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Paulo Branco: “Houve uma ou duas vezes em que jogar no casino me salvou”

Começou a produzir filmes há 40 anos e é uma referência a nível europeu. Nesta entrevista, Paulo Branco fala de cinema, de ódios e amores de estimação e adianta que há um "talvez" para o Monumental.

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Antes da hora combinada, telefona a avisar: “Olhe, vou estar atrasado. Às duas.” Parecia um SMS falado. E desliga. Logo pela manhã tinha sido igual: à pergunta sobre o local do almoço, ele tinha respondido, ao telefone: “Gambrinus, uma e meia”. Não se pode dizer que não seja telegráfico ou que não tenha bom gosto.

Ao restaurante histórico de Lisboa chega, depois, pontual, às duas da tarde, disponível para abrir o jogo — e a palavra nem poderia ser outra.

O conhecido produtor de cinema, que se considera responsável pela projeção internacional de Manoel de Oliveira e que trabalhou com tantos nomes históricos, como João César Monteiro, José Fonseca e Costa, Raúl Ruiz, David Cronenberg, Wim Wenders ou André Téchiné, é um jogador na vida e no trabalho. Foi cavaleiro federado até há pouco tempo e já jogou em casinos para financiar filmes. Gosta do risco e da incerteza. Precisa de ser mais louco do que os realizadores para tornar os filmes realidade, garante.

Fundador e diretor do festival internacional de cinema LEFFEST, é responsável pelas produtoras Alfama e Leopardo Filmes e já foi jurado em Berlim, Veneza e Locarno. Fala olhos nos olhos e reserva-se quanto a negócios e família (disse apenas que tem quatro filhos, dois nascidos em Portugal e dois em Espanha). Reconhece o mau génio que o tornou famoso, mas ao perto parece menos áspero do que à distância.

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Nascido em Lisboa a 3 de junho de 1950, produziu o primeiro filme em 1979, há exatamente quatro décadas: “Oxalá”, de António-Pedro Vasconcelos, estreado em maio de 1981. Estudou num colégio jesuíta e não concluiu o curso de engenharia química porque emigrou em 1971. Primeiro, Londres, depois, Paris, e aí descobriu o cinema e estabeleceu parte do êxito profissional. Ainda hoje tem casa na capital francesa e quase todas as semanas lá vai.

Em Portugal, tem escritório em Lisboa e casa em Alcochete. “Não sou aficionado, é muito mais do que isso, é identitário, mas serei o último a tentar convencer quem quer que seja da bondade da tourada”, confessa.

A conversa dura quase duas horas. Passa também pelo papel da crítica e da imprensa, os subsídios, as intrigas e os filmes que Paulo Branco vai estrear este ano. Da zanga com Cannes e da polémica em torno dos direitos do filme “O Homem que Matou D. Quixote”, do ex-Monty Python Terry Gilliam, adiantou pouco, apenas que levou a tribunal um pedido para que o filme não se estreie em Portugal sem a sua autorização. Sopa de peixe, croquetes e um copo de vinho. Ação.

“Toda a minha vida tem sido um esforço para tentar fazer chegar a cada vez mais pessoas as obras que admiro. Faço isso como exibidor e produtor.”

Porque é que raramente dá entrevistas?
Porque durante bastante tempo grande parte do cinema que se fazia em Portugal passava pelas minhas mãos. O Oliveira convida-me a produzir o “Francisca” [1981], para o João César [Monteiro] produzi o “Silvestre” [1981], para o João Botelho fiz o “Conversa Acabada” [1981]. Como tinha sido exibidor em Paris, tinha conhecido vários realizadores e convenci-os a virem cá filmar, como por exemplo o Alain Tanner. Através disso, criei, se quiser, uma posição e estava assoberbado para fazer existir os projetos. Por isso, em termos de exposição pública, sempre evitei grandes discursos teórico-filosóficos sobre o que devia ser o cinema.

Esses discursos cabem aos realizadores?
Claro, eles é que têm de falar sobre as obras, mas as obras também falam por si. É preciso uma pessoa ter noção do seu lugar e dos seus limites. O que é que um produtor pode dizer? Conta históricas pitorescas ou começa a dizer o que faz falta para o desenvolvimento do cinema em Portugal? Nunca quis fazer intervenções dessas, até porque durante muito tempo era um dos principais beneficiários do estado das coisas. Sempre me afastei disso. Com o acumular da experiência, dos filmes, a certa altura fui abordado pela imprensa noutros países, muito mais do que em Portugal, porque aqui não tenho espaço. Depois começaram as homenagens e essas coisas todas [em 2004, por exemplo, foi feito oficial da Ordem das Artes e das Letras pelo presidente francês Jacques Chirac]. Nos anos 80, tive seis filmes em Cannes, isso suscitou curiosidade. Como é que um produtor independente, com 30 e tal anos, aparecia assim de repente? Aí, sim, dei entrevistas grandes, mas quase tudo em França.

O que é não ter espaço em Portugal?
Como produtor, sou uma espécie de referência, mas muitos, ao fim de um determinado número de anos, dizem “já estamos fartos do Paulo Branco, não estamos para o aturar”. É o que se passa neste país, uma coisa absolutamente terrível. Não é só comigo, é também com os artistas. Quando peguei no Manoel de Oliveira e mostrei o “Amor de Perdição” [1979] em França, o que mudou muita coisa, ele estava absolutamente condenado em Portugal. O filme tinha passado na televisão, toda a gente tinha achado que era uma obra de alguém senil e que já estava arrumado. Decidi passá-lo em Paris, porque tinha adorado o filme, e de repente a crítica francesa descobre o Oliveira e as coisas mudam para ele. No fim dos anos 70, o Oliveira estava arrumado, aos olhos dos portugueses, não tinha a dimensão internacional que depois o salvou. Em Portugal há muito isso. O país é pequeno até nas suas mentalidades, como se costuma dizer.

Isso ainda é verdade em 2019?
Então, não é? Portugal nunca reconhece o que de mais importante se faz. Acontece assim em todos os países pequenos. As invejas… Repare, quando se mexe numa lei do cinema, como aqui aconteceu, está-se a abrir a caixa de Pandora. Devia haver solidariedade entre produtores, cineastas, todos, e não há, é o salve-se quem puder.

"Deixou de haver espaço crítico na imprensa, a crítica neste país tornou-se de uma mediocridade total. Não há um crítico em que se possa confiar. Você lê as críticas deles e há ali alguma ideia de cinema, tirando o resumo do filme e se gostam ou se não gostam?"

Solidariedade também entre os exibidores?
Isso é para esquecer, é outra história. A exibição independente em Portugal existiu por um curto período apenas. Resolvi ser exibidor porque percebi que só os filmes americanos é que se estreavam cá. Estava tudo nas mãos de dois grandes que tinham a representação das “majors” americanas: a Castello Lopes e a Lusomundo, mais nada. Havia uma pequena distribuidora, a Almeida Faria, e o resto era um vazio. Pensei: há aqui um espaço, vou entrar. Foi assim que comecei a ser exibidor, para mostrar os filmes que produzia e aquilo que eu pensava ser bom. Mas isso hoje acabou. Ou conquistava uma parte do mercado ou ia ser triturado, como fui. Não se consegue. Temos um monstro que hoje pertence a alguém que tem operadores de telefone e etc. [NOS, antiga ZON Lusomundo]. Agora têm um derivado na distribuição, de que eles também são sócios, a Big Picture. Em face deles, o que é que se faz? Eles impõem as regras de mercado: os bilhetes à borla, as ofertas, etc. Isso dá cabo do mercado.

Mas o mercado não é livre?
O mercado é livre? Você tem uma família de pai, mãe e três crianças, sabe que vai a um complexo onde só paga um bilhete ou dois, vai esquecer isso e pagar os quatro bilhetes numa sala independente?

Se o filme for péssimo, os pais podem optar por uma sala independente.
Não interessa, eles passam os filmes todos, não só os péssimos. Também não nos iludamos, eles têm a inteligência de passar todos, bons e maus. O El Corte Inglés, que não lhes pertence, também tem o mesmo tipo de política. Normalmente os filmes vão lá todos, mesmo que fiquem por pouco tempo. Como é que alguém se pode bater com isso? Não pode. Ao mesmo tempo, deixou de haver espaço crítico na imprensa, a crítica neste país tornou-se de uma mediocridade total. Não há um crítico em que se possa confiar.

Nem alguns da velha guarda que ainda escrevem nos jornais?
Nada. Não dou nomes, mas você lê as críticas deles e há ali alguma ideia de cinema, tirando o resumo do filme e se gostam ou se não gostam? Há alguma coisa que o convença a ir ver um filme perante uma crítica destas, só com bolinhas ou as estrelinhas? Estamos resumidos a isso, não há um pensamento sobre cinema, como havia. E depois temos as escolas de cinema, que promovem antiespectadores. É raro ver estudantes de cinema numa sessão, raríssimo. Tem que ver com os “downloads”, tem que ver com a maneira como os professores falam de cinema. Nem vou entrar por aí.

Há muitos novos realizadores portugueses que estudaram em escolas de cinema, que têm um pensamento fundamentado e ganham prémios em festivais internacionais.
Têm uma determinada visão de cinema.

Sim, mas têm uma.
É como você ser crítico literário e não ter lido a Ilíada, o Moby Dick, Os Lusíadas, o Padre António Vieira, o Tolstói, os clássicos franceses. Quantos críticos há que não leram? Muitos. Há outros que realmente têm uma boa formação…

E se a sua ideia de crítica não for a mesma dessas pessoas?
O meu problema não é o gosto que eles exprimem, é conhecimento que eles não têm.

Paulo Branco e Manoel de Oliveira com Chema Prado ao centro, que na altura era diretor da Cinemateca Espanhola

E se a crítica no século XXI se tiver transformado numa coisa nova: dizerem se gostaram ou não, apenas, independentemente de conhecerem a história do cinema?
Isso não é crítica, é expressar um gosto pessoal. Pode partilhar esse gosto em público, mas isso não faz de si um crítico. Isso é uma relação puramente subjetiva e intuitiva com o filme. A arte não é assim. A crítica não é apenas uma questão de gosto, tem de ser fundamentada e deve explicar o que é que uma obra traz de novo. O que é que interessa nas expressões artísticas? Aqueles que trazem algo novo. Se o crítico não viu o que está para trás, como é que sabe quando há algo novo num filme? Bem, estou aqui a considerar o cinema, apesar de tudo, como a sétima arte, parto desse princípio. Há muita gente que acha que o cinema é só entretenimento, não concordo. Até que ponto este filme que se estreou é banal? Até que ponto aquele livro é literatura de cordel? Não estou a dizer que a literatura de cordel não deva existir, mas a mim não me interessa. A minha relação pessoal com o cinema é no sentido de ganhar alguma coisa em termos de conhecimento e de relação com o mundo e com a sociedade. Não é só saber se gosto ou não gosto. Agora, a história do cinema sempre foi marcada por enormes polémicas, filmes detestados por uns e adorados por outros, não estou a falar de uniformização.

O que é que determina que um filme resista ao tempo?
No caso dos filmes que produzi, os que resistem são aqueles aos quais ainda estou extremamente ligado quando os vejo 20 ou 30 anos depois, porque ainda descubro coisas. É como quando olho para um quadro novamente ou oiço uma interpretação de um pianista ao fim de vários anos. É nessa zona que gosto de trabalhar. Logicamente, não estou a dizer que não haja outras hipóteses, mas não me interessam. Neste momento, mesmo aqueles que tinham um pensamento crítico deixaram de ter espaço na imprensa, são funcionários de jornais.

Disse numa entrevista que ler uma crítica na “Télérama” é hoje o mesmo que ler uma crítica nos “Cahiers du Cinéma”. Ou seja, para si o problema não é só em Portugal.
E não é. Houve grande críticos ingleses e americanos, alguns dos quais com quem não concordava, que marcaram épocas. E em França também. Neste momento, não há espaço para que eles existam. Para terem influência têm de ter leitores e espaço, se escrevem só para eles ou meia dúzia de leitores, não dá.

Provavelmente, o enfraquecimento da crítica é falta de interesse do público.
E falta do espaço onde antigamente a crítica funcionava. Repare na importância que os suplementos culturais tinham e como é que eles existem hoje. Estão como estão porque se adaptam à necessidade de vender. É isso, tem razão, tem que ver com os leitores. Mas a certa altura tem de haver locais de resistência e esses deixaram de existir. Quem é responsável de um órgão de comunicação social tem de ter uma relação ética com o público e com aquilo que escolhe publicar, porque a imprensa tem uma influência direta sobre a vida das pessoas. As derivas dos “reality shows” e da TV-espetáculo, mais a competição desenfreada que se estabeleceu em alguns países, mais a mediocridade dos canais públicos… Não é por acaso que o populismo acontece. Há uma responsabilidade dos donos de qualquer órgão de comunicação social. E com as televisões, ainda mais, porque estão a ocupar um espaço que é público, o espectro é do Estado e está concessionado. Percebo que os meios atravessam crises, mas estão dispostos a tudo e, se estão dispostos a tudo, estão noutro tipo de sociedade que não interessa a muita gente, eu incluído.

Está a referir-se à polémica entrevista de Mário Machado à TVI?
Não, isso é um epifenómeno. Haver esses programas e espaços, sem qualquer reflexão sobre o mundo, isso é que é grave. Ponho a Cristina Ferreira ao nível do Goucha, é tudo igual. Terem lá o Luís Filipe Vieira, com os escândalos que existem agora, ou outro qualquer, é a mesma coisa. Aquilo não me interessa. O pior problema não é darem-lhes espaço, é não haver espaço para outros.

"Vivíamos um regime fechado sobre si próprio e eu tinha 21 anos, estava no último ano de engenharia química, no Instituto Superior Técnico. Podia ter quatro anos de adiamentos [até ir cumprir o serviço militar obrigatório]. Pensei 'vou aproveitar estes quatro anos até ao fim'. A química já não me interessava."

Como é que esses outros não têm espaço se vivemos numa época em que qualquer pessoa pode dizer o que quiser numa rede social ou num blogue?
Isso é outro tipo de espaço, que está a funcionar de outra maneira, já não é para a minha geração. Em plataformas dessas, há um que diz que está a chover e outro que diz que está a sol e ninguém precisa de comprovar nada, não há responsabilidade nenhuma. Mas isto tudo são as minhas opiniões de cidadão, que estou aqui a partilhar de uma maneira um pouco avulsa. Prefiro falar de cinema.

O cinema é também sobre isto, sobre a vida das pessoas.
O cinema tinha o enorme privilégio de ser uma síntese de todas as artes e de poder contar histórias. Isso é extraordinário. Daí a grande força das grandes cinematografias dos anos 30, 40, 50, 60. Neste momento, há pouco. O que é que o público vai ver: super-heróis e desenhos animados. É a idade mental dos seis anos, a infantilização do público. Antigamente, aqueles que não tinham a possibilidade de estudar, faziam um esforço para chegar ao patamar dos outros que tinham mais informação e cultura. Agora, não. Agora pode-se dizer no telejornal que um cantor pimba é genial e ninguém contradiz. Não estou a criticar tudo o que é popular, o que é popular é muito importante, não quero ter aqui um discurso elitista. Às vezes até penso nisto: mesmo aqueles que sabem muito e que escrevem em jornais, passam a ideia de que são uns privilegiados e que querem deter um conhecimento que os outros não têm, dá impressão que têm prazer em guardar para si aquilo que sabem. Isso lê-se nas entrelinhas, até em textos de pessoas com um discurso interessante. É uma atitude de arrogância intelectual. Ora, toda a minha vida tem sido um esforço para tentar fazer chegar a cada vez mais pessoas as obras que admiro. Faço isso como exibidor e produtor. É para manter a memória das pessoas. É um trabalho que julgo essencial para a cultura portuguesa.

Isso deriva de uma ideologia de esquerda?
O que é que a minha ideologia não interessa aqui? Penso que a relação com o conhecimento e com a transmissão do conhecimento é transversal a todas as ideologias. Se não for, não sei.

“Nunca fui a “cocktails”, não funcionei com lóbis”

Voltemos ao início. Começou como exibidor em Paris, com a sala Action-République. Depois tornou-se distribuidor. Mais tarde é que começou a fazer produção de filmes. Foi isto?
Quando tive a Action-République tornei-me logo distribuidor, para poder passar filmes que outras salas não passavam. Era uma sala mesmo ao lado da Place de la République, na Rue du Faubourg du Temple. O “Amor de Perdição”, o Raúl Ruiz, o [documentário] “Torre Bela”, grandes documentaristas, como o Johan van der Keuken, divulguei tanta coisa. Olhe, o Richard Dindo, o “Trás-os-Montes”, do António Reis… tanta coisa. Fiz um ciclo sobre o Godard, conheci-o na altura, e passei filmes raros de se ver em Paris. O “Le Monde” chegou a fazer uma crítica a esse ciclo, na primeira página. A sala era uma referência em Paris naqueles anos, embora não fosse frequentada por portugueses, que estavam nos subúrbios. Foi sorte e intuição.

Em que ano abriu?
Em 1977. Mas tinha chegado a Paris em 1973.

E em 1971 tinha saído de Portugal para viver em Londres.
Sim, queria conhecer a Europa. Não se esqueça de que vivíamos num regime ditatorial, fascista, o que se quiser chamar. Era um regime fechado sobre si próprio e eu tinha 21 anos, estava no último ano de engenharia química, no Instituto Superior Técnico. Podia ter quatro anos de adiamentos [até ir cumprir o serviço militar obrigatório]. Pensei “vou aproveitar estes quatro anos até ao fim”. A química já não me interessava.

Com Bernardo Bertolucci no LEFFEST em 2009

Porquê Londres?
O que eu queria era Paris, mas na altura os portugueses tinham tantos problemas para entrar em França como hoje têm os sírios que procuram a Europa. Foram os anos em que as fronteiras se fecharam, depois do grande êxodo dos portugueses nos anos 60. Quando a França se fechou, era praticamente impossível arranjar trabalho. Em Londres uma pessoa desenrascava-se. Desde que se entrasse, não havia controlo nenhum.

Trabalhou em restaurantes?
Trabalhei. Não tinha ninguém lá, fui à aventura. Um dia, decidi ir mesmo para Paris. A minha geração estava muito ligada à francofonia, Paris era o centro de tudo.

E vinha a Portugal de vez em quando?
Vinha, porque tinha de fazer adiamentos. No início tinha de vir um vez por ano.

É verdade que estudou num colégio jesuíta e que hoje se considera ateu?
Estive no São João de Brito e estudar num colégio desses é a melhor maneira de nos tornarmos ateus. Eles abrem o espírito aos alunos e, com o espírito aberto, tornei-me ateu. Mas, atenção, eu era aluno externo, não estava interno.

Que relação tinha com o cinema nessa época?
Apenas curiosidade. Nunca na minha vida pensei trabalhar nesta área.

A descoberta aconteceu como?
Olhe, foram três as pessoas que me introduziram ao cinema. Desde logo, o António-Pedro Vasconcelos, quando eu ainda estudava no Técnico. Tínhamos um amigo em comum que nos apresentou. A outra pessoa foi o Frédéric Mitterrand [sobrinho do presidente François Mitterrand e ministro da Cultura no consulado de Sarkozy]. Conheci-o por acaso, quando trabalhei como programador nas salas de cinema que ele tinha, e foi assim que cheguei a outras pessoas do meio. A terceira foi o Carlos Saboga [realizador], que já vivia lá fora e me foi apresentado pelo António-Pedro. Foi o Carlos quem me lançou o desafio de abrir uma sala de cinema em Paris. São três pessoas que me marcaram nos inícios da carreira. E depois o [crítico] Serge Daney [1944-1992], que se atravessou no caminho e era o gerente das primeiras empresas que tive, porque não tinha papéis lá. Com ele descobri e comecei a questionar o gosto de ver, percebei a recusa ou a adesão a determinado filme. Foi ele que me abriu essas portas, que me levou à “mouvance” dos “Cahiers”. Na verdade, essa reflexão sobre o que vemos num filme ainda hoje a faço, ainda tenho muito para aprender. Tenho sobretudo uma dificuldade em relação a outros, exprimir essa reflexão, porque nunca exercitei, não sou crítico.

Como é que se movimentou sempre tão bem em França?
Era uma pessoa extremamente curiosa e aberta, mas nunca fui a “cocktails”, não funcionei com lóbis. Eles é que iam à minha sala. O meu ponto de contacto eram alguns críticos, desde logo o Daney, e uma equipa muito jovem que trabalhava comigo, ligada à Universidade de Vincennes, onde se encontrava, por exemplo, a Laurence Ferreira Barbosa, de quem depois produzi alguns filmes. A certa altura, faço um ciclo de cinema francês e passo dois filmes do Max Ophüls e ligam a dizer que o Roland Barthes quer ir ver os filmes, se eu lhe podia mostrar os filmes. Era assim.

"Eu nem tenho computador. Nunca tive um computador na vida. Tenho aqui telemóveis, uso como instrumento de trabalho, mas não tenho essas aplicações. Sei ler 'mails', já não é mau."

O seu entusiasmo terá casado bem com a forma de estar dos intelectuais franceses daquela época?
Claro. Mas, vamos ver, quando se está na ação, a reflexão é mais intuitiva do que outra coisa. Quando comecei a produzir, não sabia o que era produção de cinema, tive de descobrir. Não tinha muito tempo para intelectualizar. Trazer cineastas para filmarem em Portugal foi quase um acaso. A certa altura, o Ruiz apareceu cá para fazer “O Território” [1981], uma das atrizes namorava com o Wim Wenders e ele veio cá ter com ela. Depois, veio o Robert Kramer, o Glauber Rocha estava em Sintra e juntava-se a nós, o Terence Young queria ver não sei quem e vinha a Portugal. Eu era um pouco o pivô disto, mas as coisas iam acontecendo e eu não procurava nada. Às vezes, até dizia: “Caramba, o que é que esta malta toda está aqui a fazer?” Por isso é que ainda faço o festival [LEFFEST]. Repare nas pessoas que cá estiveram nos meus festivais, gostaria que olhasse para a lista. Acho que não há festival nenhum no mundo com aquelas pessoas. Porquê? Gosto que os artistas e as pessoas se encontrem, gosto dessa troca, sou um bom mestre-de-cerimónias. E gosto do que faço, gosto de fazer existir filmes que de outra maneira não existiriam, certo de que não tenho o talento para os realizar.

Nunca pensou realizar?
Nunca pensei, seria mau, de certeza.

Qual foi o filme que mais gosto lhe deu produzir?
Não vou falar só dos que me deram mais prazer, mas daqueles em que a minha presença foi mais importante, aqueles que me trouxeram mais problemas e de cujo resultado estou orgulhoso. Do Oliveira, “Francisca” [1981], “Vale Abraão” [1993] e o “Non, ou A Vã Glória de Mandar” [1990]. Do Ruiz, “Mistérios de Lisboa” [2010], filme em que consegui que ele desse tudo aquilo que tinha para dar, e “O Tempo Reencontrado” [1999], um grande desafio. Já vão cinco. Depois, o último filme a sério do Rozier, “Maine Ocean” [1986],  uma obra-prima do cinema francês que fiz com uma equipa portuguesa, com o Acácio de Almeida, o Vasco Sequeira. E por fim “A Cativa” [2000], da Chantal Akerman. Cito só mais dois de que me orgulho: o “Vai e Vem” [2003] e o “Branca de Neve” [2003], do João César. E o “Cosmos” [2015], do Zulawski, uma aposta impossível e que foi ganha artisticamente. Para terminar, uma coisa do futuro, já vi “A Herdade” cinco vezes, do Tiago Guedes, vamos estrear este ano.

“Continuo ainda hoje sem saber bem o que é um produtor”

Quantos filmes vê por semana?
Já não vejo muitos, agora vejo poucos.

Compra DVD ou vê no cinema?
As duas coisas.

Tem um ecrã grande em casa?
Normal, médio.

E na Internet?
Nada, eu nem tenho computador. Nunca tive um computador na vida. Tenho aqui telemóveis, uso como instrumento de trabalho, mas não tenho essas aplicações. Sei ler “mails”, já não é mau.

Nunca usou o Netflix?
Não, até porque a certa altura você pensa: as possibilidades são imensas e eu prefiro ler. Agora estou a ler Os Miseráveis, do Victor Hugo, dei-me conta de que nunca o tinha lido. Comecei agora. Em francês, tudo o que é francês, leio em francês.

Durante o protesto contra o decreto-lei do cinema, frente à sede do Instituto do Cinema e Audiovisual, em abril de 2017 (MÁRIO CRUZ/LUSA)

Um produtor de cinema é um facilitador do trabalho dos realizadores ou é também um autor?
Continuo ainda hoje sem saber bem o que é um produtor. E as coisas mudam, o que era há 40 anos não é o que é hoje. O produtor é aquele que transforma o sonho em realidade. Nesse aspeto, pode ter algum lado autoral. Posso de certa maneira contaminar a qualidade de um filme ou melhorá-lo. Artisticamente, o realizador tem todo o poder, mas o produtor também tem algum, pode estreitar ou alargar um filme. Hoje é quase impossível, tenho um preço enorme a pagar. Sempre quis que os filmes existissem, independentemente do que os financiadores pudessem pensar do projeto.

Muitos prejuízos?
Recuperáveis, alguns. Acho que perdi dinheiro em todos os projetos, mas eles existem, estão aí.

Lê o guião e dá sugestões?
Depende de cada projeto. Por vezes, dou sugestões ou leio os guiões e obrigo-os a retrabalharem 50 vezes. Outras vezes, nem leio e decido fazer, porque tenho confiança suficiente. Eu fiz 300 filmes, passava um mês aqui a contar-lhe a história de como produzi cada um. Temos com o realizador uma relação de intimidade, de amor-ódio, de casamento, de interesses comuns e confrontos. Como produtor, tenho de gerir tudo isso. Por isso é que era tão fascinante trabalhar com tantos realizadores diferentes, com as suas personalidades. Um produtor independente tem de perceber a personalidade de cada um. Ter aguentado 30 anos com o César, uma personagem com aquela exigência, ou alguém com a exigência do Oliveira, ou do Cronenberg, ou do Pedro Costa, é fascinante.

Tem de conhecer bem um realizador antes de aceitar produzir?
Posso não. Tenho é que ter intuição. O Rozier veio falar comigo, um realizador muito considerado em França, que já tinha filmado muito, mas fazia um filme a cada década. Ele queria sempre adiar. Veio falar comigo em Paris e eu disse-lhe sem ter lido uma página: “Estamos em novembro, se começares a filmar em janeiro, produzo-te o filme.” Senti que tinha de ser mais louco que ele, para a coisa funcionar. O filme fez-se. Como? Não sei. Há muitos assim.

Quem tem interesse em trabalhar com quem: o realizador com o produtor?
Depende. Eu não tenho de convencer ninguém. A maior parte das vezes, foram os realizadores que vieram ter comigo.

Como é que se financia um filme?
Cada filme, tem a sua história.

Diz-se que financia os filmes com dinheiro de apostas em corridas de cavalos. É verdade?
Há muitas lendas sobre isso, sobre como saio de situações impossíveis. Não foi com apostas de cavalos. Posso dizer que houve uma ou duas vezes em que jogar no casino me salvou, salvou-me verdadeiramente.

Foi para o casino em desespero de causa?
Em desespero de causa. Eu sou jogador. A certa altura, pensava assim: duas horas no casino, não dá de maneira nenhuma para ir buscar o dinheiro de que preciso para os filmes… A família ficava muito preocupada com o casino e eu respondia: “Sou muito mais perigoso no escritório, ou num fim de semana em que não tenho nada para fazer, do que no casino, mas muito mais.” Houve situações em que tive mesmo muita sorte.

Jogava em Portugal?
Uma vez na Madeira, outra vez em França. Já não jogo. É uma perda de tempo. Os casinos antigamente tinham “cachet”, agora já nem isso, são supermercados de jogo. Nunca joguei máquinas na vida, mesmo as roletas hoje são pequeninas, o jogo de cartas deixou de ter interesse. É quase sórdido.

Quer dizer que filmes resultaram dessas ocasiões?
Não vale a pena.

"Os produtores à antiga jogavam o jogo do gato e do rato com a banca, quem engana quem. E durante muito tempo conseguimos enganá-los, depois passou a ser ao contrário. Alguns ainda estão a pagar por isso, outros desapareceram em situações trágicas. Ser produtor independente é uma atividade de risco, por isso é que já não há produtores independentes ou são raros."

Salvo isso, um produtor precisa de ter boas relações com a banca, com investidores, com júris? Como é que funciona?
Nisso também não vou avançar muito. Logicamente, os produtores à antiga jogavam o jogo do gato e do rato com a banca, quem engana quem. E durante muito tempo conseguimos enganá-los, depois passou a ser ao contrário. Alguns ainda estão a pagar por isso, outros desapareceram em situações trágicas. Ser produtor independente é uma atividade de risco, por isso é que já não há produtores independentes ou são raros. Uma vez cruzei-me com o produtor dos últimos filmes do Buñuel, o Silberman, estava eu a começar, e ele disse-me que já não havia lugar para produtores independentes, para eu esquecer. Já não havia há 40 anos. É uma resistência permanente.

Houve épocas em que produziu 15 filmes por ano. Não volta a acontecer?
Não, por falta de possibilidades reais e porque os tempos mudaram.

Dizem que é uma pessoa com mau feito e que se incompatibiliza facilmente.
Sou uma pessoa de mau feitio, de certeza absoluta, mas tenho uma vantagem: não sou nada rancoroso. Posso dar dois berros, zangar-me com uma pessoa e depois está tudo bem. É uma grande vantagem. Agora, que me exalto muitas vezes, sim. Agora menos do que antigamente. Sou muito apaixonado, sanguíneo. Há muita gente que tem uma relação comigo sem me conhecer. Muitos não gostam de mim, mas não me conhecem. Não quero ser figura pública, mas transformei-me nisso sem querer, não posso agora dizer não sou, e há um preço a pagar por isso. Agora, também há pessoas que trabalharam comigo e não gostam de mim, é natural.

O que é que o exalta?
Sou extremamente exigente no trabalho e no profissionalismo das pessoas. Quando isso falha, exalto-me. Trabalhar neste meio é um luxo, mas há surpresas todos os dias. Por isso, sou muito exigente.

“A lei está bem como está”

Como vê a revisão da lei do cinema? O governo e a Assembleia da República estão interessados em mudar a regulamentação que entrou em vigor em 2018.
Isso é ridículo. Das últimas vezes em que se mudou, estivemos uns dois anos sem concursos. Esquecem-se de que há muita gente que não filma porque se anda a mudar vírgulas em regulamentos, são vírgulas, não é mais do que isso.

A polémica tem que ver com o papel de um órgão consultivo na escolha dos júris do Instituto do Cinema [ICA].
Mas esse órgão [SECA, Secção Especializada de Cinema e Audiovisual] já não tem palavra nenhuma. A lei está bem como está. A SECA é consultiva, não tem poder nenhum. Deixem-na estar. Abram mas é os concursos. Se num regulamento há alguma coisa que não está bem, pede-se que ao ICA que faça uma interpretação e acabou. Estas mudanças todas vêm de quem não quer que outros filmem. O importante neste momento era termos um Ministério da Cultura que percebesse que o Orçamento Geral do Estado tem de dar dinheiro ao cinema, isso é que era importante. Dobrar o financiamento do ICA e não meter mais uns tostões. Vivemos num país de esmolas. Nisso, a esquerda, neste momento, tem uma mentalidade de esmolas. Para qualquer coisinha há 10 ou 15 milhões. Já viu que 10 ou 15 milhões no cinema mudavam a face do cinema em Portugal? Falo do cinema, como podia falar dos museus. Logicamente, interessa a todos que as discussões sejam sobre as pequeninas virgulas, para não se afrontar onde devia ir. É um sector completamente desunido. Não é normal.

Pareceu amargurado na conferência de imprensa de dezembro em que anunciou o encerramento do Cinema Monumental para junho.
Não sei se vai encerrar tudo, vamos ver. A exploração ao fim de semana da sala 4 existirá enquanto for possível, enquanto não houver obras globais no Monumental, e as obras globais não são já em junho. O projeto que há para aquele espaço demora não sei quanto anos a estar pronto. Começam com a fachada. Além disso, não há obras ao fim de semana. Enquanto me deixarem fazer as sessões, não tenho data limite. Eu gosto do que não é definitivo, adoro. De um momento para o outro pode surgir um obstáculo intransponível. Vivo nessa corda bamba em permanência. Penso às vezes que deveria ter gerido as coisas de outra forma, mas agora está feito.

Monumental vai encerrar em fevereiro de 2019

Foi difícil decretar o fim da programação no Monumental?
Não, nem estou amargurado. Até estava farto de passar filmes de que não gosto. Estou aliviado. Até junho, a sala 4 vai dar muito mais trabalho do que programar as quatro salas como até agora, porque vamos fazer ciclos temáticos. Mas alertei durante anos para situações, preveni, e ninguém me ligou.  A atitude prepotente de alguns organismos e a falta de exigência… Um espectador que vá ver um filme em más condições numa sala, é um espectador perdido.

Está a falar do Cinema São Jorge?
Exato. O som, a imagem… O espectador pensa: para quê vir à sala se noutras condições vejo melhor? Sendo um organismo da Câmara de Lisboa, mais enervante se torna. Nesse aspeto, estou revoltado, é diferente de amargurado. Quantas vezes não falei com eles? O São Jorge faz concorrência, tem festivais, mas um festival por semana partilha público das outra salas. A culpa também terá sido minha, porque alguns festivais de Lisboa começaram nas minhas salas. Falta de atenção e arrogância da minha parte? Talvez.

Algum dia vai escrever memórias?
Prefiro guardar para contar aos amigos nas mesas dos cafés. Já me abordaram muitas vezes para que pusesse as minhas histórias por escrito, mas não quero perder tempo com isso, não me vou sentar a pensar no passado. Não posso deixar de trabalhar, por questões práticas e de sobrevivência. Ainda tenho prazer no que faço e vontade de continuar. No dia em que não conseguir, logo se vê, invento uma maneira de viver. Também não sou uma pessoa de luxos. Já tenho livros e garrafas de vinho suficientes para me retirar e viver o resto da vida, se quiser, como um misantropo a dizer mal de toda a gente. Se calhar, nessa altura, dito algumas memórias.

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