Na Escola Secundária João Gonçalves Zarco, em Matosinhos, a primeira semana de aulas foi uma verdadeira aprendizagem. Testaram-se novas entradas e saídas, novas formas de comer e novos percursos, que obrigaram a mais quilómetros percorridos por alunos, professores e funcionários.
Os alunos queixaram-se da máscara, das aulas mais longas, e cada vez menos práticas, e dos intervalos mais curtos, com menos distrações. Nunca conseguiram manter o distanciamento social recomendado, apesar da insistência dos funcionários, que, pela separação das turmas em horários de manhã e de tarde, estranharam o silêncio e a pouca movimentação relativamente aos anos anteriores.
“Afastem-se” foi a palavra mais ouvida no portão, nos corredores, nas salas de aula, no recreio, na biblioteca ou no refeitório. Durante a primeira semana de aulas, alguns professores faltaram, por baixa médica ou porque ainda não foram colocados. Os que marcaram presença optaram por rever a matéria dada durante o período de confinamento, marcaram trabalhos de casa, testes de avaliação e explicaram as novas regras de um ano letivo “tão especial”.
A pandemia, o aumento de novos casos diários, o inverno, a gripe e uma possível vacina foram alguns dos temas de conversa, numa escola onde as rotinas e as preocupações mudaram. Há receio e apreensão no ar, mas também muita vontade de recuperar o tempo perdido e descobrir uma nova normalidade. A sala de isolamento para qualquer caso suspeito ainda permanece vazia, mas todos sabem que preenchê-la pode ser apenas uma questão de tempo.
Segunda-feira
Leonor está ansiosa que a aula comece e a máscara faz-lhe sede. Afonso pisca o olho no corredor e não gosta do lugar que lhe foi atribuído na sala
O horário de Leonor Cunha arrancava com uma aula de matemática na segunda-feira às 8h, mas estreou-se logo com um furo. “Ainda não temos professor de matemática, nem sabemos quando iremos ter.” A aluna do 9.º ano prefere os números e equações à Revolução Liberal, mas acabou por começar mesmo o dia com uma aula de história. “Gosto muito de matemática, por isso quero seguir ciências”, diz ao Observador, enquanto põe a máscara no rosto junto ao portão da escola.
Ao seu lado está a amiga Benedita, que partilha com ela o gosto por sapatilhas pretas, tops curtos e colares com conchas. Conhecem-se desde o 7.º ano e olham para o relógio do telemóvel para controlar a hora da entrada, agora feita por uma porta diferente. Higienizam as mãos, passam os pés por um tapete de desinfeção e sobem as escadas sempre pelo lado direito, na tentativa de se desviarem dos alunos que descem rápidos e visivelmente contentes para o primeiro intervalo da manhã.
— “Meninas, o que estão aqui a fazer? Não vão aproveitar o intervalo?”, pergunta uma funcionária no início do corredor.
— “Não tivemos a primeira aula, chegámos agora”, responde Leonor, ansiosa por entrar na sala.
— “Vão ter de esperar fora do corredor, ainda não chegou ninguém”, ordena a responsável, que necessita do tempo do intervalo para desinfetar as mesas e cadeiras.
De cartão na mão, mochila às costas e uma pequena embalagem de álcool gel pendurada no fecho como se fosse um porta chaves, Leonor já conhece todos cantos da escola. Ao contrário dos anos anteriores, não se irá cruzar com o seu irmão mais velho, aluno do ensino secundário, que terá apenas aulas durante a tarde.
Uma fila de 27 alunos forma-se finalmente junto à porta da sala e Leonor olha mais uma vez para as horas através do telemóvel, já em modo silencioso. “A professora vai atrasar-se?”, pergunta às amigas, que encolhem os ombros e continuam a comentar o outfit que escolheram para o primeiro dia de aulas. A docente chega e todos entram ordeiramente, passam o cartão no dispositivo eletrónico colado na parede e sentam-se num lugar já definido. “O meu é na terceira fila”, diz Leonor, entrando na sala com o pé direito.
É hora do intervalo. “A professora não se mexeu a aula toda e até nos deixou sair mais cedo”, revela, apertando o casaco à cintura em direção ao pátio. Durante os 10 minutos de tempo livre, Leonor não tem fome e escolhe ficar de pé. “A máscara faz-me sede”, desabafa, enquanto olha para os bebedouros espalhados pelo recreio. “Acho que não posso beber dali, tenho de ir comprar uma garrafa de água à máquina.” Enquanto vai e não vai, conversa com as amigas ao sol, comentam o ritmo das aulas, imaginam os novos professores, discutem o horário atribuído e antecipam alguns problemas. “Se alguém ficar infetado, como vai ser?”, ouve-se no meio da roda feminina, que prefere não tirar a máscara, mesmo no intervalo.
Segue-se uma aula físico-química e, para já, nada de novo. “A professora aproveitou a primeira aula para fazer um resumo da matéria dada durante o confinamento. Perguntou-nos se preferimos ter aulas presenciais ou em casa. Os mais preguiçosos preferem estudar em casa, eu gosto de aprender na escola, acho que é mais eficaz.” No tempo seguinte, Leonor teve mais um furo, desta vez a francês. “A professora não apareceu. Era para termos alguém a substitui-la, mas não aconteceu, por isso, acabámos por ficar na sala com uma das funcionárias”, partilha à saída para o almoço. “Ainda não temos muitos trabalhos de casa, mas já tenho um teste de história marcado para outubro”, adianta.
Depois de almoçar com um amigo, Afonso Lima chega à entrada principal de máscara no rosto e pronto para distribuir toques de cotovelo, o novo comprimento social. Vai começar o ano com uma aula de matemática, a sua disciplina favorita. “É a mesma professora do ano passado e agora também é diretora de turma, o que ajuda imenso”, explica, enquanto desliza os pés por um tapete desinfetante e higieniza as mãos, para depois subir as escadas repletas de setas coladas no chão que indicam um novo caminho a seguir.
Habituado a começar o dia logo de manhã, Afonso contava com a boleia da mãe desde a Senhora da Hora, onde vive, até à escola. Este ano, a pandemia obrigou-o a ter aulas maioritariamente de tarde e isso alterou o seu meio de transporte diário. “Agora tenho de vir de metro ou autocarro, mas em breve vou poder vir de mota, já estou a tirar a carta”, afirma contente, invejando quem já passeia pela escola com um capacete pendurado no braço.
Além dos cumprimentos aos amigos de longa data, o aluno do 11.º ano pisca o olho a algumas caras conhecidas, provando ser um dos mais sociais da turma. Ao chegar à sala, Afonso já sabe exatamente onde se vai sentar, mas o lugar não lhe agrada nem um pouco. “Estou na primeira fila, mesmo em frente à secretária da professora. Detesto o sítio, preferia estar mais atrás, mas este não se será o meu lugar para sempre, até porque vamos escolher primeiro o delegado da turma e só depois faremos a planta definitiva da sala.”
O jovem está prestes a terminar o seu percurso na escola de Matosinhos, mas, ao contrário da maioria dos colegas, ainda não sabe o que quer seguir no futuro. “Escolhi ciências porque é a área que tem mais saída, mas sinceramente ainda não me imagino em nenhuma profissão.” Uma coisa é certa, Afonso é um desportista e até está lesionado. “Sou guarda-redes no Padroense desde os cinco anos, lesionei-me e fui operado ao joelho recentemente, mas já estou bem. Esta semana vou faltar um dia para ir a uma consulta para saber o que posso ou não posso fazer.”
Depois de matemática, há uma aula de educação física, mas felizmente é teórica. “É, provavelmente, uma das disciplinas mais afetadas pela pandemia”, começa por dizer o professor Nuno Nunes à turma de Afonso, já sua conhecida de anos anteriores. O docente dispensa, por isso, as habituais apresentações, começa por mandar abrir todas as janelas, para garantir a passagem do ar, e com um projetor mostra algumas regras da disciplina, onde muita coisa mudou.
“O que vai ser diferente?”, pergunta um aluno curioso no fundo da sala. O professor enumera várias alterações que parecem não agradar a todos. A partir de agora, os alunos têm de trazer o equipamento desportivo vestido de casa, um segundo par de sapatilhas para usar apenas na aula, devem identificar máscaras, toalhas e garrafas de água, que não podem ser partilhadas, e nos balneários não haverá duches, sendo apenas um espaço de muda de roupa e calçado.
Segundo o professor de educação física, as aulas teóricas vão fazer parte da rotina e adianta que haverá tempo para falar sobre lesões, dopping, técnicas, táticas e regras de várias modalidades. Já nas horas práticas, as mais desejadas pelos alunos, o ensino irá começar com testes físicos e basquetebol. “Professor, este ano vamos ter campeonatos inter-turmas ou inter-escolas?”, pergunta um aluno com o dedo no ar. “Provavelmente não”, responde o professor, provocando a desilusão de muitos desportistas da turma que adoram competição.
É hora de mais um intervalo, Afonso sai da sala apressado e com o estômago vazio, dirige-se rapidamente a um quiosque eletrónico, tira uma senha de papel, entra no refeitório e pede um queque de chocolate. Desembrulha-o e atira o papel para o caixote do lixo, sem nunca perder os amigos de vista.
Terça-feira
Ausentes, com medo ou conformados. Os professores dividem-se e tentam adaptar-se
A biblioteca costuma ser um local bastante concorrido na escola, seja pelas iniciativas culturais ou pelos computadores, muito procurados durante os intervalos, mas este ano a funcionária Augusta Sineiro não precisa de suplicar “silêncio” a ninguém, exceto quando falta um professor. Aí, os alunos dirigem-se à biblioteca para fazer testes diagnósticos ou exercícios da matéria dada com a sua supervisão. “Alguns professores têm uma idade mais avançada e pediram baixa médica porque não querem trabalhar com a Covid-19, outros ainda não foram colocados dos concursos”, explica a auxiliar.
Não é o caso de Jorge Vieira, professor de físico-química há uma década na Zarco e também responsável pelo departamento de ciências, matemática, biologia, geologia e informática. Chega ao portão principal de máscara no rosto, mochila às costas e uma bata branca na mão. “Hoje tenho aula às 8h15, vou já subir”, diz, apressado, ao Observador. O docente não passa pela sala de professores, pois, graças à pandemia, tem agora um longo percurso pela frente até chegar à sala de aula.
Numa viagem orientada pelas setas coloridas coladas no chão, que ainda não lhe são familiares, confessa que o ensino à distância até o surpreendeu. “Correu melhor do que imaginava, no início foi complicado, mas depois acho que toda a gente se adaptou. Claro que prefiro dar aulas presenciais, quando estou num auditório com uma plateia à minha frente sinto alguma motivação.”
Depois de descer escadas, dobrar esquinas e cumprimentar ao longe colegas e funcionários, Jorge Vieira chega finalmente ao seu destino: o laboratório. À porta, esperam por ele 14 alunos do 10.º ano, muitos ainda a bocejar. Aqui as mesas são altas e as cadeiras são substituídas por bancos giratórios. O professor deixa a mochila na cadeira, desinfeta as mãos, liga o computador, cujo teclado está forrado com um plástico, coloca os óculos e veste a bata. Faz a chamada, senta os alunos em locais estratégicos e deixa algumas recomendações iniciais. “Não podem pousar mochilas em cima das mesas”; “São apenas dois alunos por mesa”; “Tentem manter-se afastados para não haver cruzamentos”.
Com o sumário ditado, é tempo de corrigir exercícios no quadro, explicar as regras de funcionamento de um laboratório e conhecer o todo o material de vidro, porcelana, metal e madeira que recheia prateleiras, armários e bancadas. “Trouxe-a hoje para dar o exemplo, mas este ano não vão precisar de comprar bata”, começa por afirmar o professor, captando a atenção dos mais distraídos. A pandemia alterou o funcionamento das aulas práticas, reduzindo a possibilidade de os mais novos aprenderem fazendo.
— “Não será possível fazer trabalhos de grupo, porque não vamos poder partilhar o material”, explica.
— “Então vamos fazer o quê?”, pergunta um aluno cheio de dúvidas.
— “Será basicamente métodos demonstrativos e algumas simulações digitais. Vou tentar que as demonstrações não sejam apenas feitas por mim, mas ir alternando convosco”, promete o professor.
Através das janelas, agora sempre abertas, já se ouvem movimentações no recreio. É tempo do intervalo, os alunos já não encontram uma posição confortável nos bancos altos, mas o relógio pregado na parede da sala está parado. Mal o professor se apercebe disso, deixa-os sair. “Vão esticar as pernas e comer qualquer coisa, podem deixar as vossas coisas aqui. Depois do intervalo, mudam de sala e não se esqueçam de desinfetar o vosso lugar”, avisa.
Com a sala já vazia, Jorge Vieira afasta a máscara para beber água, aproveita para ir até à sala dos professores, cuja lotação é agora de 20 pessoas e o número de sofás foi reduzido. Ainda de bata vestida, cumprimenta colegas, fala de e-mails ainda não respondidos e dos novos horários, enquanto bebe um café pingado de pé. “O intervalo é curto”, justifica. Muda de máscara a cada aula, por uma questão de segurança, e parece preferir as descartáveis às reutilizáveis oferecidas pela escola. “A primeira aula que dei de máscara, ainda antes dos exames nacionais, foi complicada, estava sempre a tocar nela e não se pode, mas agora já estou habituado. Só me falta dormir com máscara.”
Os 10 minutos passam a voar e nem dão tempo de deitar um olho à televisão para ver as notícias do dia. Com o balcão cheio de chávenas sujas e pratos com guardanapos repletos de migalhas, os professores pegam nas pastas, nos livros e nas canetas para o quadro e descem as escadas a todo o gás. “Bom ano para ti”; “Já não sei onde é a minha sala”; “Vemo-nos lá, até já”, ouve-se entre o grupo. Uns mudam de edifício, outros percorrem zonas cheias de alunos amontoados e barulhentos. As aulas recomeçam nas salas onde as janelas e as portas nunca se fecham. “Agora temos de falar baixinho, as portas ficam todas abertas”, comentam algumas funcionárias que apontam à mão os novos horários numa secretária de madeira.
Quem passa nos corredores ouve a gramática inglesa a cruzar-se com a fotossíntese e as equações de matemática a misturarem-se com a Revolução Francesa. “As vossas atitudes também contam para a nota e baloiçar a cadeira é uma delas”, repreende um professor. “Vais à casa de banho?”, questiona uma funcionária vendo um aluno a sair de uma das salas, garantindo que este não está perdido. Durante os exercícios individuais, o silêncio impera, os alunos estão a escrever, concentrados. São precisamente nesses breves instantes que alguns professores aproveitam para vir à porta da sala descolar a máscara na cara para poder respirar melhor. “Está quase, doutora”, acalma uma funcionária.
Quarta-feira
Luís, o porteiro respeitado. Emília, a confidente de todas as horas
De polo colorido, calças de ganga e sapatilhas confortáveis, Luís Rajão é porteiro na escola há quatro anos e um dos poucos homens a trabalhar ali. Tem 55 anos, nasceu e cresceu em Matosinhos, mas, em 1999, partiu para Angola, onde trabalhou na construtora Soares da Costa. “Fiz amizade com toda a gente lá, todos me tratavam bem”, recorda ao Observador. Ajudou a construir a famosa e imponente baía de Luanda, numa altura em que esta era considerada uma das cidades mais caras do mundo. “Depois o governo da família dos Santos deixou de pagar e nós, os funcionários, parámos as obras porque já tínhamos deixado de receber.”
O matosinhense viu-se então obrigado a voltar para a sua terra natal, onde arranjou emprego como porteiro na Escola Básica Estádio do Mar. “Eram alunos complicados, viviam em bairros e havia sempre problemas. A polícia tinha de estar sempre comigo na entrada, os pais ameaçavam-me e os filhos fugiam constantemente da escola. Estive lá um ano, mas depois, como tinha boas referências, vim para aqui.”
Na Zarco, Luís encontrou um ambiente muito mais calmo e selecionado. “Em mil alunos, há dez rebeldes e eu sei muito bem quem são”, garante, acrescentando que, mesmo com a máscara, sabe ver nos olhos de cada um quando está a mentir. “Geralmente, os mais velhos são mais alternativos que os mais novos, mas todos me têm respeito, foi uma conquista, nada é de um dia para o outro. Tenho de conversar bem com eles e saber levá-los. Hoje, se mandar alguém levantar ou pôr a máscara, eles obedecem-me.”
No seu posto de comando, o porteiro está sempre de pé e, muitas vezes, tem a companhia de um ouriço terrestre que se passeia por ali. Diariamente, Luís chama a atenção a quem tenta entrar sem máscara, relembra que o cartão do aluno é necessário para entrar na sala de aula e que a distância social é para ser mantida “até ao fim”. “Não tenho uma farda, mas sou uma espécie de relações públicas da escola, sou a primeira pessoa que todos veem”, diz, enquanto faz sinal a um carro para não estacionar à porta, pois sabe que daqui a poucos minutos chega a carrinha com as bebidas para o refeitório.
Depois da “avalanche de alunos” às 8h, para a primeira aula do dia, chega ao portão cinzento da escola um homem equipado com um fato de macaco transparente e um jato de água na mão para desinfetar a fachada, foi chamado pela câmara municipal de Matosinhos para assegurar a limpeza. Mais tarde, surgem também alguns pais, perguntam onde é secretaria, querem tratar do passe, do boletim de vacinas ou tirar dúvidas, Luís avisa-os que o atendimento é feito por marcação é orienta-os até à entrada.
O funcionário testa a sua memória todos os dias e prova saber de cor caras de alunos, professores e colegas de serviço. “Tenho de decorar horários, caras de alunos, professores e até de professores estagiários, como estes que entraram agora”, afirma, enquanto aponta para três estagiários de educação física. “Pronto, estes também são fáceis, porque chegam sempre equipados.”
“Sr. Luís, onde está a minha turma?”, pergunta uma aluna, afastando a máscara da cara para se fazer ouvir melhor. “Tens de ir por ali, mas, se tiveres dúvidas, volta para trás, que a aula ainda não começou”, responde o porteiro, que parece já saber de cor e salteado os novos percursos para as várias salas. Se, de manhã, Luís toma conta do portão, à tarde é responsável pela manutenção do jardim da escola, do corte de plantas à recolha do lixo. “Dou uma volta pela escola e apanho sempre muita coisa. São latas de refrigerantes, papéis e agora máscaras, claro.” No portão traseiro, junto ao campo de futebol, agora utilizado para a saída, o funcionário tem uma pequena oficina onde gosta de ter tudo organizado. Além dos contentores do lixo para a reciclagem e bolas de futebol apreendidas, há um rol de perdidos e achados que vão das vuvuzelas às mochilas.
Neste arranque do ano letivo, o porteiro acredita que será necessário “pelo menos um mês de adaptação”. “Ainda há muita confusão de informação, tanto para nós como para eles, mas acho que vai tudo correr bem”, admite. A escola irá receber seis funcionários novos para reforçar o serviço, uma vez que as exigências são agora “mais do que muitas”. “Temos de estar com mil olhos.” Na opinião de Luís Rajão, o grupo deveria ter mais homens a trabalhar e explica as razões. “Para carregar coisas mais pesadas ou limpar o balneário masculino, é mesmo necessário ser um homem a fazê-lo.”
Emília Carvalho chega ao portão com um Ben-U-Ron na mão, está à procura da pessoa que tinha dores de cabeça e lhe pediu o medicamento, mas não a encontra. De bata azul, voz rouca, duas pérolas como brincos e um molhe de chaves pendurado ao pescoço, a funcionária trabalha há 30 anos nesta escola, é uma das caras mais antigas da casa e garante conhecê-la “de fio a pavio”. Foi aluna na Zarco no 8.º ano, regressou depois para terminar o 12.º à noite e confessa ter “mais do que uma relação emocional com estas quatro paredes”.
Não conseguia viver noutro sítio que não fosse em Matosinhos, casou-se aos 19 anos, teve um filho aos 20 e soube através de um anúncio de jornal que a escola iria abrir um concurso para novos funcionários. Apresar de só poder entrar na função pública aos 21 anos, apresentou-se como “emancipada”. “Já era independente, mostrei que era casada, pagava as minhas contas e tinha um filho, mas mesmo assim não me aceitaram.”
Acabou por arranjar trabalho como costureira numa fábrica nas redondezas, mas, mal teve a idade permitida, voltou a tentar a sua sorte e conseguiu. “Quando cá entrei para trabalhar, senti-me logo em casa.” Começou com um contrato de três meses e, após 15 dias de férias, foi chamada para voltar. A sua experiência faz com que tenha mil e uma histórias para contar — do aluno que lhe bateu e a levou a tribunal, a outro que lhe confessou os dilemas da sua vida amorosa.
“Um dia, um aluno veio ter comigo a falar muito baixinho e disse que queria conversar a sós. Num intervalo, chamei-o e ele contou-me que a namorada estava com um atraso e não sabia o que fazer. Disse-lhe para ir ao centro de saúde, a uma consulta de acompanhamento familiar, mas contou-me que um familiar trabalhava lá e não podia. Então marquei eu própria uma consulta no meu médico, com o meu nome e os meus dados, a miúda foi lá, faz o teste e todos os exames necessários. Não estava grávida, mas assim ficaram todos mais descansados.”
No currículo, Emília diz ter episódios “que davam um livro”. Já separou miúdos de brigas acesas e adolescentes de um namoro mais fogoso, tomou conta da segunda geração de várias famílias e, apesar do cansaço, gosta do que faz. “D. Emília, gosta das minhas sapatilhas novas?”, questiona um aluno que passa com o lanche na mão. “Ai, que eu lembro-me de ti quando ainda me davas pelo cotovelo e agora já calças o 40 e tal”, responde, divertida, a funcionária.
O silêncio regressa quando as aulas começam e é tempo de reforçar o papel higiénico nas casa de banho, organizar o refeitório e assegurar que não há lixo no chão. “Onde é que o menino vai? Não está em aula? Não sabe que tem uma casa de banho no seu setor? Ah, veio passear para ver se o tempo passa mais rápido, não é?”, atira a um aluno que encontra num corredor vazio.
Emília Carvalho está atenta aos alunos que passeiam durante a aula, à professora que vai carregada, preocupa-se com as mesas que faltam nas salas e com a fila “em bando” no refeitório. Quase nada lhe escapa. “A nossa grande luta não serão as máscaras, mas sim a distância social.” A funcionária explica que há uma geração “cada vez mais indisciplinada” a contrastar com miúdos “de bom coração”, mas não tem dúvidas de que “tudo começa em casa”. “São os pais que os têm de educar, nós temos que lhe ensinar. A escola não pode fazer tudo. Às vezes, passo-me do carretos com alguns comentários que vejo na internet sobre isto”, admite revoltada.
Para a auxiliar, a pandemia veio mostrar aqueles que “têm ou não uma boa cabeça” e diz ter a esperança de não ver a Zarco fechar com casos positivos. “Há alunos que têm medo, chegam aqui com duas máscaras na cara, até recusam partilhar bolachas com os colegas e sentem-se desconfortáveis por estar numa sala de aula com tanta gente; depois há os que, infelizmente, não têm noção da gravidade disto tudo.”
Quinta-feira
Entre a vontade de fumar e o desejo de jogar à bola. No recreio, a máscara fica no queixo
O regresso às aulas é marcado com uma boa dose de apreensão e alguma vontade de aproveitar o tempo perdido, sendo notório dentro e fora da sala de aula. Uma das maiores mudanças em época de pandemia é o facto de as aulas serem maiores, com 110 minutos, e os intervalos mais curtos, com apenas 10. Nenhum toque de campainha marca o momento de entrada e saída e abandonar a escola durante o intervalo deixou de ser completamente permitido. Se, antigamente, havia tempo para comer, jogar e conversar, agora as prioridades dividem-se.
Uns preferem trazer o lanche de casa para fugir das filas, outros optam por utilizar as casas de banho durante as aulas para evitar aglomerados. A dos rapazes tem uma lotação de oito pessoas e a das raparigas de apenas quatro, ambas têm disponíveis lavatórios alternados e os secadores das mãos estão cobertos com película aderente para não serem usados. No intervalo, a máscara está quase sempre no queixo e o distanciamento social é apenas uma miragem.
— “Meninos, olhem a máscara na cara”, diz em voz alta uma funcionária.
— “Estamos a comer”, justificam os alunos.
Os mais novos correm disparados de mochila às costas para chegar em primeiro lugar ao melhor banco do jardim, já os mais velhos passeiam calmamente entre os corredores de cadernos na mão e olhos atentos ao sexo oposto. O refeitório deixou de ter espaço para jogar às cartas ou xadrez; cá fora, as três mesas de matraquilhos estão forradas com película aderente e no campo de futebol não se veem bolas de futebol ou de vólei, a sua cobertura serve apenas para abrigar da chuva.
Há quem dê voltas à escola de braço dado com a melhor amiga para esticar as pernas, outros, de cabeça baixa, aproveitam o tempo livre para atualizar as redes sociais no telemóvel. “Na quarentena, engordei ou emagreci?”; “A voz deste professor parece a do Marcelo”; “Qual foi a média para entrar no curso do teu irmão?”; “Estou farto desta máscara, podiam inventar outra coisa que nos deixasse respirar” são algumas frases orelhudas que ecoam nos muros de pedra e nas escadas do pátio.
— “Olhem este lixo todo no chão, não veem o caixote?”, pergunta uma funcionária, irritada.
— “Foram as gaivotas, não fomos nós”, reagem os alunos.
Se uns optam por ler um livro afastados da confusão, outros tentam encontrar os colegas no recreio, uma tarefa ainda mais difícil quando há novas entradas e saídas do edifício. “Onde estás? Ok, vou aí ter”, dizem ao telemóvel. As raparigas tiram selfies no espelho das janelas das salas de aula ou ensaiam as coreografias do Tik Tok, os rapazes improvisam um jogo de futebol com um pacote de sumo ou uma bola de ténis.
“Bom dia Sr. Luís, posso ir fumar lá fora?”, questiona um aluno de headphones nos ouvidos e um boné na cabeça. “Agora, com o vírus, vai ser complicado. Eles estavam habituados a ir fumar e comprar gomas ao outro lado da rua, mas agora não vão poder sair”, confidencia o porteiro, acrescentando que, por vezes, a pressa para atravessar é tanta que a probabilidade de serem atropelamentos aumenta. “No outro dia, um aluno foi contra o metro que passa mesmo aqui à porta. Se lhes acontecer alguma coisa, não nos podemos responsabilizar, os pais autorizam que eles saiam.” Nesta altura, o funcionário abre algumas exceções. “Sais aqui, mas entras pela outra porta. Ok?”. “Temos de ganhar a confiança deles, se não, nada feito. Eles arranjam um esconderijo qualquer e fumam na mesma”, justifica.
Dez minutos depois, regressam todos em fila, quase em jeito de procissão, para o interior do edifício, mas no caminho tropeçam em algo surpreendente.
— “Olhem, um pássaro morto.”
— “Aposto que foi uma gaivota que o matou.”
— “Sim, são sempre as gaivotas.”
Sexta-feira
A indignação dos primeiros almoços num refeitório mais vazio e silencioso
Poucos minutos antes das 12h, uma fila começa a formar-se entre a reprografia e o refeitório. “Não vou voltar a dizer para se separarem, parece que estou a lidar com crianças”, diz, em voz alta, Emília Carvalho. A funcionária tenta assegurar o distanciamento social entre os alunos que optam por almoçar na escola, mas a tarefa é quase impossível.
Antes de entrarem os primeiros impacientes, Emília já desinfetou as mesas e cadeiras, os micro-ondas e os balcões, de luvas calçadas, máscara no rosto e touca na cabeça. A cortina do buffet sobe lentamente à manivela e, através dela, já é possível ver as conchas da sopa a encher várias tigelas, distribuídas pelo balcão de vidro a fumegar. “Depois de desinfetar as mãos, podem começar a entrar”, ordena. Um a um, ainda que com poucos centímetros de distância, os alunos retiram um tabuleiro, uma embalagem da papel com os talheres e começam a servir-se do pão, sopa, prato e sobremesa. A ementa já é conhecida, tem detalhado o número de calorias, proteínas ou gorduras, e inclui uma opção vegetariana.
Na mesma fila, há alunos que solicitam a nova opção de takeaway, pensada para os que não têm aulas de tarde e podem comer em casa. Se, de um lado, uns retiram o prato do dia, confecionado horas antes na cozinha da escola, por uma porta lateral entram os que trazem uma marmita de casa para o almoço. “Tens de desinfetar o micro-ondas depois de aqueceres. Não te esqueças”, recorda Emília.
O refeitório tem agora menos de 50 lugares disponíveis para cada turno — um às 12h e outro às 13h —, menos de metade da capacidade habitual. Cada mesa tem apenas um lugar, mas há quem desafie as regras e mude a posição das cadeiras para conseguir comer frente a frente com os colegas ou faça um compasso de espera de tabuleiro na mão para encontrar o melhor poiso. O momento da refeição deixou de ser sinónimo de convívio e o refeitório ficou mais vazio e silencioso. “Parece que estamos todos de castigo”, queixa-se um aluno, inconformado na última fila.
“D. Emília, isto não tem talheres?”, pergunta uma aluna com um saco takeaway de plástico na mão. “Isto é para comeres em casa, não é para fazer um piquenique aqui. Se queres comer na escola, tens de ir para a fila.” Dúvidas esclarecidas, é tempo de assinalar as mesas limpas e sujas. Para isso, a funcionária tem na mão vários cartões plastificados, os verdes marcam as desinfetadas, os vermelhos identificam as mesas que precisam de ser limpas.
“Cuidado, o lixo não é para o chão”, avisa uma auxiliar que passa com a vassoura, vendo o plástico que embrulha o pão a voar com o vento que entra pela janela. “Aqui temos o 8 e o 80”, desabafa, descrevendo que há alunos atentos e “limpinhos” e outros “que simplesmente não querem saber”. No fim do almoço, que não pode ultrapassar os 20 minutos, os tabuleiros entram no carrinho estacionado junto à entrada e tudo é novamente limpo a tempo de o próximo grupo chegar.