Índice
Índice
Há padres católicos e outros funcionários da Igreja suspeitos de abusar sexualmente de menores que continuam no ativo, com funções atribuídas pela Igreja em Portugal. Mas a comissão independente que investigou o assunto não revela quantos são nem onde estão: garante apenas que está a elaborar uma lista de abusadores no ativo que deverá estar pronta até ao final do mês e que será entregue à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e ao Ministério Público.
Esta foi uma das revelações centrais da longa sessão de apresentação do relatório final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, esta manhã na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
No relatório final, divulgado pouco depois do final da conferência de imprensa, a comissão independente (cujos trabalhos foram liderados pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht) justifica a não revelação das identidades dos abusadores no ativo com a necessidade primordial de proteger as vítimas, que se mantiveram anónimas.
No documento, a comissão assume que houve uma grande ponderação sobre o que fazer às identidades dos abusadores no ativo, uma vez que se levantavam várias questões que, em parte, entravam em conflito.
Por um lado, há os casos de abusos sexuais cometidos por padres que ainda estão no ativo e que ainda podem ser investigados pela justiça civil, por ainda não terem prescrito. No total, a comissão independente encaminhou para o Ministério Público 25 testemunhos que cumpriam estes critérios — uma percentagem minúscula dos 512 testemunhos validados.
Por outro lado, há os casos que já prescreveram, mas cujos suspeitos ainda se encontram no ativo. Estas foram as situações que deram mais dores de cabeça aos investigadores, uma vez que o conhecimento científico sobre o fenómeno do abuso de menores (frequente referido pelos psiquiatras Pedro Strecht e Daniel Sampaio, da comissão independente) aponta para um alto risco de reincidência deste tipo de atos. A comissão disse ter-se confrontado com a questão fundamental sobre este problema: “Saber se, sem crime a investigar, cabe ainda ao Ministério Público o poder de averiguar da eventual atividade criminosa de alguém sobre quem impende a suspeita de, no passado, ter infringido, apenas com o fundamento de que, a confirmar-se tal, será de prever o prosseguimento, no presente, de idênticas condutas.”
Por fim, colocava-se o problema da proteção das vítimas. Como a comissão diz ter respeitado o “compromisso de sigilo junto das possíveis vítimas“, considerado o “argumento mais sólido para levar ao seu testemunho”, então era essencial garantir que esse compromisso era mantido. A comissão argumenta que mesmo as vítimas que não revelaram a sua identidade poderiam ver o seu nome descoberto através do cruzamento de dados — incluindo a identidade do alegado abusador.
“Libertar, no mesmo tempo previsto para o Estudo da Comissão, informação dessa natureza, para lá dos casos ainda suscetíveis de investigação — e essa irrecusável —, seria colocar em risco o sentido e os efeitos desejáveis do Estudo em curso”, diz a comissão.
A decisão final da comissão independente, “depois de muito ponderar”, foi a de elaborar uma “lista das pessoas alegadas abusadoras ainda no ativo”, que será remetida sob reserva para a Conferência Episcopal Portuguesa e para o Ministério Público, “para a análise que aí se julgar adequada, recomendando, embora, e em ambas as situações, o máximo respeito pelo sigilo desde o início garantido“.
Apesar da linguagem cautelosa do relatório, os elementos da comissão foram taxativos sobre o que a Igreja Católica deve fazer aos padres abusadores. “Não chega retiros espirituais, não chega retiradas transitórias de situações. Desculpem-me a linguagem, mas não há milagres”, disse Pedro Strecht. “Não querendo ser Humberto Delgado… Obviamente, afastava-os.”
Igreja vai receber lista, mas avisa que “cada caso é um caso”
Na tarde desta segunda-feira, já depois da apresentação do relatório final, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas garantiu que todos os abusadores serão investigados, mas recusou generalizações. “Os abusadores de menores não podem ter cargos dentro do ministério“, afirmou. “Desde que seja provado, não têm lugar.”
Ornelas referiu também que, para que isso aconteça, “tem de ser comunicado à Santa Sé e de lá virão as indicações para instaurar um processo”.
Diretamente questionado sobre o que vai fazer com a lista dos abusadores no ativo, D. José Ornelas afirmou que “cada caso é um caso” e sublinhou que é preciso investigar a “plausibilidade” de cada situação, “para não andarmos à caça de bruxas, para que quem realmente cometeu crimes seja punido”.
Também presente no auditório da Gulbenkian onde o relatório final foi apresentado, o padre jesuíta alemão Hans Zollner, membro da Comissão Pontifícia de Proteção de Menores e um dos principais conselheiros do Papa Francisco para a questão dos abusos de menores, afirmou, em declarações registadas pela CNN, que “nos casos em que as alegações sejam comprovadas o resultado normal é a expulsão”.
A “revolta” de saber que o abusador continua no ativo
Nas 486 páginas do relatório final, a voz é dada essencialmente às vítimas, com centenas de testemunhos na primeira pessoa — embora anónimos — que ilustram a realidade dos abusos de menores na Igreja Católica em Portugal ao longo das décadas.
Um dos testemunhos, atribuído a uma mulher nascida na década de 1970 que preencheu o inquérito online para contar a sua história, dá justamente conta da “revolta” de saber que o seu abusador continua no ativo.
“F, nascida na década de 70, era escuteira. Quando frequentava o 9.º ano de escolaridade, com 16 anos, participou num acampamento de escuteiros. Foi vítima de abuso por parte do seu chefe, então com 25-27 anos: toque de outras zonas erógenas do corpo e/ou beijos nas mesmas zonas”, lê-se no relatório.
“Sente uma grande revolta ‘por ver que continua a ser (embora sem contacto com miúdos) escuteiro no ativo, com papel de relevo em situações da Igreja; é um conceituado professor universitário‘”, acrescenta a história.
Já o padre identificado como A., cuja história foi encontrada nos arquivos eclesiásticos pelo grupo de estudo histórico, protagonizou uma história semelhante.
“O Padre A. nasceu em meados do século passado. Foi denunciado à Comissão Independente por um antigo aluno que frequentava a escola onde A. lecionava e que terá sido abusado em idade puberal. Os abusos ocorreram no princípio deste século”, diz o relatório.
“O denunciante, que à data teria 14 anos, menciona ainda um primo, também menor, que também terá sido abusado. Refere que os abusos ocorreram no gabinete de A. e que se prolongaram por dois anos. Em concreto, alude à manipulação de órgãos de abusado e abusador“, acrescenta o documento.
Com base na consulta dos arquivos, os historiadores conseguiram encontrar “uma carta que professores e pais da mesma escola enviaram ao prelado queixando-se de A.”
“Aí se afirma que tiveram uma reunião com o prelado e que ouviram da parte dele ‘frases criteriosamente preparadas e dúbias’. Transmitem ainda ao responsável da diocese que não aceitam que a escola se venha a transformar ‘numa nova versão da Casa Pia’. Nessa carta, não só o nome de A. é explicitamente mencionado como é também referido o cargo que desempenha junto do seu prelado”, lê-se.
“Numa outra missiva, um clérigo com responsabilidades na cúria diocesana faz duras críticas ao sacerdote, designadamente quanto a irregularidades nas contas paroquiais e a práticas homossexuais. A. continua no ativo e tem vindo a desempenhar cargos de relevo na diocese onde está incardinado, que é a mesma onde ocorreram os abusos“, termina o relatório.
Na conferência de imprensa, o coordenador da comissão independente, Pedro Strecht, revelou ainda uma outra situação que envolve uma figura ainda no ativo — e pior, na liderança da comissão diocesana de proteção de menores.
Pronunciando-se sobre o papel das comissões diocesanas, que foram criadas pelas várias dioceses católicas entre 2019 e 2020, Strecht salientou que a maioria das vítimas “não se sentem à vontade” para as usar como lugar de denúncia: só oito casos chegaram à comissão independente por via dessas comissões.
Strecht apontou ainda uma história concreta, que classificou como “um caso complicado” — a história de um responsável de uma comissão diocesana que foi “apontado como alegado abusador e o bispo em causa está a par da situação“.
E os bispos ocultadores no ativo?
Além dos padres abusadores no ativo, coloca-se também a questão dos bispos que encobriram casos de abuso e que continuam, eles próprios, no ativo à frente de dioceses. A comissão independente, embora já por várias vezes ao longo do último ano tenha referido que existem dados que permitem concluir que houve encobrimento por parte de bispos no ativo, não inclui números nem identidades no relatório.
Questionados sobre o assunto na conferência de imprensa, os elementos da comissão explicaram que não pretendem centrar o foco em figuras concretas da Igreja, mas no problema sistémico do encobrimento na Igreja.
“Houve inequivocamente abusos sexuais por parte de membros da Igreja Católica portuguesa e houve evidentemente ocultação desses abusos por parte da hierarquia”, disse Álvaro Laborinho Lúcio, ex-ministro da Justiça, que pertence à comissão independente. “Uma coisa são os abusos sexuais ocorridos na Igreja. Outra coisa seriam esses abusos sexuais se continuassem a ser ocultados.”
“A partir do momento em que eu isolo alguns bispos como sendo paradigmáticos da ocultação, posso estar a tirar peso à ocultação por parte da Igreja”, disse ainda. “O que me interessa não é saber quem ocultou, mas saber que a Igreja ocultou.“