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Óscar e Maria Monteiro Torres: uma história de amor em sete cartas perdidas

Durante um ano Maria escreveu cartas a Óscar Monteiro Torres. Nunca lhe foram entregues, nem Maria as recebeu de volta. Cem anos depois, a única — e última — descendente direta do aviador leu-as.

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No segundo andar do número 25 da Avenida Defensores de Chaves, em Lisboa, Maria escreveu a Óscar. Sete cartas, desde o dia em que soube que o avião que o marido pilotava tinha sido atingido pelos alemães, na Grande Guerra. Os envelopes estiveram fechados durante cem anos, até que foram encontrados pela investigadora e jornalista Maria José Oliveira.

Esta é a história de Maria e Óscar e da família que deixaram: a filha Vera, a neta Maria Ruth e a bisneta Sabria, que guarda consigo o espólio da família. Com ela chegará ao fim o nome de Monteiro Torres; a ela regressaram as cartas que o bisavô nunca leu. Cem anos depois.

Partir para a Guerra

É a toque de espada que o republicano Óscar Monteiro Torres, oficial de cavalaria, se trava de razões com Cristóvão Aires, militar, jornalista e monárquico. O duelo começou às 18h30 do dia 16 de junho de 1915, na Estrada da Ameixoeira, em Lisboa. No Diário de Lisboa, num relato publicado em 1945, que recordava o dia em que os dois se enfrentaram, Óscar é descrito como um homem “alto e aprumado, com qualquer coisa de aligero como só o tem os homens alados”.

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De frente, Óscar Monteiro Torres, de costas Cristóvão Aires, no duelo que travaram @D.R.

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Assistiam “centenas de populares” e ao largo “haviam parado sessenta e três automóveis”. Depois de um relato exaustivo do jornalista Artur Portela, que incluía a forma como cada um dos duelistas estava trajado, o desenlace: “Enfim, no segundo minuto, do sétimo assalto, o sable de Óscar Monteiro Torres corta numa ferida de seis centímetros o antebraço do antagonista. Os médicos suspendem o combate. Já a correr o sangue — aquele que deixa a honra imaculada. A multidão abandona calada o local”.

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Nas publicações da época — Ilustração Portuguesa e A Capital — nunca é bem explicada a razão que leva os dois homens a enfrentarem-se na Ameixoeira. “A pendência motivou-a uma troca de cartas publicadas na imprensa e em que os dois contendores se consideraram ofendidos”, refere, sem mais nada, o texto da Ilustração Portuguesa.

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Mas o que os separou durante os anos que se seguiram é conhecido: Óscar era defensor da intervenção portuguesa na Primeira Guerra Mundial, Cristóvão Aires era um adepto da não beligerância. E os dois continuaram a bater-se na defesa dos seus ideais.

Com a chegada de Norton de Matos a ministro da Guerra, em junho de 1915, Óscar Monteiro Torres passa a ser seu secretário, com um papel ativo na criação e preparação de uma força expedicionária, caso Portugal entrasse oficialmente na guerra.

Só que a Óscar não chega esse papel de bastidores. Quer juntar-se à aviação e por isso sai do país e parte para Inglaterra para tirar o brevet de piloto. Fá-lo com nota de 20 valores e ainda passa por França para aperfeiçoar o voo. Regressado a Portugal, começa a organizar a Escola de Aviação portuguesa, em Vila Nova da Rainha, já a Guerra decorria há quase dois anos.

Em março de 1916 a Alemanha declara guerra a Portugal e, a partir daí, há de facto uma determinação total do Governo, que começa a preparar a intervenção no “front” europeu, como Óscar tanto queria. Em janeiro de 1917, os soldados do Corpo Expedicionário Português começam a partir para a Guerra. Mas os aviões não chegam e Óscar desespera em terra.

Óscar Monteiro Torres em 1910 @D.R.

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Nos jornais republicanos apela-se à organização da aviação de guerra e questiona-se por que razão os aviadores portugueses não combatem. “O que está fazendo em França a missão de aviadores que d’aqui partiu em dezembro, para se instruir na aviação de guerra n’um aerodromo inglez? Está ainda n’esse aerodromo? Já vimos ha dias que não. Os quatro aviadores teem sido empregados, nos ultimos mezes, a descarregar vapores no porto onde desembarcam as nossas tropas, a descarregar os comboios que conduzem as mesmas tropas para o campo de concentração. Ha mais de trez mezes que realizaram os seus ultimos vôos, como observadores de pilotos inglezes, e ha quatro mezes e meio que, pela ultima vez, dirigiram aeroplanos.” Este texto foi publicado em maio de 1917 no jornal A Capital, assinado por Felix Horta. Outros o antecederam, outros se seguiram.

Artigo do jornal A Capital, de 1 de maio de 1917, a apelar à organização da aviação portuguesa

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Passam meses. Passa o verão, entra o outono. E Óscar não espera mais. Deixa a mulher Maria e a filha Vera em Lisboa e parte para Paris. Ia combater.

O amor de Maria Carolina e a vida em África

No segundo andar do número 25 da Avenida Defensores de Chaves, em Lisboa, Maria Correia Monteiro Torres fica à espera. Partilhava com Óscar a defesa incondicional da pátria, via no marido um valoroso soldado, tinha por ele um amor imenso.

Conheceram-se num baile em Lisboa, no dia 15 de janeiro de 1908. Óscar prestes a fazer 19 anos, Maria ainda tinha 17. As duas famílias abastadas frequentavam a nata da sociedade lisboeta, e assim começou o amor entre Maria Carolina e Lima Correia e Óscar Monteiro Torres.

Óscar nasceu em Luanda, a 26 de março de 1889. Foi aluno do Colégio Militar, continuou os estudos na Escola Politécnica de Lisboa e na Escola do Exército. Tornou-se oficial de Cavalaria em 1909. Maria nasceu a 8 de agosto de 1890.

Namoraram, casaram e viveram um amor intenso. Num dos primeiros encontros, Óscar ofereceu a Maria uma rosa. Ela guardou as pétalas numa caixinha de vidro, que mais tarde pendurou num fio de ouro. “Ninguém compreende como nós amamos a nossa Pátria. É que eles também não se sabem amar como nós, meu filho”, escreveu Maria na primeira carta que enviou a Óscar depois de ele ter ido combater, em dezembro de 1917.

Desse amor nasceu Vera. Foi no dia 21 de novembro de 1912, quando os dias eram sempre quentes, e os dois viviam em Angola. Óscar era oficial de Cavalaria e o responsável pelo Regimento do Huambo.

Vera, a única filha de Maria e Óscar Monteiro Torres nasceu no Huambo, em Angola @D.R.

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Em Angola os dias passavam lentos. Para lá dos tempos livres de passeios e piqueniques com amigos e a família, Óscar andava zangado com a falta de condições do Regimento de Cavalaria do qual era responsável. Fez um projeto de Regulamento da Remonta da Província de Angola, queixava-se da falta de comida para os cavalos, passava horas a escrever aos seus superiores para saber se podia ter fava em vez de cevada nas rações para os animais.

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Na fazenda, Vera crescia junto da mãe e aos cuidados da ama Rosa. Rosa Preta, como iria ficar conhecida na família a mulher de quem ainda hoje se guarda o retrato pintado. A bebé vestia vestidos frescos ou então andava nua. Tirava fotografias para enviar para Lisboa, para a avó Emma, mãe de Óscar. Vera gostava de brincar com o cão da casa, o Zuka, que ficou em África quando a família regressou a Lisboa, em janeiro de 1914.

Maria Correia Monteiro Torres com a filha Vera e a ama Rosa, no Huambo @D.R.

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Já na capital, instalados no apartamento da Defensores de Chaves, Maria convivia com as duas irmãs, Raquel e Fernanda, e tinha um terceiro irmão, Pedro, que viajava muito. Havia uma casa de férias no Estoril e em Lisboa davam-se festas. Viviam bem, tinham posses. Os vestidos, os chapéus, as luvas, os copos de cristal, as louças monogramadas, que a bisneta ainda guarda, são o que ficou desses tempos em que os homens se dedicavam à preparação da guerra e as mulheres ficavam em casa a tomar conta dos filhos e da família, organizando a casa, planeando as refeições e, de vez em quando, preparando grandes festas, ora em Lisboa, ora no Estoril.

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“Eles eram muito novos e viveram muito intensamente, tanto ele como ela. Viajaram muito. Eram os dois bon vivant, ela gostava muito de festas, ele tocava bandolim. Havia muitos bailes. Bailes de carnaval, festas nas casas das famílias com quem se relacionavam, aproveitavam muito bem o tempo que tinham”, conta Sabria Azizi, bisneta de Óscar e Maria.

A batalha nos céus de Laon

No outono de 1917 Óscar Monteiro Torres está em Paris, pronto para subir aos céus e batalhar. Escreve-se em dois jornais portugueses da época (pertencentes ao espólio da família, mas cujos recortes apenas deixam identificar um deles: O Século): “A sua anciedade por partir para o campo de batalha era conhecida de todos quantos se encontraram com ele em Paris, e tanto assim que, vendo que demoravam a organisar-se os serviços de aviação do nosso corpo expedicionário, conseguira que Guynemer se interessasse por ele e instasse junto do ministério da guerra para que lhe fosse concedido fazer parte da celebre quadrilha das ‘Cegonhas’. O pedido ia ser deferido quando Guynemer morreu. Monteiro Torres foi então adido à esquadrilha número 65 de aviões ‘Spad’, uma das mais ativas e das que mais se teem distinguido pelas suas proezas”. Este era o relato do redator de O Século em Paris, Paulo Osório.

Noutra publicação, continuava a história: “Há dias um amigo meu recebeu uma carta d’ele, elogiando os seus camaradas, declarando-se encantado e ardendo de impaciência por derrubar o primeiro ‘boche'”.

No dia 19 de novembro de 1917, Óscar entra no avião e sobe aos céus de França. A batalha é descrita no jornal O Século, numa notícia de 26 de novembro:

“No dia 19 tinha partido em companhia do capitão Lamy. Os dois aviadores encontraram um grupo de cinco aeroplanos inimigos. Dois d’esses atacaram o avião de Monteiro Torres. O nosso compatriota derrubou um; entretanto, atacado pelos outros três alemães, o capitão Lamy conseguia escapar-se. Os inimigos perseguiram-no algum tempo, mas depois foram juntar-se ao que ficara lutando com Monteiro Torres. Foi então que, cercado pelos quatro alemães e tendo ainda alguns momentos lutado desesperadamente contra eles, o aviador portuguez sucumbiu. Como foi ele atingido? É impossível precisal-o. O que se sabe, repetimos, é que o seu aparelho caiu de uma grande altura, desamparado nas linhas alemãs.”

As duas notícias que descrevem a batalha do dia 19 de novembro de 1917 e que dão como certa a morte de Óscar Monteiro Torres em combate

É esta a notícia que chega às mãos de Maria Monteiro Torres. Publicada no jornal O Século com o subtítlo: “Confirma-se ter perecido em combate com o inimigo”. O jornal confirmava, através de uma carta do redator, em Paris, que o aviador estava morto. “O aparelho que pilotava, despenhando-se d’uma altura de cêrca de 4:000 metros, foi cair n’um bosque ocupado pelos alemães e, não obstante mais notícias não haver sobre o facto, tudo deixa supor que o aviador não possa ter sobrevivido a essa queda”.

À procura do aviador desaparecido em combate

Maria não acredita que o marido está morto. Não há confirmação oficial de que tal tenha acontecido, ela recusa-se a vestir luto — facto que lhe vale muitas críticas da sociedade lisboeta da altura. E começa então uma intensa troca de correspondência com o Comité de Socorros aos Militares e Civis Portugueses Prisioneiros de Guerra, criado em Lausanne [por isso ficou conhecido como Comité de Lausanne], que tentava dar uma resposta à família sobre o paradeiro do aviador português.

Mas antes disso, Maria começa a escrever cartas a Óscar, na esperança de que ele as receba. Envia-as para Lausanne, na Suíça, onde estava sediado o Comité que procurava informação sobre os prisioneiros de guerra portugueses e que ficaria encarregue de as fazer chegar a Óscar, mal soubesse o paradeiro do aviador. A busca no terreno ficava a cargo da Cruz Vermelha Internacional, que fazia circular a informação.

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A primeira carta de Maria para Óscar data de 19 de dezembro de 1917, exatamente um mês depois de o avião do marido ter sido abatido. Nela, Maria desabafa que não aguenta mais não lhe escrever, embora não saiba onde ele está. “Bem sei que te escrevo nesta dúvida de onde estarás, quando uns te dão como desaparecido e os jornais como morto no campo de Laon.”

No início de janeiro chega uma primeira informação oficial do Comité de Lausanne: Óscar Monteiro Torres havia sido feito prisioneiro, mas não sabiam onde ele estava detido.

Maria respira de alívio e escreve mais uma carta, a 9 de janeiro de 1918. Já certa de que o marido está vivo, mas prisioneiro, descreve a luta que teve de travar em Lisboa, contra os que a achavam louca e que insistentemente tentavam entregar-lhe as condolências que ela recusava aceitar.

Todas estas cartas e a correspondência enviada a partir de Lausanne para a Defensores de Chaves estão no Arquivo Histórico Militar de Lisboa. É lá que se encontra esta resposta, datada de 20 de janeiro de 1918 para Maria Correia Monteiro Torres, acerca da carta enviada a partir de Lisboa um mês antes: “Não sabemos ainda em qual dos campos ele se encontra e portanto não podemos imediatamente enviar ao seu destino a carta de V.Exa. o que contudo esperamos poder efectuar dentro de dias pois que estam em curso as pesquisas que fisemos a este efeito. Creia pois V.Exa. que logo que nos seja possível de lhe enviar mais promenores, não nos esqueceremos de o fazer”.

@Arquivo Histórico-Militar, 1ª Divisão, 35ª Secção, Caixa 1337

Arquivo Histórico-Militar de Lisboa

Ainda antes de receber a confirmação do Comité de Lausanne de que a sua primeira carta já tinha chegado, Maria escrevera já mais duas. Entretanto, um amigo da família e capitão de cavalaria, Álvaro Pope, que partiu para a Guerra em finais de janeiro de 1917, mas regressou a Portugal, traz a Maria uma mala pertencente a Óscar Monteiro Torres (muito provavelmente de Paris, local onde estava antes de partir em combate). Mas se a terceira carta começa com um texto que revela o lado prático de Maria, já a tentar organizar as coisas de forma a enviar para a Suíça roupas e dinheiro para o marido, no final, o desabafo e as saudades mostram uma mulher frágil e só.

Não é apenas Maria que escreve cartas para o Comité de Lausanne. A mãe de Óscar, Emma, também pede notícias do filho.

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As respostas, porém, são sempre as mesmas. Como esta, enviada a 5 de fevereiro de 1918 pelo Comité de Lausanne:

“Infelismente continuamos sem noticias da Croix Rouge Internacional que é como V.Exa. bem sabe a única instutuição mundial que pode tratar de todos os assuntos de guerra. Somente como tivemos já a occasiao de lhe transmitir sabemos que o distinto filho de V.Exa. ‘está vivo’ mas continuamos a ignorar o seu paradeiro. Temos já pedido com insistência à Croix Rouge Internacional para nos communicar o campo de concentração alemão onde se encontra este oficial mas não podemos ainda receber a communicação tão desejada”.

@Arquivo Histórico-Militar, 1ª Divisão, 35ª Secção, Caixa 1337

Arquivo Histórico-Militar de Lisboa

Anexada a esta carta vai uma comunicação oficial da Cruz Vermelha Internacional, que dava conta de que Óscar Monteiro Torres havia sido feito prisioneiro — era a única prova que o Comité tinha para mostrar à família de que o aviador era prisioneiro de guerra. Um documento que saiu de Lausanne em direção a Lisboa, para as mãos de Emma Monteiro Torres, “por uma concessão excepcional”. Pediam, por isso, a Emma, que lhes reenviasse o documento.

Mas o tempo ia passando e Maria começava a ficar sem esperança de que Óscar pudesse receber as mensagens que lhe enviava. Isso mesmo deixa transparecer na carta de 29 de janeiro de 1918.

Dois dias depois, nova carta.

A última carta conhecida de Maria Correia Monteiro Torres para Óscar Monteiro Torres guardada pelo Comité de Lausanne data de 7 de fevereiro de 1918. Maria não sabe se há-de continuar a escrever, porque já percebeu que as cartas não chegam ao marido. E despede-se, uma última vez:

Passam-se meses. Maria envia roupas e dinheiro para a Suíça. Um cheque de 150 francos, do qual o Comité acusa receção a 16 de março de 1918. As fronteiras francesas tinham sido fechadas e a correspondência ficou retida durante dois meses. Dizem ainda que têm na sua posse toda a correspondência que tinha sido enviada para Óscar, “arquivada esperando que chegue o resultado final do ‘enquete'”. Neste dia, o Comité informa que aguarda uma resposta de Berlim. “Não mais sabemos que o que lhe comunicamos, isto é que o seu marido está vivo”.

@Arquivo Histórico-Militar, 1ª Divisão, 35ª Secção, Caixa 1337

Arquivo Histórico-Militar de Lisboa

A 14 de maio a Cruz Vermelha Internacional contacta o Comité afirmando que continua a aguardar resposta sobre o paradeiro de Monteiro Torres. A 29 de maio volta a escrever, dizendo que vai abrir um segundo inquérito. E a partir daqui, faz-se silêncio. Não há mais comunicações do Comité, nem mais cartas de Maria Correia Monteiro Torres que tenham ficado guardadas.

O destino de Monteiro Torres

No dia 15 de novembro de 1918, a quatro dias de fazer um ano da queda do avião de combate de Óscar Monteiro Torres, o Comité de Lausanne escreve uma carta datilografada a Maria Correia Monteiro Torres. Não se sabe quantos dias depois o envelope é entregue no segundo andar do número 25 da Avenida Defensores de Chaves, em Lisboa.

A notícia é aterradora. Óscar tinha morrido no dia 20 de novembro de 1917, um dia apenas após o avião ter sido atingido. Estava sepultado num cemitério em Laon. Todas as cartas que Maria escrevera eram destinadas a um homem morto e enterrado.

O local onde Óscar Monteiro Torres foi sepultado em França, durante a Grande Guerra @D.R.

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O funeral em Lisboa

Maria Correia Monteiro Torres viveu durante um ano convencida de que o marido estava vivo. A filha Vera foi crescendo e tinha quase seis anos quando a confirmação da morte do pai chegou. Maria vestiu luto e contam que andava pelas ruas de Lisboa com uma faixa preta no braço com a inscrição: “Morto pela Pátria”.

No jornal O Século, onde um ano antes o correspondente em Paris já tinha dado como certa a morte de Óscar Monteiro Torres, Maria publica uma carta de agradecimento, a 7 de dezembro de 1918:

“Agradeço muito penhorada a v. as sinceras e justas palavras que fez favor de dirigir a meu marido, como preito á sua heróica morte; e bem assim a ideia exposta por v. de lhe ser feita uma homenagem que todos os verdadeiros patriotas lhe devem pela sua extraordinária perseverança na luta pelo intervencionismo armado. Tenho bem a certeza de que a maior homenagem que pode ser prestada à sua saudosa memória e que ele mais apreciaria, se possível fosse, é de que todos os bons portugueses e o grande povo de Lisboa, de quem ele era tão amigo se unam e não permitam que fique improficua para a Pátria, que ele tanto adorava, toda a sua heroica dedicação por Ela, levada a cabo por tão ardua luta, tão incessante esforço e tão grandes sacrifícios. Reconhecidamente cumprimento v. — Maria Correia Monteiro Torres.”

A partir daqui os relatos começam a escassear. Terá Maria ido a Laon visitar a sepultura do marido? Ninguém com que tenhamos tido contacto sabe. O que se sabe é que só em 1930 o corpo de Óscar Monteiro Torres chega a Lisboa.

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O funeral, com honras de Estado, realiza-se no dia 22 de junho de 1930. Há centenas de pessoas na rua. Óscar fica sepultado no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa. Depois disto, Maria Correia Monteiro Torres vai passar uma temporada com uma amiga ao Brasil.

Uma família de mulheres

Maria Correia Monteiro Torres acaba por sair da habitação da Avenida Defensores de Chaves e muda-se para um outro apartamento na Rua Gomes Freire e, mais tarde, acaba por ir viver para a Rua Bernardim Ribeiro. Durante muitos anos usa a braçadeira que recordava que o seu marido tinha morrido em combate na Grande Guerra.

“Era uma pessoa determinada, que tinha um carácter bem vincado.” A descrição é da bisneta, Sabria Azizi, a quem todos diziam que tinha o feitio da bisavó Maria. Dela, Sabria não recorda muita coisa, porque quando a conheceu Maria já não estava na posse de todas as suas faculdades.

As quatro gerações da família Monteiro Torres (da direita para a esquerda): Maria Correia Monteiro Torres, Vera Monteiro Torres Cattini, Maria Ruth Monteiro Torres Cattini Azizi e Sabria Azizi

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Vera, a menina que nasceu no Huambo e perdeu o pai com cinco anos, cresce com a mãe, que cuidou dela sempre sozinha, apoiada pelas irmãs Raquel e Fernanda. Continuam a ir a festas e a frequentar a casa de férias no Estoril. Vera vai estudar para o colégio de Odivelas, de onde guardou amigas que com ela lanchavam na pastelaria Versalhes, na Avenida da República, ou mais tarde passeavam até à baixa da cidade, parando para um café ou um chá na Pastelaria Suíça.

Além do colégio, Vera começa a estudar canto lírico, no Conservatório de Lisboa. E como tem de aprender italiano por causa das aulas, é assídua presença da biblioteca da Embaixada de Itália. É lá que conhece o seu futuro marido: Augusto Catini. Casam a 22 de outubro de 1938, tinha Vera quase 26 anos.

Mas Catini não pára muito tempo em Lisboa. “Era um ativista e um fascista”, conta Nadir Azizi, o pai de Sabria, genro de Vera, “e por isso foi enviado para Madrid”. A filha do aviador herói de guerra vai com ele e acaba por tirar um curso de enfermagem, que coloca em prática na capital espanhola, já a Segunda Guerra Mundial está em curso.

Do casamento de Vera e Augusto nasce Maria Ruth Monteiro Torres Catini, a 10 de setembro de 1946. E, de Madrid, o casal e a filha partem para a Argélia. É lá, num baile na embaixada de Itália, que a já adulta Maria Ruth conhece Nadir Azizi, um realizador argelino por quem se apaixona. Casam em fevereiro de 1970.

Algumas destas informações chegaram através de uma outra Vera, também Monteiro Torres de apelido. Vera Monteiro Torres, dermatologista em Lisboa, bisneta de um primo direito de Óscar Monteiro Torres, chegou a conhecer no seu consultório, em Lisboa, Vera Monteiro Torres, filha de Óscar (o facto de terem o mesmo nome acabou por nos conduzir até ela, pensando que seria a médica a bisneta do aviador).

“Chegou a vir aqui ao consultório. Era muito alta, muito bonita e muito arrogante. Mas muita gente gostava dela, porque cheguei a ter pessoas a virem ter comigo à procura dela”, conta Vera Monteiro Torres, a dermatologista.

Numa dessas idas ao consultório da familiar, Vera filha de Óscar mostrou à outra Vera uma fotografia da filha Maria Ruth e de Nadir Azizi, em Argel. “Pareciam os dois muito apaixonados. Ela falava de Argel e Rabbat como se fosse a Quinta do Lago”, recorda a médica.

Vera, filha de Óscar e de Maria, tinha regressado com o marido Augusto para Lisboa e viviam numa casa na Estrada da Luz. A mãe, Maria Correia Monteiro Torres, ocupava um apartamento na Rua Bernardim Ribeiro. As duas continuavam muito próximas. Aliás, todas as mulheres da família acabariam por ser assim. Cada uma delas teve apenas um filho, e todas essas crianças foram mulheres. De Maria nasceu Vera, de Vera nasceu Maria Ruth, de Maria Ruth nasceu Sabria, 46 anos, sem filhos.

Uma mecha de cabelo de Maria Ruth guardada numa moldura, com uma fotografia dela ao colo da mãe Vera Monteiro Torres Catini e da avó Maria Correia Lima Monteiro Torres, em 1970

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Antes de a filha nascer, e mesmo vivendo na Argélia, Maria Ruth fez questão de apresentar Nadir, o seu companheiro, à família Monteiro Torres, em Lisboa. Para que Nadir conhecesse “as tias”, Maria Ruth tratou de preparar tudo: “O que eu vi aqui em Lisboa quando fui apresentado à família só vi nos filmes. Mal cheguei, a Maria Ruth mandou fazer três fatos para eu vestir. Em casa de algumas tias até havia empregadas que serviam de luvas, nunca tinha visto aquilo”, conta Nadir, sentado à mesa de um café em Lisboa, com vista para a Praça do Saldanha.

É ele quem tem mais recordações das mulheres Monteiro Torres. Lembra-se de Maria como uma mulher vigorosa, lembra-se da determinação de Vera. E tem saudades da mulher, que morreu muito nova — tinha 35 anos —, com um problema grave de saúde. Nunca voltou a casar. “O meu pai diz uma frase que é: quem está habituado ao ouro não se contenta com prata. Portanto, não casou. Acho que o mesmo deveria pensar a minha bisavó Maria, porque sei que ela e o meu bisavô Óscar viveram um amor muito intenso”, explica Sabria.

Árvore genealógica da familia Monteiro Torres @D.R.

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É no ano de 1981, após a morte da mãe, na Argélia, que Sabria, a única bisneta do aviador, vem viver para Lisboa, para a casa da avó Vera. Tinha onze anos.

“Para mim, não foi tranquilo vir. Houve um primeiro ano de adaptação e não havia vagas no liceu francês onde já tinha estado a minha mãe. Durante um ano tive aulas por correspondência. Ia ao liceu, tinha orientações e depois voltava com coisas para casa”, recorda Sabria.

Vera acolhe a neta na casa da Bernardim Ribeiro — para onde já se havuia mudado para tomar conta da mãe –, o pai vem visitá-la uma vez por ano. Vera trata da neta como já tinha tratado da mãe e do marido, que perdeu em 1974, menos de um mês antes da Revolução. E depois, num curto espaço de tempo, perde mais duas pessoas próximas.

A filha Maria Ruth morre na Argélia, em 1981, dois anos depois morre a sua mãe Maria, aos 93 anos. Vera fica em Lisboa já viúva, sem mãe e sem filha, apenas com a sua neta.

“A relação da minha mãe com a avó Maria era uma relação estranha, porque andavam sempre às turras, mas se fosse preciso estavam lá uma para a outra. Eram grandes carácteres, sempre em conflito. Era também assim comigo e com a minha avó Vera”, conta Sabria.

Do pai aviador, que Vera mal conhecera, tinha as recordações essencialmente feitas das histórias que a mãe Maria lhe tinha contado. Histórias que passaram para Sabria que, no meio de uma adolescência como todas as outras, atribulada, deixou escapar detalhes, esqueceu coisas, subestimou outras.

Quando a avó morre, Sabria fica a braços com o espólio da família. Entre tantas coisas que a avó foi guardando ao longo dos anos, está um colar de ouro com um pendente. “Foi a minha avó que mo deu. A minha mãe usou-o e depois passou para mim. E acabou por ser o meu pai a contar-me a história dele. Quer dizer, se calhar a minha avó contou, mas eu não devo ter ligado… O meu pai chamou-me a atenção. ‘Mas sabes o que é isto?’ E eu respondi: ‘Não… a avó deve-me ter dito mas eu já não me lembro.” Dentro da caixinha que pende do fio, estão as pétalas da primeira rosa que Óscar Monteiro Torres ofereceu a Maria Correia Monteiro Torres.

As pétalas secas da primeira rosa que Óscar Monteiro Torres ofereceu a Maria Correia Monteiro Torres @Henrique Casinhas

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Na casa da família, Sabria tenta organizar tudo. As louças, os chapéus, os sapatos, os vestidos, as fotografias, negativos em vidro, pastas com recortes de jornais. “Tenho lá o estojo da arma do meu bisavô e a mala dele.” Talvez, Sabria não sabe ao certo, a mala que foi entregue a Maria por Pope, no regresso de Paris, ainda ela achava que o marido estava feito prisioneiro.

Mas em todas estas histórias e dentro de todas as caixas e envelopes, não estava o relato das cartas perdidas. Sabria nunca tinha ouvido falar delas.

As cartas “regressam” a casa

Durante dois meses a jornalista e investigadora Maria José Oliveira tentou decifrar a letra de Maria Correia Monteiro Torres. “Tinha uma letra incrivelmente difícil e, em algumas cartas, escrevia na vertical sobre texto já escrito na horizontal”, conta ao Observador. Andava com cópias das cartas para todo o lado. Por vezes levava horas para decifrar uma só palavra. Conseguiu finalmente transcrever as sete cartas que Maria Correia Monteiro Torres enviou para o marido, Óscar, e acabou por publicá-las na íntegra no livro “Prisioneiros Portugueses da Primeira Guerra Mundial. Frente Europeia 1917-1918” (ed. Saída de Emergência).

Um dos capítulos deste livro é inteiramente dedicado à história de Óscar Monteiro Torres. Maria José Oliveira explica porquê: “Foi o maior volume de cartas que encontrei remetidas pela mesma pessoa; porque são cartas de amor de uma mulher apaixonada, que não quer crer que o marido possa ter morrido; porque foi uma história que me comoveu; e finalmente, porque a angústia e o sofrimento de Maria Correia Monteiro Torres, vertidos para estas cartas, traduzem aquilo que muitos pais, mães, irmãos, mulheres, namoradas e amigos sentiram durante os anos da guerra”.

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Toda esta correspondência estava no Arquivo Histórico-Militar de Lisboa, numa pasta, que Maria José Oliveira encontrou quando estava a aprofundar a pesquisa para o seu livro. “Vi dezenas de pastas e na documentação do Comité de Lausanne encontrei um conjunto de cartas datadas de 1917 e 1918, algumas delas seladas. Estas cartas, de presos para familiares e destes para os presos de guerra, tinham sido confiscadas pela censura militar (e neste caso não sei explicar como foram parar ao arquivo do Comité de Lausanne, que era uma organização privada de apoio aos presos). Outras, como foi o caso das cartas da mãe, mulher e um primo de Óscar Monteiro Torres estavam neste arquivo porque foram mesmo enviadas para lá, na esperança de o Comité descobrir o paradeiro do piloto e reenviar-lhe as missivas. Ora, o que aconteceu foi que estas cartas ficaram para sempre naquele arquivo, depois trasladado para o arquivo militar em Lisboa, e nunca foram devolvidas aos remetentes ou entregues aos destinatários (os que sobreviveram)”.

Perante a história de Maria e Óscar Monteiro Torres e das cartas reveladas ao público neste livro, ficou a interrogação: será que os familiares diretos conhecem estas cartas? Tê-las-iam visto? Já as leram?

Encontrar os descendentes de Óscar Monteiro Torres era, portanto, a tarefa seguinte. Havia um nome: Vera Monteiro Torres, dermatologista em Lisboa. Feito o contacto, depressa percebemos que não era descendente direta de Óscar. Mas, curiosa pela história da família que lhe dá o nome, Vera ofereceu as pistas que nos levariam à única descendente direta viva do piloto aviador.

Sabíamos apenas um nome, que na verdade nem era o seu. Sabine ou Sabina, diziam-nos que se chamava assim. Talvez vivesse em Lisboa. Vera Monteiro Torres, a prima afastada, já a tinha procurado na embaixada da Argélia, mas de lá nem uma informação.

Pegada digital, zero. Todas as árvores genealógicas terminavam com o nome da sua mãe, Maria Ruth Monteiro Torres, sem sequer referir o casamento com Nadir Azizi. No consultório de Vera Monteiro Torres, mais informações: teria pele morena, feições árabes, talvez fosse baixa. E poderia, quem sabe, viver na casa que era da sua avó Vera.

A porta do prédio abre-se ao primeiro toque da campainha. Subimos dois andares. Batemos à porta. “Boa tarde, temos umas cartas que pertencem à sua família e que estão perdidas há cem anos”. Sabria Mohamed Azizi — está a tratar de colocar os apelidos Monteiro Torres no nome — abre. Não é baixa, é de facto morena, e nada nela parece árabe. É natural. Sabria é parecida com a sua bisavó Maria. Aquela que escreveu as cartas que agora temos para lhe dar.

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