Não é um déjà-vu: foi há menos de um ano que os Arcade Fire atuaram em Lisboa, no MEO Kalorama. No ano anterior, tinham dado um concerto em nome próprio no Campo Pequeno. Antes, passaram por outros festivais portugueses. Mas nada disso apagou o entusiasmo com que os canadianos foram recebidos no primeiro dia do festival NOS Alive, que arrancou esta quinta-feira e decorre até sábado no Passeio Marítimo de Algés, em Oeiras. “Estar em Lisboa é como estar em casa”, descreveria o vocalista Win Butler perante um público incansável e cruzando geografias vizinhas.
São muito cá de casa, diria a sabedoria popular. Como cabeças de cartaz, a banda atravessou toda a carreira num concerto de greatest hits que celebrou também os 20 anos do álbum Funeral, o mesmo que lhes deu o trono do indie rock. Butler distribuiu flores, um composto recinto (o dia não esgotou) cantou quando os instrumentos o permitiram e os Arcade Fire provaram, uma vez mais, que podem continuar a voltar. O público cá está para os receber de braços abertos, imune às acusações de conduta sexual imprória imputadas a Win Butler. Em 2022, cinco mulheres descreveram os seus encontros com o vocalista e guitarrista como “tóxicos” e “abusivos”. Butler sempre garantiu que as relações forma consentidas.
Certo é que parecia uma questão menor para quem ali estava para escutar No cars go, Keep the Car Running’e Ready to Start, The Suburbs, The Sprawl II’ ou Reflektor, uma sequência orquestrada de canções para cantar a plenos pulmões e impoluta pela efeméride do aniversário do álbum Funeral — que contaminou os últimos concertos da banda, mas não em Portugal. Uma pena, diriam alguns. Indiferente, diriam outros. O catálogo destes artistas é vasto e abrange muitas linguagens. Não há nada a temer. Tracemos aqui um paralelismo com os The National no que diz respeito à frequência das visitas e à simpatia dos anfitriões.
Várias horas antes, aquando da abertura de portas do festival (pouco depois das 15h), fãs de Arcade Fire nem vê-los. Eram as t-shirts dos The Smashing Pumpkins que despertavam a atenção.
A tarde soalheira não foi convidativa para antecipar a chegada ao recinto — a greve de 24 horas da Carris poderá não ter ajudado — e eram poucos os que circulavam no Passeio Marítimo de Algés antes de a noite cair. Com os palcos secundários onde já decorria alguma programação musical depenados e as máquinas de matraquilhos vazias, onde estariam os que já validaram o bilhete?
Ouvia-se gritos de euforia. “Ganhou um voucher de 250 euros”, escuta-se de uma das bancas de uma marca de tecnologia que está a oferecer a possibilidade de ganhar “um computador com inteligência artificial”. Estão 50 pessoas na fila, mas o computador já saiu “há meia hora” (dizem-nos que podemos descobrir a feliz contemplada no Instagram). Na banca ao lado, 27 pessoas alinham-se por uma oportunidade de, através de um jogo de pontaria, levar uma T-shirt, um boné ou um par de meias para casa. No stand anexo, uma marca de automóveis oferece um saco de pano, uma gola, óculos de sol ou um elástico de cabelo scrunchie a todas as pessoas que joguem, com ou sem sorte.
Com as temperaturas em alta, houve quem aproveitasse o Palco Comédia pelo simples facto de este ser coberto. “Hoje estou com sintomas de velho”, diz um humorista que, curiosamente fala sobre ar condicionado. O comediante não sabe se o “símbolo do sol” no equipamento é para utilizar “quando está calor” ou “para fazer calor”. Por sim e por não, diz, escolhe a planta.
Plantas não há no NOS Alive, nem relva, nem colina ou a famosa expressão repetida pelos demais responsáveis de festivais de verão, “anfiteatro natural”. Aqui há um tapete-relvado artificial que cobre o recinto, grande o suficiente para acolher os 165 mil espectadores que estão esperados este ano em três dias e sete palcos, se contarmos com o Pórtico e o Fado Café.
No cartaz, as letras são do mesmo tamanho: Arcade Fire e The Smashing Pumpkins. Para muitos, os segundos eram os verdadeiros cabeças de cartaz deste primeiro dia. Depois do inevitável e mais do que legítimo entusiasmo com Today ou Tonight, Tonight, Billy Corgan lembrou o dia 2 de maio de 1996, em que numa noite de chuva (toda a chuva do mundo?) a banda de Chicago se estreou em solo português com um concerto na Praça de Touros de Cascais. “Lembras-te de uma praça de touros?”, questionou Corgan ao guitarrista James Iha. “Estava a chover”, recordou. Os norte-americanos regressaram ao palco principal do NOS Alive dispostos a satisfazer os desejos de quem queria ouvir os clássicos: Disarm, Bullet With Butterfly Wings, Cherub Rock ou Zero. Tudo por ali passou. Quando assim é, apesar do tempo, apesar das mudanças na formação da banda, fica difícil falhar.
Do outro lado do recinto, uma tenda era pequena para conter os que tentava assistir ao eletropop dos Parcels. A gente transbordava os limites do espaço do Palco Heineken, secundário. “Sempre que vimos a Lisboa é um choque. Há alguma coisa na água?”, troça o vocalista. A banda australiana passou pelo NOS Alive em 2022. “Não vai ser melhor do que aquele show”, comentou o cantor. Dois anos depois cá estão a fazer uma imensa multidão dançar de forma efusiva ao som de Tieduprightnow. Os Parcels são a garantia de que ainda existe o popular efeito da “banda que toda a gente conhece, mesmo quem acha que não” e quando chegam ao palco, o fenómeno concretiza-se — mais fácil ainda quando as canções parecem feitas de um confortável algodão funk de tamanho, cor e tecido universais.
As condolências de Benjamin Clementine
Sorriso no rosto, pés descalços, sobretudo a envolver o tronco nu. Benjamin Clementine voltou a um palco em Portugal ainda antes do pôr do sol, pelas 20 horas. Quando muitos atacavam a fome na zona de restauração, outros usavam a hora de jantar para descobrir ou redescobrir o compositor e cantor inglês que tem sido presença frequente em Portugal desde o seu primeiro e aclamado álbum, At Least for Now (2015).
Foi com um recinto semi-despido que Clementine arrancou o concerto — ele que, segundo a Blitz, pediu à organização do festival para ser promovido para o palco principal. Um pedido arriscado para este artista de voz quente habituado a salas fechadas e formatos intimistas. Mesmo entre os headliners do festival, Clementine soube aproximar-se do público e a prova cabal foi o desempenho em Condolence, do seu álbum de estreia, em que desfilou pelo corredor do palco e insistiu em perceber como se dizia “condolences” em português. No final, acabaria por colocar a assistência a cantar em uníssono, num dos momentos mais emocionantes da noite.
Acompanhado pela sua banda e um septeto de cordas, sozinho ao piano ou à guitarra, Clementine foi revelando virtuosismo em ambos, proporcionando momentos que justificam a sua exigência pelo espaço de primeira linha do NOS Alive.
O concerto acabaria por se espraiar para uma hora e dez minutos, com outros temas (ou trunfos, se quiserem) na manga, como Toxicaliphobia, Liz Taylor’s Bag, Tempus Fugitive, Happenstance, Difference e Residue e duas canções do último álbum, And I Have Been (2022), que o britânico criou durante a pandemia de covid-19.
No Passeio Marítimo de Algés, Clementine continuou a sua atuação com Jupiter, Ports of Europe, Phantom e Nemesis, tema do genérico da série Morning Show (Apple TV+), e que conquistou ovação de pé.
Adiós seria adequada para a despedida, mas Benjamin, com um sorriso de orelha a orelha, não parecia fazer intenções de parar. I Won’t Complain caiu nas graças do público e um desejo do último álbum: a canção Genesis. A melancolia e brutalidade de Cornerstone ficou para o final.“Se se sentem sozinhos, cantem”, disse. O público pedia mais e ele parecia disposto a tal. A dada altura, de repente, lá diz: “Obrigada, Lisboa! É tudo o que sei”. Ficou-lhe bem e não precisa de mais.
O NOS Alive continua esta sexta-feira, com Dua Lipa como nome maior do cartaz.