É no número 54 da Rua da Junqueira, uma das primeiras ruas pedonais do país e a principal artéria dedicada ao comércio tradicional da Póvoa de Varzim, que encontramos a Ourivesaria Tavares. “O meu avô comprou esta casa em hasta pública, tendo como sócios dois homens que viriam a ser seus cunhados. Aqui instalou a loja, a oficina e a sua casa, numa altura em que nesta rua existiam 15 ourivesarias, hoje restam quatro ou cinco, sendo a Tavares a mais antiga”, conta ao Observador Carlos Tavares, um dos atuais responsáveis pelo negócio.
Virgílio Aristides Tavares era natural de Carrazeda de Ansiães, uma vila no distrito de Bragança, perdeu o pai muito novo, chegou a combater na primeira guerra mundial e foi no Porto, mais precisamente na emblemática Rua das Flores, que aprendeu a arte da ourivesaria. Bem-sucedido no ofício, sentiu necessidade de voltar à sua terra natal para mostrar que tinha singrado na vida e começou por vender peças feitas à mão em feiras de Chaves e de Vila Real, contactando diretamente com clientes e industriais. Em outubro de 1922, cria uma sociedade, e consequentemente regista uma marca homónima, inteiramente dedicada à ourivesaria. A morada? Póvoa de Varzim, cidade onde acabou por ganhar raízes e constituir família.
O jeito para o negócio e o gosto pela arte minuciosa foram herdados pelo filho Manuel, que segurou o leme da Tavares nos anos 80 e lhe deu continuidade. “Lembro-me do meu pai contar que o material era tão caro e precioso que chegou a comprar o soalho de uma outra ourivesaria para reaproveitar o pó deixado pelo ouro no chão, os funcionários tinham latas de atum e sardinhas para guardar as peças com cuidado e trabalhavam sentados com folhas de jornal no colo para aproveitar tudo o que pudesse eventualmente cair”, recorda o neto do fundador, Carlos Tavares.
Foi em bicos de pés junto ao balcão a tentar conversar com os clientes ou a brincar, ao som das brocas que soavam da oficina, com as embalagens que guardavam as joias com pedaços de algodão que os irmãos Carlos e Ana cresceram. Garantem ter ouvido “mil e um episódios” sobre o negócio da família, das visitas ilustres às encomendas de última hora, e em 2010 tornaram-se responsáveis por ele. “A história da Tavares confunde-se com a história da própria cidade e até do país. Há famílias inteiras que têm memórias muito vivas deste sítio”, sublinha Ana, acrescentando que a oferta cresceu, mas a base tradicional mantém-se.
A importância do ouro, a peça que viajou para o Dubai e a encomenda inesperada de um bispo
Manuel Tavares, pai de Ana e Carlos, era dono de uma coleção de ourivesaria popular que ia dos relógios de bolso aos paliteiros, passando pelas cremalheiras com a cruz da Malta e as joias de luto. Contava que antigamente naquela região o ouro era considerado “um símbolo de fé, poupança e reforma”, explicando o facto de muitas mulheres, com os maridos no mar, se dirigirem à Tavares em busca de uma forma de sustento. É precisamente o ouro a principal matéria prima da marca, que trabalha também a prata, as pedras preciosas, como esmeraldas, rubis ou safiras, e até os diamantes em joias e peças decorativas.
“O ouro é um metal raro, versátil, não oxida e o seu único inimigo, capaz de o destruir, é o mercúrio. Ao contrário da prata, tem uma valorização a longo prazo, aliás, a ourivesaria é talvez o setor mais sustentável, já que uma joia com qualidade passa mesmo de geração em geração”, assegura Carlos, que estudou gemologia em Antuérpia e atualmente é perito e avaliador oficial na Casa da Moeda.
Se inicialmente a Tavares vendia sobretudo peças inspiradas na religião ou na comunidade piscatória, mas também pulseiras para bebés, alfinetes de peito ou filigrana, a sua oferta foi crescendo ao longo dos anos, tendo hoje nos anéis de noivado e nas alianças de casamento os produtos mais procurados. “Temos clientes casados há 60 anos que fizeram aqui todas as suas alianças, do noivado às bodas de diamante, e até há um livro na loja com relatos dessas histórias de amor que o comprova. De facto, as alianças representam 20% da nossa faturação”, partilha Carlos, recordando que “hoje as pessoas não procuram as peças tão tradicionais e pesadas, querem coisas diferentes, mas não têm quem as faça”.
Nas vitrinas imaculadas da Tavares é possível ver peças clássicas, com maior volume e dimensão, outras mais minimalistas e ainda alguns objetos de decoração, como jarras, castiçais, figuras de animais ou molduras, sendo o serviço de mesa em prata, esmeraldas e rubis o que chama mais a atenção. “Foi uma coleção feita exclusivamente para a mesa de Natal do Museu da Vista Alegre, em Ílhavo. O prato tem este aspeto enrugado, que fizemos à mão com uma broca, para evitar que os nossos dedos fiquem marcados”, explica o responsável, apontado para outra peça especial.
Durante 50 horas, cinco joalheiros da Tavares produziram uma joia de mão, que mistura uma pulseira e um anel, inspirada no mar e em forma de búzio. A iniciativa resultou de uma parceria com a Associação de Ourivesaria e Relojoaria de Portugal, que pediu a cinco marcas para criarem uma peça única e inovadora, sendo depois associada uma personalidade de destaque na área das artes, das ciências ou do desporto. “Fizemos esta peça para a Jéssica Pina, uma jovem trompetista, que à medida que toca o seu instrumento de sopro o búzio vai tendo efeitos diferentes. Esteve exposta em fevereiro na Semana da Joalharia Portuguesa na Expo 2020 Dubai, tem 251 diamantes e está avaliada em dez mil euros.”
Mas as encomendas inesperadas e cheias de significado não ficam por aqui, os irmãos recordam o pedido “para ontem” de D. José Cordeiro, dias antes de ser ordenado Bispo de Bragança, em 2011. “Num tempo recorde pediu-nos que fizéssemos o anel, o crucifixo e o báculo. Como tinha raízes em Alfândega da Fé, inspirámo-nos na flor das amendoeiras, muito conhecidas naquela zona, para desenharmos as peças.”
Uma loja que é também oficina e a aposta na digitalização
Criar peças únicas ou institucionais, avaliar e restaurar joias antigas ou objetos de arte sacra são alguns dos serviços disponíveis num espaço que se divide entre loja, oficina e galeria. “Aqui o cliente pode acompanhar todo o processo de produção”, garante Carlos Tavares, mostrando as fotografias antigas da família, a medalha da cidade atribuída pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim em 2016 ou o quadro com os objetos pessoais do pai. Junto ao balcão principal está um móvel antigo de madeira cujo recheio muda todas as semanas. Ali estão expostas peças em segunda mão recuperadas dentro de portas e há quem visite a Tavares só para ver as novidades deste “cantinho especial”.
Do outro lado, uma sala intimista com uma mesa cheia de desenhos salta à vista. É aqui que trabalha Sílvia Agra, a designer de joias da casa, habituada a materializar ideias e desejos. “Por vezes as pessoas chegam cá com uma pedra que trouxeram de uma viagem, uma medalha de família ou um desenho como inspiração. Fazemos um protótipo, através de um programa 3D, com o peso, tamanho e estimativa de preço, e permitimos que o cliente acompanhe todo o processo mesmo à distância”, conta a designer, sublinhando o atendimento personalizado da marca. “Já me perguntaram porque não abro outras lojas no país e a resposta é sempre a mesma: a proximidade. Acreditamos que esta ligação com o cliente é mesmo insubstituível”, refere Carlos Tavares.
Os clientes chegam dos quatro cantos do mundo, da Alemanha ao Japão, passando por Las Vegas, e o que usam nos dedos, no pescoço ou nas orelhas nasce numa pequena oficina, onde o som das brocas se confunde com o barulho das máquinas de soldar. Sentados ao redor de uma mesa de alumínio bem iluminada, com bolsas de plástico, frascos de vidro, réguas e pequenos martelos, estão seis ourives com lupas nos olhos e os dedos manchados de preto. Se uns estão a polir alianças à mão com fios de algodão, outros lavam com água quente e amoníaco algumas peças depois dos acabamentos finais, prontos a olhar mais uma vez para o quadro magnético onde estão escritas as últimas encomendas.
Nos últimos anos, a Tavares tem redesenhado modelos obsoletos e originais dos anos 50, 60 ou 70, promovendo e recuperando técnicas antigas da ourivesaria portuguesa, mas dando-lhes uma nova roupagem. “O fio mais fino torna a joia mais leve e delicada, hoje o público mais jovem aprecia peças mais simples e minimalistas, é também a ele que pretendemos chegar.” Para a isso, a aposta no universo digital é essencial. À boleia do centenário, a marca mudou de imagem, lançou uma loja online, onde promete ter novidades todos os meses, e mudou a fachada da sua loja física, acrescentando-lhe um coração de filigrana, “símbolo minhoto de fé e devoção”.
No fim do ano, adiantam Ana e Carlos Tavares, irá ser lançado um livro com a história do negócio familiar e ainda uma exposição na Cooperativa A Filantrópica, na Póvoa de Varzim, com documentos, fotografias e ferramentas antigas da ourivesaria centenária.