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Patrícia Vasconcelos acredita que o sucesso do streaming "vai permitir que se dê oportunidade a novas pessoas para aparecerem no mercado, estas profissões só funcionam quando têm essa oportunidade de experimentar"
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Patrícia Vasconcelos acredita que o sucesso do streaming "vai permitir que se dê oportunidade a novas pessoas para aparecerem no mercado, estas profissões só funcionam quando têm essa oportunidade de experimentar"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Patrícia Vasconcelos acredita que o sucesso do streaming "vai permitir que se dê oportunidade a novas pessoas para aparecerem no mercado, estas profissões só funcionam quando têm essa oportunidade de experimentar"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Patrícia Vasconcelos, a diretora de casting na Academia de Hollywood: "Nesta profissão, ou sou a maior ou sou odiada"

Aos 55 anos, é o mais recente nome português a poder votar nos Óscares. A pandemia trouxe-lhe mais trabalho, o streaming também e confessa: "O perfil do ator português? Um ator é um ator, ponto".

Patrícia Vasconcelos foi, este mês, convidada a integrar a Academia de Hollywood. O convite não chega tarde nem cedo. Acontece, acredita, pelo reconhecimento do seu trabalho. Mas não é nada mais do que um bónus para alguém que anda neste ofício desde os anos 90, diz. Até porque, com a pandemia, o ritmo de trabalho aumentou. Não se pode parar muito para saborear. As plataformas de streaming carregaram no acelerador. São precisos mais atores para mais produções. E ainda bem que assim é. “Acho que não tenho o vício do trabalho, tenho um privilégio enorme de fazer este ofício de que gosto cada vez mais. O volume de trabalho aumentar tem uma coisa boa: permite dar oportunidade a novas pessoas no mercado”, refere em conversa com o Observador.

Aos 55 anos, Patrícia Vasconcelos não tem vontade nenhuma de abrandar. Tem uma vida muito ativa, mas não se esquece de cuidar de si. Não sai de casa sem tomar o pequeno almoço e, podendo, vai ao teatro três vezes por semana para tentar apanhar o próximo talento. E mesmo vendo cerca de 40 selftapes (gravações feitas por quem se candidata a ser recrutado para filmes ou séries) por dia, não perdeu a excitação de descobrir o ator que se segue. “Passo-me da cabeça quando vejo algo espetacular. Fico histérica. Sou muito sensível ao talento, comove-me muito.”

Foi por isso que criou o Passaporte, projeto que, este ano, chegou à sexta edição. Diretores de casting de todo o mundo vêm procurar talento português, dos novos aos mais velhos — nomes como Albano Jerónimo ou Lídia Franco, por exemplo, que vão fazendo currículo em séries norte-americanas ou blockbusters. Uma ideia levada para a frente graças à “casmurrice” de Patrícia Vasconcelos, “obrigando” estúdios e produtoras a passarem a fronteira com Espanha. Achava possível ver atores portugueses em palcos maiores quando começou numa carreira que nem existia? “Completamente”, diz.

Só que dentro desta área, e por ser nome de referência na atividade, também se criam inimigos. Ou, pelo menos, quem lhe vá exigir satisfações à saída de uma estreia, por exemplo. Faz parte. Sabe que precisa tanto dos atores como eles dela. Só não lhes diz onde fica o seu escritório por “precisar do seu recanto”. “Há quem possa achar que, por não os chamar, não gosto deles. Às vezes não é por nada. Digo-lhes para me alimentarem porque vibro com o que fazem. Mas o meu escritório ninguém sabe onde é”, afirma.

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Para Patrícia Vasconcelos (filha do realizador António-Pedro Vasconcelos), a expressão “ator português” não existe. São atores, ponto final. Tal como falar numa indústria no cinema em Portugal ou na ausência da categoria de “casting diretor” na lista dos Óscares. Não são sinas, são coisas que, a seu tempo, vão ser alteradas. É essa a sua esperança. Quanto a filmes portugueses na corrida à estatueta dourada? “Não sei, isso é outra conversa. Em Portugal ainda fazemos omeletes com poucos ovos. São milagres, às vezes, mas não se fazem sempre”, termina.

"Vou ao teatro, em média, três vezes por semana. Às vezes vou mais. Esse é o meu motor. Não tanto o audiovisual"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Com tantos anos de experiência, o ritmo não abrandou?
Acho que não tenho o vício do trabalho. Tenho o privilégio enorme de fazer um ofício que adoro. A palavra “trabalho” parece estar ligada a esforço. No meu caso, tenho tendência a pensar que não é isso. É privilégio porque gosto. Gosto cada vez mais, mesmo 30 e tal anos depois. Cada dia que passa vou apurando o meu ofício. Com a pandemia, o trabalho duplicou.

Duplicou como?
Nunca vi nada assim. Um dos negócios que ganhou muito com a pandemia foi o streaming, as plataformas digitais. A sensação que me deu foi que todos os que tinham conteúdo, queriam produzi-los rapidamente.

Foi uma urgência, estávamos todos em casa.
Completamente. Nunca tive tanto trabalho como agora. Quer dizer, nos anos 90 houve um boom incrível. Mas fazia muita publicidade que me permitia fazer cinema, porque não havia dinheiro para o pagar. Fazia muitos filmes com pouco orçamento, sem sequer ter remuneração nenhuma para o trabalho de casting. Foi algo que levou muito tempo até ser implementado.

Era uma profissão inexistente.
Zero, zero. Não temos uma indústria cá, nunca houve essa necessidade de procurar atores. Havia um leque mais pequeno, menos produções, os atores circulavam de projeto em projeto. Hoje em dia, quando acho que vou fazer o casting ideal, alguns atores já não estão livres. Portanto, tem de se dar oportunidades ao próximo, o que é fantástico.

Nivelar um pouco?
Não sei se é isso. Um ator tem a possibilidade de brilhar num papel quando lhe é dada essa oportunidade. Ou faz algo de teatro que decidiu fazer ou, no audiovisual, na maior parte dos casos, faz o que lhe chega como oportunidade. Vou ao teatro, em média, três vezes por semana. Às vezes vou mais. Esse é o meu motor. Não tanto o audiovisual, curiosamente. E posso nem gostar da peça ou achar que o ator não está no seu melhor, mas fica-me sempre qualquer coisa registada no computador interno. Quando estou a ler, lembro-me de pessoas que vi há 10 anos.

"[com as plataformas de streaming] Tornou-se necessário fazer mais castings. Se quiser contratar um bom diretor de fotografia, esqueça, está tudo ocupado. Se quiser um bom assistente de realização, esqueça, está tudo ocupado."

O teatro ainda lhe dá uma radiografia mais completa do potencial de um ator?
Sim. Nenhum diretor de casting pode trabalhar sem ir ao teatro. Cada um tem o seu sistema, mas ver só cinema e televisão não é suficiente para mim.

Essa pressão das plataformas vê-se mais onde?
Tornou-se necessário fazer mais castings. Se quiser contratar um bom diretor de fotografia, esqueça, está tudo ocupado. Se quiser um bom assistente de realização, esqueça, está tudo ocupado. Estava a falar com uma amiga para fazer repérage para uns estrangeiros, não conseguiu. Isto tem uma coisa boa: vai permitir que se dê oportunidade a novas pessoas para aparecerem no mercado. Estas profissões só funcionam quando têm essa oportunidade de experimentar.

Então vê com bons olhos a entrada destas plataformas?
Claro, como poderia não ver?

Pergunto-lhe porque o ano passado houve uma grande discussão à volta da diretiva europeia sobre o audiovisual. A entrada da Netflix no mercado português gerou grandes divisões.
Isso é outro assunto. Nem estou muito por dentro, por vezes passa-me ao lado. A partir do momento em que nós, portugueses à beira mar plantados, começamos a ter uma excelente programação na RTP2, com um trabalho incrível da Teresa Paixão, onde põe séries dinamarquesas como o “Borgen”, em que não percebemos nada do que dizem e é um sucesso, pensamos assim: porque não poderá ser ucraniano, argentino ou romeno? A partir daí, o que interessa é o conteúdo, a história. Ainda ontem estava a pensar que, caramba, tenho 55 anos, continuo com a mesma paixão e entusiasmo em pôr uma cara numa personagem. Há poucos dias jantei com um realizador que ainda não tem o guião. Perguntei quando queria filmar. Disse-me que queria filmar em novembro. Mas o casting ainda não estava feito. Pedi-lhe para me fazer um pitch. Assim que o fez, comecei logo entusiasmada a ligar as caras às personagens. Esse entusiasmo é o que me alimenta.

Voltando à pergunta. Temos tido vários atores portugueses a entrar em produções estrangeiras…
… graças ao Passaporte.

Sim, já lá vamos. Existe um receio de que esta lei faça com que o cinema português perca a sua independência e, por consequência, a sua raiz. Aliás, há quem defenda até que certas produções podem desaparecer assim. Vamos ter que ceder um pouco para chegar mais longe?
Nem todos os conteúdos das plataformas de streaming são bons. Nunca pensei muito nisso, mas à partida, parece uma coisa boa.

Vamos olhar para o motivo da nossa conversa: o convite para integrar a Academia de Hollywood. Demorou a chegar?
Não, porquê? Jamais me passaria pela cabeça dizer isso. O meu movimento é ir, é andar para a frente. Isto é um bombom nos braços.

"Esta sempre foi e continua a ser uma profissão de bastidores. Somos um elemento importante, mas, na prática, somos um mero colaborador de um realizador. Ajudamos a refletir sobre as personagens."

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Na prática, o que significa o convite?
Significa um reconhecimento do meu trabalho. A partir do momento em que a Academia abriu para o mundo, a sensação que me dá é que eles estão atentos a pessoas que, consideram eles, podem ter um contributo para a votação dos filmes. Eles fazem convites profissionalizados, com um estudo prévio. Estar ao lado do Wagner Moura deixa-me lisonjeada. O próprio presidente da academia é um casting director. Na Academia, cada um vota nos seus pares. Mas como ainda não existe essa categoria — mas um dia lá chegaremos –, o que tenho de fazer é votar no melhor filme. Depois, quando chegar a seleção final, aí já podemos votar em todas as categorias. É isso que vai acontecer.

A ausência de categoria do seu ofício nos Óscares não acaba por deixar um amargo de boca? É meio irónico.
Curioso, não é? Sempre foi e continua a ser uma profissão de bastidores. Somos um elemento importante, mas, na prática, somos um mero colaborador de um realizador. Ajudamos a refletir sobre as personagens. Há realizadores que vêm com ideias muito fixas, outros que não têm ideia nenhuma e pedem para propor. Cada um tem as suas características. Gosto disso. Há quem receba prémios e nos agradeça logo. Outros não, nem sequer falam. Há atores que falam dos casting directors quando vencem algo. Mesmo assim, ao longo destes anos, ainda não foi reconhecido o mérito do nosso trabalho. Há uma linha ténue, porque há alturas em que fica a pergunta: quem foi o primeiro a meter o nome na mesa?

Isso gera fricção.
Há realizadores que não reconhecem. Não o digo em jeito de crítica, é assim. Acho que aos poucos vai mudar. Um dia vamos ter um Óscar. Nos Bafta já existe. Nos International  Casting Director Network organizámos um prémio em Locarno, agora em Saravejo. Conseguimos, dentro desta organização, fazer com que se vote no melhor casting. Aos poucos isto vai mudar.

E filmes portugueses na corrida à estatueta dourada?
Isso não sei. É toda uma outra conversa. O dinheiro que um produtor tem de ter para a promoção de um filme… é muito dinheiro. Em Portugal ainda fazemos omeletes com poucos ovos. São milagres, às vezes, mas não se fazem sempre.

Qual foi o último em que participou?
Olhe, conto-lhe já um. Este dois trimestres de 2021 foram um fartote de milagres. Fiz uma série de época com casting internacional que acabou agora, o “Cuba Libre”, com um orçamento muito limitado. Tive atores suíços, mexicanos, cubanos, argentinos. Foi um milagre. Como se faz um casting desses com tão pouco dinheiro? Mas conseguimos. Para já, sou casmurra, se é para fazer, faço. Estou orgulhosíssima.

Essa ideia de fazer muito com pouco não pode mudar?
Aos poucos, vamos ter mais orçamento para melhorar algumas áreas. Dificilmente me ouvirá a fazer esses comentários. Se assim fosse, não fazia metade do que faço.

Fazendo uma retrospetiva, acreditava que nomes como o da Daniela Melchior estariam em grandes produções norte-americanas [é uma das personagens do filme “Suicide Squad 2” realizado por James Gunn]? Achava que era possível?
Completamente. Tenho estes contactos com colegas estrangeiros há muitos anos. Participo na categoria de “Shooting Stars” do Festival de Berlim. Quando comecei a frequentar essa categoria, ainda eram só dez. Cada país destacava um ator da comunidade europeia e entravam todos porque eram só dez. Quando começou a aumentar o número de países, mudaram o sistema, e passou a haver 26 países e um júri só para selecionar dez. Houve uma edição em que fiz parte do júri, porque era rotativo. Foi o ano em que a Carey Mulligan foi escolhida. Votei nela. Havia até uma candidata portuguesa que acabou por não ser selecionada. Abstive-me de votar na pessoa do meu país.

Já nessa altura, em conversa entre nós, falávamos sobre o que estávamos a fazer. E estamos a falar de diretores de casting que trabalham com grandes realizadores internacionais. Que fizeram grandes filmes. E eu, pequenina me sentia, não tinha tanta partilha. Os meus filmes não tinham o mesmo alcance. Só que dizia-lhes sempre: porque é que vocês param em Espanha? Ficavam sempre a olhar para mim, nunca tinham pensado nisso. Disse-lhes que deviam vir a Portugal porque iam descobrir atores sem sotaque. Essa conversa só existia uma vez por ano.

"Luto para que [um ator português] seja equacionável para qualquer papel. Porque não poderá ser? Um ator é um ator, ponto. Tem de ter determinadas características que qualquer um tem de ter: inteligência, disponibilidade, talento."

Qual era a reação deles?
Diziam que nunca tinham pensado nisso. Que devíamos ir. Acho que nem sequer tinham olhado para o mapa. Estou a exagerar, claro. Isto porque havia todo um trabalho da Katrina Bayonas, agente da Penélope Cruz, de pôr os atores espanhóis dela no mapa. Depois, houve um dia em que uma grande diretora de casting veio a Portugal para um blockbuster. Ficou impressionada, deu-me razão. Não ficou nenhum dos atores, mas ficaram no radar.

Em que ano?
Se o Passaporte tem seis anos, se calhar há dez, doze anos. Esta conversa deles virem cá foi sendo recorrente, até que um dia fizeram-me um desafio através da Academia do Cinema em Portugal. Conseguimos arranjar uma verba para colocar em prática esta ideia de trazer casting directors.

Que avaliação faz do Passaporte?
Um projeto para ser implementado e perceber se funciona leva cinco anos. Esta é a minha experiência. Cria o projeto, luta por ele, se estive vivo ao fim de cinco anos, vai sobreviver. E eu lutei pelo Passaporte. Revelou-se, de facto, ser uma ideia simples e que funciona. O circuito é feito ao contrário: é o diretor de casting que vem cá, não é o ator que vai bater às portas. Na primeira edição, houve logo resultados imediatos, apesar de os resultados só terem sido divulgados um ano depois. Hoje em dia, os resultados são ainda mais rápidos. Dantes, levava tempo só a hipótese de uma selftape. Agora estão cá e já estão a fazer selftapes. Saem da reunião com um texto para fazer. Porque há tanto trabalho, logo é um privilégio estar a conhecer ainda mais atores. Não pode haver mais de dez atores por ano, se não, qualquer dia, o projeto morre.

O perfil do ator português mudou muito?
Não sei o que é isso do perfil.

Bem sei, por isso é que estou a perguntar.
É um ator que vive em Portugal. Luto para que não faça só de português. Para que seja equacionável para qualquer papel. Porque não poderá ser? Um ator é um ator, ponto. Tem de ter determinadas características que qualquer um tem de ter: inteligência, disponibilidade, talento. O Raul Solnado dizia que o talento prescreve. Envelhece se não for trabalhado. É muito verdade. Não chega. É trabalhar, trabalhar, trabalhar.

Estes novos tempos em que o sucesso aparenta estar mais acessível, através de um vídeo viral nas redes sociais, não enfraquece esse conceito?
Isso é uma consequência. O sucesso é uma consequência. Não se deve estar a trabalhar para o sucesso. Os atores sabem lá se, quando aceitam um papel, aquilo vai correr bem. Outra coisa que me fascina nos atores é a generosidade com que se entregam a um projeto. Um ator entrega-se a um projeto, que já estava escrito, que já estava conversado com um realizador, tudo escolhido, até o guarda-roupa. E, por sua vez, vai ter uma boa edição. E eles entregam-se. Não fazem a mínima ideia do que vai ser o produto final. Às vezes chegam à estreia sem ter visto o filme. Até se enterram na cadeira. Ou não.

Essa relação tão próxima com os atores é difícil de gerir quando há más notícias para dar?
Não promovo a distância. Antigamente ia ao teatro e passava pelos bastidores. Depois, como não sei não ser sincera, os que gostava menos, dizia qualquer coisa. Acho que dizia sempre com delicadeza, mas não devia dizer. Rapidamente percebi que não o deveria fazer. Precisava de tempo para assimilar. Nunca mais cumprimentei ninguém no final do espetáculo. E o ideal é que nem saibam. Criei mecanismos de defesa nesse sentido. Por exemplo, resguardo muito a minha vida privada, o meu contacto direto de telemóvel, porque se não deixo de ter vida. Mas sou a primeira a mandar um recado pelas redes sociais, a mandar uma mensagem, mesmo que os conheça mal. Gosto de celebrar esses parabéns. Sou mesmo sensível ao talento. Comove-me muito. Vejo 40 selftapes por dia e passo-me da cabeça quando vejo algo espetacular. Fico histérica.

"Quando estou a ler um guião, que é uma construção de um ser humano, aquilo, de alguma forma, encaixa com as informações que recolho no exterior e entra para a personagem"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O talento não tem geração.
Não tem. Fico pasma de alegria. Deixa-me tão feliz. E quando há faltas de profissionalismo, também me passo.

É o que detesta mais?
Essa palavra é muito forte. Acho que toda a gente devia ter brio em qualquer coisa que se preste a fazer.

Mas há dias menos bons…
Sim. Pede-se desculpa. Não conseguiu. Mas assim mais vale não fazer. Vou ficar com uma opinião. E não é porque não esteve tão bem que lhe vou fechar logo a porta. Já tive muitos casos de uma pessoa que está a atravessar uma fase menos fácil e, anos depois, volto lá e ‘uau’. Só que aqui falo do brio. Não ser trapalhão.

Sendo apelidada de “rainha dos castings”, isso criou-lhe mais amigos ou inimigos?
Sei lá. Devo ter pessoas que me odeiam. Nesta profissão, ou sou a maior ou sou odiada. Por exemplo, vou a uma estreia e tenho alguém a dizer “nunca mais me chamaste”. Odeio que me digam isso. Há quem possa achar que, por não os chamar, não gosto deles. Às vezes não é por nada. Digo aos atores também para me alimentarem. Mandem-me fotografias novas, digam-me que mudaram de agente. Ou peçam-me ajuda. Sem eles não faço nada. Preciso tanto deles como eles de mim. Jamais direi que são chatos. Agora, se mandaram três vezes, não façam a quarta. No outro dia, uma pessoa apanhou-me o telemóvel e não parou de ligar uma semana. Pedi para me mandar um email. Disse-lhe que não queria ser desagradável. Se tenho escritório e agente, é para ajudar nesse trabalho. Mas sim, sou uma curiosa. Quero descobrir atores. Vou ao teatro amador como vou atrás do sol posto ver uma peça. Vibro a vê-los. Só que o meu escritório ninguém sabe onde é. Preciso desse recanto.

A pandemia travou-lhe essa descoberta?
Percebi que as minhas redes sociais funcionam muito bem para isso. Que os posts são republicados pelo mundo fora. É espetacular. Pedir a apresentação de um minuto é fascinante. Porque não explica o que quer num minuto. Isso é que é giro. Façam o que quiserem. Não tem de ser um guião. Consigo ler o que quero num vídeo. E depois oriento. Ou vai para um, para outro ou não vai para nenhum, para já. Fica no radar. Aqui há uns tempos, numa das publicações que fiz à procura de um ator, descobri cada pérola… não dá para acreditar. De onde vem isto? E todos jovens. Uma planta que acabou de dar frutos, só para uma apresentação. A seguir, dou um texto e continua bom. Normalmente não me engano quando vejo que há ali qualquer coisinha. Não quer dizer que não me engane amanhã. É interessante perceber, por exemplo, os hábitos de leitura daquela pessoa. O que faz com os tempos livres. Hoje em dia, os miúdos têm uma coisa chata: não têm tempo para se aborrecer. E é algo essencial em qualquer criança, para poderem criar, para inventar.

Há muitos estímulos.
É pena. Fico fascinada em perceber o mundo daquela pessoa. O que vê, como ocupa o tempo. O que escolhe.

É a partir daí que há ali qualquer coisa?
Não, não, não. A mim ajuda-me a perceber a cabeça deles. Mas às vezes não têm referências.

"Digo aos atores também para me alimentarem. Mandem-me fotografias novas, digam-me que mudaram de agente. Ou peçam-me ajuda. Sem eles não faço nada. Preciso tanto deles como eles de mim. Jamais direi que são chatos."

Só que quando não têm referências e são bons, é difícil explicar. Ou não?
É um dom natural que pode ser depois trabalhado. Uma das coisas que faz com que adore fazer casting de crianças é porque é tão puro. Sem filtros. Quer, quer, não quer, não quer. Com o tempo vamos complicando, a mente faz muito barulho.

Uma pessoa que estuda outras pessoas, fica a perceber mais sobre o ser humano ou com mais dúvidas?
Aquilo que sinto é que tudo me inspira. Literalmente. Quando ando na rua, transportes públicos, etc. Não me importo de almoçar e jantar sozinha porque estou sempre a observar. Quando estou a ler um guião, que é uma construção de um ser humano, aquilo, de alguma forma, encaixa com as informações que recolho no exterior e entra para a personagem. Um pai que largou a filha aos seis anos e voltou aos 19 anos. Fico a pensar: como é a mãe? O que faz ele? Onde está? Desapareceu como? Tudo o que me rodeia me inspira.

Falando do que a inspira, ainda tem proximidade com o hinduísmo?
Sou muito espiritual.

Isso não mudou.
Não. As chatices fazem parte do percurso. Todos temos. A ruga do lado direito, a sabedoria que se vai adquirindo. No outro dia pensei: como reagiria a isto com 25 anos? Já nem me lembro. Mas com a bagagem que já tenho, reajo de forma diferente. Já passei por momentos complicados, mas tudo isso faz parte do que sou. E o que não está resolvido tem de se resolver. Se mete numa gaveta há de sair. Aprendi isso. Tem de estar arrumado. Há uns anos era incapaz de me ir deitar sem ler, sem fazer alguma coisa. Entretanto mudei esse hábito. Agora vou para a cama antes de ter sono porque obrigo-me de fazer o levantamento do dia. Deixar ver o que vem à mente. E processo. Há coisas difíceis. Mas faço esse exercício.

E é solitário.
Somos sempre. Vimos ao mundo e vamos sozinhos. Somos nós, connosco. O corpo fala sempre primeiro do que a palavra. E isso interessa-me. Gosto de estudar esse assunto. Ajuda-me na profissão.

Já começou a pensar nisso: quando o corpo mandar parar?
Já. Tenho uma vida muito ativa, mas porque gosto. Acordo de manhã super motivada. Não estou a embalar paletes. Este é um trabalho criativo. Tenho esse privilégio. Mas eu sou a prioridade. Cuido de mim primeiro que tudo. Sou incapaz de sair de casa sem tomar o pequeno-almoço. Tenho as rotinas muito definidas. Mesmo assim, sou capaz de vir mais irritada para o escritório porque não fiz essa limpeza primeiro. E os outros levam com isso, coitados. Quero trabalhar nisso. Também cuido da alimentação. Muito. Também não fico seis meses à espera para fazer análises se o tiver de fazer.

Falemos da “Mansarda”, o seu projeto para cuidar dos atores em fim de vida. Uma casa que os receba. Em que pé está?
Após sete ou oito anos de grande luta, está muito bem encaminhada pelos grandes fundadores e aos quais sou eternamente grata. Começou por uma reunião por mês e uma conversa à distância de um telefonema. Pedi apenas isso. Foi um grande voto de confiança. Já temos um terreno cedido pela Câmara Municipal de Lisboa. Temos dois anos para a montagem financeira para conseguir construir. É um projeto de muitos milhões. Sou uma grande maluca. Aliás, é o projeto da minha vida. A Casa do Artista demorou mais de vinte anos a fazer. Este é mais um destes projetos. Era bom que houvesse mais. Quero proporcionar uma velhice mais digna numa profissão que está tão pouco protegida, para já, no país. Nem sequer tem uma carteira profissional. A reforma é precária e curta. É uma tristeza. Precisamos de preparar a velhice, temos de mudar a mentalidade. A palavra “lar” ainda é muito mal tratada. No norte na Europa, não. Porque o lar é algo bom, onde se é bem tratado, onde se vai pagando com o que se descontou. Digo isto e talvez não o queira fazer também. Mas quero ter um plano B. Não quero ser uma preocupação maior para os meus filhos, se puder.

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