço identifica plenamente heterodoxia com liberdade. Para ele, “heterodoxia não é senão a obrigação de suportar a liberdade humana”. É certo que mais tarde admitirá a possibilidade de um ortodoxo livre; a inversão, porém, nunca será feita: é impossível que um heterodoxo não seja livre. A heterodoxia identifica-se, assim, como liberdade. A liberdade é sempre situada. É, aliás, o obstáculo que cria a liberdade. Numa parábola curiosa, Eduardo Lourenço mostra bem a sua estranha concepção de liberdade. Imaginemos dois Homens que querem chegar de uma encruzilhada a uma cidade. Um deles sabe o caminho, o outro não. O Homem que sabe o caminho estuga o passo e chega à cidade sem hesitações. O outro erra, vagueia, perde-se, hesita. Em todas as tradições filosóficas, o homem livre seria o primeiro. Se a liberdade consistir em fazer o que se quiser, o Homem quer chegar à cidade, pelo que, tendo meios para isso, é livre se conseguir chegar à cidade. Se o que nos torna livres é fazer o que nos é próprio, também será este o Homem livre. É na cidade que o Homem está livre, o caminho só pode impedi-lo de ser livre, caso não consiga chegar à cidade.

Para Eduardo Lourenço, porém, o Homem livre é o que vagueia. É o não saber, o obstáculo, que o obriga a decidir, a escolher. Para lá de todos os afagos à ideia de resistência presentes nesta ideia – os resistentes são os Homens livres, aqueles que lutam por remover o obstáculo opressor – há também nesta posição um esquecimento curioso. Poderíamos considerar livre aquele que vagueia, sim, mas apenas se ele não tivesse objectivo, isto é, se não tivesse obstáculo. A liberdade, aqui, é vista como um fim em si mesma; é, como já em Voltaire, uma liberdade opressora. O objectivo, para Eduardo Lourenço, é uma ortodoxia. Querer alguma coisa tira-me a liberdade; esta, para ser vivida como tal, tem de ser exclusiva: querer alguma coisa é já contrário à ideia de liberdade. Como no projecto iluminista, os Homens são livres de serem livres, mas não de serem mais alguma coisa.

Diz Eduardo Lourenço que Portugal falhou a Reforma, a criação da físico-matemática e a filosofia cartesiana e que, por isso, ficou arredado da cultura Universal (a única cultura que o é verdadeiramente, por ser para cada um). Esta ideia será retomada no Labirinto da Saudade em que mais uma vez se explica que, por não termos contribuído enquanto indivíduos para a ciência, falhámos o seu espírito, o espírito crítico.

Eduardo Lourenço usa outras formulações um pouco mais canhestras. “Livre é aquele que não faz o que é contrário à consciência da sua vontade”, por exemplo, que não nega a ideia anterior mas, num espírito de Pilatos, permite recuperar o melhor dos dois mundos. Por um lado, percebe que o Homem que faz o que quer é apenas escravo da sua vontade; por outro, a formulação negativa aproxima-o do espírito da heterodoxia, do “não” que a resistência e a nova esquerda querem erigir como sistema. A liberdade não consiste em fazer alguma coisa, mas em não fazer. Como no espírito iluminista mais lúcido, a liberdade só pode ser céptica, negativa, não pode construir nenhum projecto.

Esta ideia de que a liberdade se encontra à margem dos grandes objectivos da História e do Homem é tão importante que a principal unidade do seu Heterodoxia I está, então, na maneira como as várias ortodoxias – encapotadas ou não – cerceiam a liberdade.

Dialética: a fénix política

A cultura portuguesa serve de exemplo no caso mais óbvio. Diz Eduardo Lourenço que Portugal falhou a Reforma, a criação da físico-matemática e a filosofia cartesiana e que, por isso, ficou arredado da cultura Universal (a única cultura que o é verdadeiramente, por ser para cada um). Esta ideia será retomada no Labirinto da Saudade em que mais uma vez se explica que, por não termos contribuído enquanto indivíduos para a ciência, falhámos o seu espírito, o espírito crítico. Embora Eduardo Lourenço não reduza o espírito de heterodoxia a um mero espírito crítico (mas também não explica em que é que são diferentes), há semelhanças óbvias entre eles: o não aceitar o que é imposto, a procura constante ou a verificação pessoal, que em Portugal só são apanágio de figuras insuladas. Isto não só porque as instituições históricas refrearam o espírito cartesiano, mas também porque, como vem explicado mais uma vez no Labirinto da Saudade, há uma consciência da existência “milagrosa” de Portugal, que acaba por funcionar como escape para a responsabilização pessoal.

Não façamos caso da copiosa relação, apresentada por Domingos Maurício, de livros seiscentistas portugueses que já mencionam os avanços de Descartes; mais do que a verdade histórica, interessa a ideia que Eduardo Lourenço faz de cultura. O atraso português faz-se por oposição à cultura Europeia, que é a verdadeira cultura universal, “o esforço espiritual que se supera aprofundando-se”, e que tomou para limites de si própria os limites do Homem. Isto é importante não só porque a cultura não está definida positivamente – não é a cultura de Sartre ou Sertillanges, mas a “consciência da própria contradição” entre os pensamentos. A cultura europeia é, assim, o lugar da tolerância e o espelho do Homem heterodoxo. Como a Europa, “o Homem é uma realidade dividida. O respeito pela sua divisão é heterodoxia”.

É por isso que a heteronímia pessoana, a desfragmentação, aparece como a grande empreitada literária contemporânea. Pessoa teria percebido este ser ambíguo, contraditório, e a desfragmentação seria a forma de libertar todas as pulsões contrárias que nunca sobreviveriam numa unidade narrativa tradicional.

Diferentes edições de “O Labirinto da Saudade”

Lourenço não só louva este desfazer da unidade, como critica a prisão narrativa existente, tanto na filosofia marxista da História, como no seu aparente contrário – a dialética do idealismo absoluto, que continua a ser totalitário.

Eduardo Lourenço, a respeito da filosofia da história, não se podia distanciar mais do marxismo ortodoxo: de facto, como é que o Absoluto material se manifesta de forma racional criando uma narrativa, que é a forma própria do espírito? No entanto, não está muito longe dos ataques à razão perpetrados por Foucault (embora, fiel ao seu estilo diplomático, Lourenço só critique “um certo tipo de racionalismo”), ou a qualquer tipo de superestrutura que crie unidade.

A relação de Eduardo Lourenço com a dialética, porém, é uma relação feita de reservas e paixões. Se é verdade que a dialética à moda de Hegel é vista como um sistema totalitário, em que o confronto recupera elementos contraditórios dentro de um mesmo sistema, também é certo que Eduardo Lourenço vê na criação dialética uma forma de superar a concepção puramente negativa da heterodoxia. O surgimento do novo a partir do contrário torna o confronto democrático, não uma mera luta entre inimigos à espera que um soçobre, não uma luta entre verdades, mas a ideia de que os pontos de partida não são estanques, que do confronto surgirá uma nova solução, e desta nova solução surgirá um contrário e um novo confronto, que produzirão novas soluções, numa linha soluçante de progresso.

Mais uma vez, não há verdade no Homem, a sua verdadeira essência está no desinquietar-se constante, na desconstrução e no surgir de novo.

A Esquerda e o mito da Origem

Esta maneira de olhar para o Homem é também a maneira de olhar para o social. Isto é claro quando Lourenço critica as imagens irrealistas que Portugal, ao longo da História, vai fazendo de si. Claro que uma imagem colectiva tem de ser unitária e, por isso, generalizante: corresponde a uma tendência, não a um absoluto. Lourenço, enquanto admite que todos os povos têm de criar uma imagem de si próprios, só parece admitir uma “imagem lúcida”, que significaria a consciencialização, a desmontagem, isto é, a imagem fragmentada, que na prática nenhuma imagem pode ser.

É interessante verificar a importância da razão de ser, da origem, no pensamento da Esquerda. Embora as monarquias tradicionais pudessem sugerir que a origem – origem divina do poder, origem dinástica, origens históricas da nação… -- fossem um tema mais ao gosto da direita, a verdade é que há uma recorrência espantosa à origem como legitimidade no pensamento da esquerda.

Segundo Eduardo Lourenço, a esta ficção unitária, típica do nacionalismo que idealiza o povo, poucas vezes escaparam os historiadores portugueses, que tratam a história portuguesa como separada do mundo, quase irreal. Num exercício psicanalítico, Eduardo Lourenço atribui este aspecto ao nascimento milagroso que, ao mesmo tempo que nos dá um estatuto quase profético, de escolhidos, dá-nos também a fraqueza de não termos razão de ser (um raciocínio típico da esquerda clássica, que só vê o fundamento para o poder ou para a existência numa legitimidade de origem, nunca na diuturnidade da existência).

É interessante verificar a importância da razão de ser, da origem, no pensamento da Esquerda. Embora as monarquias tradicionais pudessem sugerir que a origem – origem divina do poder, origem dinástica, origens históricas da nação… fossem um tema mais ao gosto da direita, a verdade é que há uma recorrência espantosa à origem como legitimidade no pensamento da esquerda.

Enquanto na direita de tradição maquiavélica – a direita da Realpolitik – a origem do poder pouco interessa, o que interessa é o facto de existir o poder, enquanto mesmo a direita tradicional do Integralismo ou da Action Française viu no positivismo uma justificação mais poderosa do poder do que em qualquer mito original, enquanto, para os juristas da Restauração Portuguesa, a origem era um entre muitos, e sem especial relevância, argumentos para a legitimidade brigantina, na esquerda o caso é diferente: de Rousseau à esquerda psicanalítica, da nova esquerda das comunidades associativas como redutos puros de defesa do Homem, a origem é o grande fundamento do poder. Não interessa que o povo erre – é ele a fonte do poder, é a sua única medida; não interessa o que o Homem quer ser – há debaixo da construção algo que ele verdadeiramente é, que está na sua origem e que se impõe ao Homem como verdade sobre si próprio.

A liberdade de Eduardo Lourenço padece também deste mal. Até pode ser o grande reduto do Homem, mas se tem como fito ser preservada, em prejuízo da vontade, então esta liberdade heterodoxa é bem opressiva.

Carlos Maria Bobone é licenciado em filosofia

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