É no café da sua Associação, Corações Com Coroa, que Catarina Furtado nos recebe, com o sorriso e o à-vontade que já tanto a caracterizam. Numa tarde de sol, é de forma radiosa que a conversa começa, focada na Ferreirinha em foco. Habituada a apresentar, descrever, e dar a conhecer o outro, como seria feita a apresentação de Catarina Furtado?
“Já tive várias fases”, começa por responder, entre risos, continuando: “ultimamente não tenho pensado muito nisso. A vida vai obrigando-nos a definirmo-nos. No meu caso, no meio em que estou, ainda mais obrigada sou. Tenho sempre de corresponder, de pôr um título. E às vezes é uma grande confusão, porque formei-me em dança, sou atriz, apresentadora a tempo inteiro, ativista, Presidente e Fundadora da Corações Com Coroa, Embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População há 23 anos, portanto é complicado. Hoje em dia, nesta minha idade madura em que já sei bastante bem que não interessa que as pessoas tenham uma só função, já me aceito muito bem. Sempre me aceitei, mas tinha ali algumas crises existenciais quando queria dançar, depois queria representar, e em seguida apresentar, fazer documentários. Aceito e acho que é uma mais-valia alguém se debruçar sobre coisas de que gosta, mas aprofundadamente, não levianamente. E, portanto, se tiver mesmo de resumir, diria que sou Comunicadora e Ativista”.
Licenciada em Dança, o seu sonho sempre foi tornar-se Coreógrafa. O que é certo é que uma lesão, num ensaio geral, lhe trocou as voltas. É ao descrever-nos quem seria Catarina Furtado, a Coreógrafa, que percebemos que em muito se assemelha à mulher que é hoje, ainda que noutras danças. “Seria uma Coreógrafa Humanista, seguramente. Alguém que trazia todas as pessoas para que elas não ficassem esquecidas, ignoradas, silenciadas, violentadas, pelo menos no meu palco. Seria alguém que seguramente trazia muito as questões da saúde mental, as questões da igualdade de género. Foi assim desde sempre. A primeira coreografia que fiz, é muito curioso, foi numa rampa. Eram dois seres, dois corpos, numa rampa, a dançarem. Nessa altura, já pensava nas questões da instabilidade, da fragilidade, da insegurança, da necessidade de percebermos que precisamos uns dos outros. Para estarmos em equilíbrio naquela rampa, precisamos da outra pessoa, seja ela quem for. E esta ideia de que eu queria sempre combater um mundo muito umbiguista e muito individualista, vem desde sempre. Portanto, seria alguém que seguramente falaria das questões dos direitos humanos, sem dúvida alguma”, confessa.
Conta-nos, de seguida, como o olhar e o cuidar do outro foram uma preocupação que tomaram conta da sua vida desde muito cedo: “Desde os 9 anos comecei a fazer voluntariado. A minha mãe era professora do ensino especial e eu pedi-lhe para fazer voluntariado na colónia de férias, para tomar conta dos meninos especiais”. Mas mais do que cuidar, a sua vontade sempre foi a de derrubar preconceitos. “A primeira vez que me confrontei com significados e conceitos que discriminam, foi quando tinha 9 anos. Fui tomar conta dessas crianças na praia, na colónia de férias. Houve uma vez em que eu estava a tomar conta de um menino e ele pede para cumprimentar umas senhoras que estavam deitadas. Eu achei aquilo ótimo. Mas quando ele estende a mão, houve uma senhora que disse: tire-me isto daqui. Ele tinha trissomia 21. Aquilo foi estranhíssimo para mim, fiquei muito indignada. Naquela altura fiquei sem palavras, cuspi-lhe na cara e desatei a fugir. E depois tive a primeira conversa em casa, com o meu pai, sobre discriminação com base na diferença. A partir daí foi uma porta que se abriu, que nunca mais se consegue fechar, porque vimos injustiças permanentemente, vimos violações dos direitos humanos permanentemente. E há alvos muito concretos: as mulheres, raparigas, pessoas com deficiência, imigrantes, pessoas de raça negra… Estas questões existem todas. E eu sabia que, para viver minimamente bem, qualquer que fosse a minha profissão, ela tinha de passar por aí, por abrir caminhos, derrubar ideias, lutar contra os preconceitos”.
Com o voluntariado a fazer parte da sua vida desde sempre, e a dança a juntar-se depois, foi através do Jornalismo que a rádio e a televisão surgem na sua vida, trazendo consigo todo o mediatismo e exposição que hoje também fazem parte da Catarina que é. Ainda que o seu objetivo nunca tenha sido este, o de ser conhecida, é também através das plataformas onde o seu trabalho acontece que muita diferença tem sido feita, e onde o trabalho de consciencialização tem acontecido. Numa verdadeira junção entre Prime Time e projetos onde o seu caráter de ativista se sobressai, Catarina afirma que é um equilíbrio fácil de acontecer: “São 32 anos em Prime Time, que é uma coisa da qual me orgulho. Tem sido para mim um desafio, mas muito bem conseguido, eu explicar a todas as minhas administrações e a todos os meus diretores, que para eu fazer bem alguma coisa enquanto comunicadora e apresentadora, tenho de acreditar. Eu tenho de fazer aquilo que é mesmo a minha verdade. Não enganamos o público. O público pode gostar de imensas coisas, tão diferentes como um reality show, um talent show, um concurso, ou uma coisa completamente oposta. Eu, para fazer alguma coisa que eu sinta que faz raccord comigo, pode coabitar em vários universos. Eu tenho é que subscrever aquilo. É o exercício da empatia, que eu faço para tudo, e que também faço para a minha própria carreira. E sigo também muito a minha intuição. Agora, se eu disser que ficaria a fazer só The Voice a vida toda, ou programas parecidos com o The Voice, estaria incompleta. Feliz, mas incompleta. Para mim é fundamental fazer outro tipo de conteúdos, nomeadamente Os Príncipes do Nada, que são documentários, mas também mergulhar em conceitos diferentes e que têm uma pegada de serviço público, sempre”.
À lista de funções que a caracterizam, junta-se ainda, desde 2000, a de Embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA). Neste âmbito, mas não só, muitas têm sido as viagens que têm preenchido a sua vida de histórias para contar. Em cenários inimagináveis, é no meio do caos que Catarina sublinha, sem hesitar, ser possível continuar a acreditar no lado bom da humanidade. Como? “Porque vi muito mais lados bons. Em todas as viagens que já fiz, eu vi pessoas inacreditáveis a fazerem coisas inacreditáveis. E são elas que me alimentam, permanentemente, a acreditar no lado bom da vida. Vi as pessoas que são as beneficiárias, a quem falta quase tudo, praticamente tudo, a fazerem, ou a terem, atos de generosidade e de pura solidariedade incríveis. Eu tenho autoridade para dizer que, apesar de o mundo estar assim, eu continuo a acreditar. Se me desiludi? Nunca. É estranho, eu sei. Desiludo-me com o mundo. Há um retrocesso nítido nos direitos, e sobretudo nos direitos das mulheres. O Irão foi um país incrível e, neste momento, as mulheres não vão à escola. O Afeganistão, a mesma coisa. Há um retrocesso gigante porque os nossos direitos nunca estão adquiridos. E quem pensa que a democracia também está adquirida, ou a liberdade…de todo. São conceitos que nós temos de ensinar desde sempre a lutar e de forma contínua. Porque juntos somos, de facto, mais fortes”, apela.
É com esta ideia de entreajuda, empatia, união, que sobra ainda tempo para falar do local que acolheu esta conversa e que ocupa também uma grande parte da vida – e do coração – da apresentadora e ativista. “A Corações Com Coroa nasceu há 10 anos, ali na casa do Porteiro – que eu gosto de dizer da Porteira, já que é uma associação de igualdade de género – desta biblioteca, que é a biblioteca que tem o espólio feminista. Fazemos atendimento gratuito de serviço social. Temos três assistentes sociais com contrato, temos duas psicólogas, e as raparigas e mulheres são atendidas gratuitamente, quer nas consultas de psicologia, quer nas consultas de serviço social. Damos apoio jurídico em casos extremos, incluindo violência doméstica. E também damos apoio dentário. Temos uma parceria com uma clínica, a Clínica Mint, que faz um trabalho excelente. Até porque muitas das vezes nem associamos à violência doméstica, mas as primeiras coisas que acontecem é a mulher ficar sem dentes. Se ela for reerguida com apoio biopsicossocial, ou seja, com uma psicóloga e com uma assistente social, depois como é que é inserida num mercado de trabalho se não tem dentes? Ninguém a contrata. Portanto, é esta trilogia de apoios que fazemos”, começa por explicar, acrescentando: “Nós gostamos de ser um abraço. Se nós ligássemos os CCC’s todos, faríamos um grande abraço, ou vários abraços. E eu penso muitas vezes nisso. Só não os fechamos porque nós não somos fechados, temos sempre a porta aberta”.
É nas suas palavras que Catarina nos vai contando a missão deste projeto, com um sorriso que aumenta ainda mais quando chega a altura de nos explicar a origem do nome: “Foi a minha filha que deu o nome. A minha filha, que era muito pequenina, estava a ver Os Príncipes do Nada e disse: mãe, aqueles meninos ali têm todos coroa, não têm? Fiquei a olhar para ela e perguntei-lhe: Coroa? E ela: Sim, só que não se vê. Quando eu fundei a CCC, foi imediatamente este o nome que me veio. E de facto é isso. É uma opção pormos uma coroa no nosso coração, ficando mais nobre. E outra questão é que todas as pessoas têm direito a ter uma coroa e a serem coroadas. E como é que se coroa? Dando ferramentas, espaço para sonhar. Para isso, é preciso oportunidades. Por isso é que o nosso slogan é: Informar, porque é com a informação que as pessoas se podem capacitar; Capacitar, dando as ferramentas; e Empoderar. E são já mais de 500 mulheres cujas vidas reerguemos, em 10 anos”.
O caminho tem sido longo, com muitos desafios, mas também muita superação. E tal como acontece com a sua Fundadora, também na Corações com Coroa as áreas de ação não se ficam por aqui. “Temos outro projeto que é assim o meu menino dos olhos de ouro: as bolsas de estudo. Já formámos 34 bolsas, estamos já na 36.ª neste momento. São bolsas de estudo para jovens universitárias e damos-lhes apoio biopsicossocial, fazemos o apoio integrado. Depois vamos às escolas, também, porque achamos que tem de ser semeado logo muito no início. Então temos o ‘CCC vai à escola’ que é contra a violência no namoro e o bullying. Vamos também iniciar, o que nos deixa muito felizes e já temos o orçamento para isso, uma parte sobre racismo. E temos ainda o café, que possibilita dar emprego a mulheres que estejam em situação de desemprego”, partilha.
Coroar quem tanto Coroa
Com um percurso e impacto social sem medida, é na 33.ª edição dos Prémios Dona Antónia que Catarina Furtado é distinguida com o Prémio Consagração de Carreira. Habituada a cuidar, é com alguma incredulidade que nos fala deste acontecimento, afirmando sem qualquer pretensão que não estava à espera. “Bem, para já fiquei um bocadinho admirada, porque fui ver as antecedentes. Quando eu recebi o telefonema fiquei muito lisonjeada, mesmo. Fiquei muito feliz pelos critérios que me apresentaram, pelas antecedentes e depois porque este prémio, na verdade, tem a minha causa, que é a causa da igualdade de género, ele é atribuído a mulheres”, confessa, relembrando em seguida um projeto do qual fez parte e que em muito diz respeito a este Prémio – a série televisiva “A Ferreirinha”, na qual representou uma das protagonistas: “Na altura tive o privilégio de poder representar na Ferreirinha e mergulhei na história, li tudo o que havia para ler. E percebi que era uma mulher muito à frente do seu tempo. Aquela mulher existiu e deixou marca, deixou obra feita. E tinha esta componente de ser muito destemida, muito guerreira, muito inventiva também, e muito preocupada com o seu redor, com a comunidade. Acho que é inspirador e incentivador, por um lado, para continuar”.
Sempre de olhos nos olhos, com palavra fácil – mas acertada – e com vontade de saber mais e partilhar mais, é assim que chega ao fim a conversa. De forma rápida, sem precisar de pensar, Catarina termina-a, respondendo ao desafio com mestria. Afinal, para se ser considerada uma Ferreirinha é preciso “ser, porque isso já é tanto. Não é preciso ter”.