Reportagem em Nova Iorque, EUA
Tudo em Frank Morano grita sono.
São 1h03 e este radialista está curvado na secretária do estúdio principal da WABC, uma das principais rádios conservadoras de Nova Iorque, com os olhos semi-cerrados e as faces avermelhadas. É a cara de quem está pronto para ir para a cama — e fica ainda mais perto disso quando se espreguiça ostensivamente para o seu lado esquerdo. Atrás dele, estão duas grandes janelas no canto deste prédio que dá para a 3.ª Avenida de Nova Iorque. Não se vê vivalma, mal se vislumbram luzes.
Tudo em Frank Morano grita sono. Até que Frank Morano começa ele próprio a gritar quando a luzinha vermelha do seu microfone se liga.
“Booooooom dia a todos! É segunda-feira! Prontos para começarem a vossa semana com uma nota positiva?”, pergunta, a abrir o programa “The Other Side Of Midnight With Frank Morano”.
O que se seguem são quatro horas de um programa de rádio invulgar para quaisquer padrões que não sejam os dos EUA, mas que em solo norte-americano é um dos fatores que mais agregam o lado conservador da política, os seus eleitores e as suas ideias, numa linguagem muito própria. Tudo isto com chamadas de ouvintes que ligam para falar do que quiserem — “estão à vontade para discordar!”, incentiva-os regularmente Frank Morano.
As conversas que se seguem vão desde a suposta “demência” do “pulha” Joe Biden até a uma questão tão simples como: “Quanto é que se deve dar de gorjeta a um tipo que instala a televisão por cabo?”
Donald Trump não nasceu com os talk-shows de rádio conservadores, mas é aqui que o trumpismo assenta as suas raízes com especial força. “O conservadorismo da talk radio coincide apenas em parte com o conservadorismo dos think-tanks de direita em Washington, das revistas e do próprio Partido Republicano”, escreveu recentemente Paul Matzko, autor do livro “Radio Right” e membro do think-tank libertário Cato Institute. “No início dos anos 2000, a talk radio abriu as portas a uma versão do conservadorismo que está menos interessada no mercado livre e nos limites do governo e mais centrada no etnonacionalismo e no populismo. É, no fundo, o núcleo do trumpismo — agora e no futuro, com ou sem um Presidente Trump.”
Frank Morano reconhece tudo isto — e nem é algo que lhe desagrade totalmente, até porque votou “entusiasticamente” em Donald Trump tanto em 2016 como nas eleições de 2020, por voto antecipado. Mas, ainda assim, e mesmo que a sua cara de cansaço sugira o contrário, este radialista de idade incógnita (“é o segredo mais bem guardado de Nova Iorque!”, gaba-se) abriu a emissão desta segunda-feira dizendo: “Hoje quero experimentar algo completamente diferente”. O quê, exatamente? Uma tarefa hercúlea nos EUA de hoje em dia: meter os dois lados da barricada a falarem um com o outro.
Para consegui-lo, Frank Morano tenta primeiro tirar a carga às eleições de 3 de novembro. “A cada ano eleitoral eles dizem sempre: ‘Estas são as eleições mais importantes das nossas vidas’”, diz, fazendo uma imitação jocosa dos apresentadores de televisão que dizem tal coisa. “A verdade dos factos é que só depois das eleições é que se percebe o quão importantes elas podem ser, porque ninguém sabe o que é vai acontecer durante a presidência dessa pessoa.”
Só depois desta introdução é que Frank Morano faz o pedido que tem em mente para as pessoas que se preparam para ligar de todas as partes de Nova Iorque (e algumas de mais longe, também) para entrar no programa. “Quero que defendam o candidato que vocês apoiam junto das pessoas que não o apoiam”, explica. “Se forem apoiantes de Trump, quero que expliquem a alguém que está indeciso ou que está a pensar em votar em Biden porque é que deveria antes votar em Trump. Se são apoiantes de Biden, quero que defendam porque é que alguém que esteja indeciso ou a pensar votar Trump deve afinal votar em Biden.”
“Liguem para o 1-800-844-9222”, diz Frank Morano, já de olhos postos no monitor do seu lado direito, onde tem a lista de ouvintes em espera. “Podem dizer o que quiserem!”
Frank Morano sabe que esta é uma causa perdida à partida, mas ainda assim tenta. Com o microfone desligado, diz-nos que está a tentar promover uma espécie de diálogo entre os seus ouvintes. “Estou farto de estarmos todos fechados nas nossas próprias caixas de ressonância”, diz, admitindo que a rádio para onde trabalha é “demasiadas vezes” isso mesmo. E, nas próximas horas, teria prova atrás de prova disso, chamada após chamada.
Por um lado, houve quem ligasse para defender Donald Trump em toda a linha, mas sem aparente preocupação em persuadir o outro lado a pensar o mesmo.
Um dos temas em voga foi a saída abrupta de Donald Trump da entrevista com Leslie Stahl, jornalista do programa “60 Minutos”, da CBS. “O que ele fez no ’60 Minutos’ foi excelente”, disse um ouvinte, identificado como “Johnny da Carolina do Norte” mas que nasceu e cresceu em Nova Iorque, terminando depois desta forma: “Ele vai encontrar todas as doninhas que andam por aí e depois vai fazer uma limpeza das grandes”.
Frank Morano ouve estas palavras enquanto enrola dois ou três fios de cabelo que apanha no lado direito da cabeça. Parece pensativo mas, ao mesmo tempo, pouco reativo ao que vai ouvindo do lado de lá.
“1-800-844-9222, sintam-se à vontade para discordar!”
A ligar do Arizona (mas também ele de Nova Iorque, mais propriamente de Brooklyn, como o sotaque deixa bem claro), um ouvinte chamado Carlos diz o que faria se tivesse estado na posição de Donald Trump naquela entrevista: “Logo no início tinha dito: ‘Adeusinho, que você é uma jornaleira. Vá mas é entrevistar o Joe Dorminhoco, a ver se o acordam”.
É precisamente em Joe Biden que muitas das chamadas acabam por redundar — e nem o tom nem o conteúdo são propriamente favoráveis ao ex-vice-Presidente.
A ligar de Bayonne, no estado de Nova Jérsia, um ouvinte chamado John repete a palavra “pulha” à exaustão para falar do democrata. “Eis por que não voto em Biden… Aquele pulha. Que pulha que ele é, a espiar contra a campanha [de Trump de 2016]. Ele e o pulha do filho dele, mais o pulha do irmão que teve um acidente de carro, matou uma pessoa e que deve dinheiro”, disse. “Que pulha. Ele e a família de pulhas.”
Já com a chamada terminada, Frank Morano lembrou os seus ouvintes de que a ideia era que falassem para convencer o outro lado. “E eu não creio que a maneira de conquistar votos entre os apoiantes de Joe Biden para o lado de Donald Trump possa ser feito a chamar-lhe repetidamente um pulha”, avisou.
Foi um conselho que caiu em saco roto.
“1-800-844-9222, podem dizer o que quiserem!”
De Nova Jérsia chega agora uma chamada de Joan, que aconselhou a todos que fossem à internet e pesquisassem “1972 Biden acidente mortal” — em alusão ao acidente de carro em que a então mulher de Joe Biden e a filha mais nova do casal morreram, e onde também os dois filhos ficaram feridos. Em tempos, Joe Biden sugeriu que o condutor de camião que abalroou o carro conduzido pela sua mulher estava embriagado — algo que não foi provado e, mais tarde, o democrata viria a aceitar.
Joan, porém, quer chamar a atenção para uma coisa: “Joe Biden difamou o homem durante 30 anos, o homem não foi responsável pelo acidente”. E depois de dizer que a culpa foi da mulher de Biden, por ter passado um sinal de STOP, rematou: “O homem não matou a família dele, a mulher dele é que foi responsável por matar a família inteira”.
Durante todo o programa, só um ouvinte parece ter uma voz crítica contra Donald Trump — “parece” porque a sua intervenção foi cortada pelo apresentador do programa. Trata-se de um ouvinte identificado como “Michael, de Nova Jérsia”, e que começou por dizer a Frank Morano que estava “1000% errado” por não dizer que estas são “as eleições mais importantes que alguma vez tivemos”. E, depois, entregou-se às metáforas.
“Eu vou dizer-te porquê”, começa por dizer. “Em todos os casos em que tivemos atos de guerra, atos de terrorismo, queira-se ou não essas ocasiões uniram o país, porque nós somos uma família. O inimigo vinha de fora. E o inimigo de fora cria união cá dentro. Se eu tiver uma discussão com a minha mulher vamos gritar um com o outro. Mas se um estranho aparecer e disser à minha mulher que lhe vai bater, eu salto-lhe para cima e vou tentar matá-lo, porque ele está a atacar a família…”
Frank Morano procura interrompê-lo, pedindo-lhe que concretize: “Quem é ‘ele’?”.
Michael, de Nova Jérsia continua: “… pela primeira vez, temos um cancro a comer o país por dentro. Estamos a ser destruídos. Isto nunca aconteceu antes…”
Frank Morano insiste: “Quem é o cancro?”.
Do outro lado, Michael vai lançado: “… Lincoln, na Guerra Civil…”.
É aqui que Frank Morano carrega no botão nuclear do seu programa de rádio e tira do ar Michael, de Nova Jérsia: “Okay, Michael, estás a empatar e a aborrecer-me”.
Para desanuviar, fala-se de gorjetas e com um jornalista português
Só há uma vez em que Frank Morano lê durante todo o seu programa, que é quando faz um anúncio a uma marca de chá gelado que promove como a melhor bebida para ajudá-lo a fazer o horário da 1h às 5h da manhã — embora, durante esse tempo, não beba nada além de água.
“Este horário é de matar. É de matar. Isto era o que eles deviam fazer aos combatentes inimigos que estão na Baía de Guantánamo: pô-los a apresentar programas de rádio da 1h às 5h da manhã todos os dias”. Mais à frente, promove o chá bom para as pessoas que “gostem de fazer cocó”.
De resto, quando não está a vender chá, Frank Morano fala sobre o que lhe vem à cabeça, como lhe vem à cabeça. Essa é, geralmente, a parte do programa em que Frank Morano tenta desviar o tema da política. Até porque, mesmo sendo apoiante de Donald Trump e interessado em política local e nacional, se confessa um pouco farto.
“Nesta rádio pode-se dizer que sou o gajo da despolitização”, afirma. Quando o diz, não parece muito convencido — não necessariamente quanto às intenções próprias, mas certamente quanto aos resultados. “Eu tento, eu tento, porque acho que é parvo deixarmos que a política dite todos os aspetos da nossa vida. Hoje em dia tudo é utilizado como divisão política. A roupa que escolhemos vestir é um ato político, os filmes que vamos ver são um ato político, o sítio onde vamos às compras é um ato político”, diz. “Isto não faz sentido porque, no final de contas, vamos ter de viver todos juntos.”
Essa polarização, porém, deve muito a programas nas talk radios dos EUA, na sua larga maioria conservadoras, que ao transmitirem programas de comentário e de opinião pública onde raramente se ouve uma voz dissonante criam um sentimento de comunidade — como se cada um dos ouvintes fosse um insider de um grupo de iluminados. “É poderoso o sentimento de que ao ouvir uma determinada estação de rádio alguém possa ser despertado para uma verdade oculta sobre o verdadeiro modo de funcionamento do mundo enquanto o resto do ‘rebanho’ vive num sono profundo”, escreveu Paul Matzko, autor do livro “Radio Right”.
Ainda assim, Frank Morano tenta contrariar esta imagem e fá-lo em várias tentativas.
A certa altura, fala de como o desporto escolar, já anteriormente em queda, é cada vez menos popular em tempos de Covid-19 tema que convida os espectadores a comentar.
“1-800-844-9222, sintam-se à vontade para discordar!”
Mais à frente, conta como um estudante foi admitido na Universidade de Harvard depois de ter escrito no ensaio de candidatura a expressão “Black Lives Matter” 500 vezes (na verdade, foram 100 vezes e noutra universidade prestigiada, a de Stanford).
“1-800-844-9222, podem dizer o que quiserem!”
Ninguém responde. Pelos vistos, ninguém se preocupa muito com esses temas — muito menos com eleições à porta. Até que conta um episódio da sua vida familiar.
Frank Morano está a mudar de casa e conta que, num destes dias, um funcionário da empresa de telecomunicações da sua escolha lhe foi instalar televisão, telefone e internet. Terminado o serviço, o homem despediu-se de Frank Morano e da sua mulher, Rachel. Nesse momento, esta perguntou ao marido: “É suposto darmos-lhe uma gorjeta?”. Ambos concordaram que sim, por princípio. Mas depois chegaram a outra questão: “Quanto é que se dá de gorjeta ao homem da televisão por cabo?”. No final de contas, entre o que tinham na carteira, a escolha era esta: ou lhe davam quatro notas de um dólar, ou então uma nota de 20 dólares. E foi por esta última que se decidiram.
“Estou curioso: vocês dão gorjeta ao homem da televisão por cabo? E quanto é que dão?”, perguntou aos ouvintes. “1-800-844-9222!”
De repente, este passa a ser o tema mais requisitado do programa “The Other Side Of Midnight With Frank Morano”.
“1-800-844-9222! Quanto é que dão ao homem da televisão por cabo?”
A Jill, de Bloomfield, Nova Jérsia, foi a primeira a ligar. “Eu tenho um sistema”, diz. “Para os homens do cabo, eletricistas, canalizadores… tenho sempre umas notas de 10 guardadas e digo-lhes: ‘Deixe-me pagar-lhe o almoço.’” E disse até que daí a umas horas ia ao banco, porque já lhe estavam a faltar as notas de 10 para gorjetas.
“1-800-844-9222!”
Atende Rob, do condado de Rockland, no estado de Nova Iorque. “Eu já estive na mesma situação em que tinha uma nota de 5 e outra de 20. Dei-lhe uma de 20”, disse. “Ele ficou muito contente.”
“1-800-844-9222!”
É a vez de Frankie, em Brooklyn. Está na hora de uma voz dissonante: “Não tens de dar nada ao homem. Eu dou-lhes sempre 5 dólares e digo ‘olha, vai beber uma cerveja, obrigado!’”. Mas mesmo assim, admite, às vezes só dá um obrigado. “É melhor não ficarem mimados!”, diz. “20 dólares é uma loucura.”
“1-800-844-9222!”
Agora fala Jimmy, de Staten Island, que entra no programa a falar um italiano ao estilo de Tony Soprano: “Hello, Francesco, come stai?”. E depois lá chega ao assunto que a todos parece preocupar: “20 dólares de gorjeta? Vai passear! Se for pela altura do Natal dou-lhes 20 dólares, se não for só lhes digo ‘não brinquem com fósforos e tenham uma boa noite’”. Ainda assim, admite que, se o trabalho for bem feito, pode dar qualquer coisa: “Dou-lhes metade de uma sandes de mortadela, um bocado de mozzarella e um bom copo de vinho. O que é que achas? Dou-lhes uma nota de cinco”. E continua: “Também o que eles fazem é o que é, estão a ligar uns cabos que eu não me dou ao trabalho de perceber como se ligam, não estão propriamente a pintar um Picasso no meu teto”.
Este acaba por se tornar num dos temas da noite e, no fundo, aquele que acaba por gerar aquilo que Frank Morano tanto procurou: debate e troca de ideias. Tanto que, a 15 minutos do final do programa, o apresentador anuncia que tem em estúdio “um cavalheiro” que o acompanhou em estúdio ao longo do programa — isto é, eu próprio — e a conversa rapidamente se vira para as gorjetas.
“Achaste que seria um bom uso do teu tempo gastares as primeiras horas desta segunda-feira comigo e a observar o meu programa. Arrependeste-te?”, perguntou-me Frank Morano.
“Não, de todo”, respondi.
“Estás a divertir-te?”, perguntou-me Frank Morano.
“Sim, tem sido interessante, tenho estado a apontar as dicas sobre as gorjetas aos homens da televisão por cabo. Não é coisa que se faça em Portugal, mas pode ser que passe a ser. Talvez venha a tornar-me num instalador de televisão por cabo para beneficiar dessa moda”, respondi.
Frank Morano riu-se de forma exagerada, mas depois fez uma pergunta séria: “Que tipo de artigos é que vieste escrever para os EUA?”.
“Estou aqui para cobrir as eleições e estou a ir a sítios que sinto que são importantes para que os nossos leitores em Portugal entendam o que se está a passar nos EUA”, comecei por responder. “E o teu programa é uma boa razão para vir até aqui a Nova Iorque. Afinal de contas é um programa com uma audiência conservadora numa cidade que é muito liberal”, explico. “É uma história interessante.”
“É interessante, sim”, devolveu-me Frank Morano.
Quem achar o contrário, já sabe: “1-800-844-9222, sintam-se à vontade para discordar!”