Pedro Delgado Alves, tem estado no centro do debate no inicio da legislatura, com as audições por causa do acolhimento de refugiados em Setúbal. Com o PS acusado, à esquerda e à direita, de estar a funcionar como fator de bloqueio ao poder de escrutínio da Assembleia da República, o deputado socialista defende-se: desde que não ultrapasse as suas competências, “o Parlamento pode ir até onde quiser”.
Sobre lei dos metadados, o socialista admite que o “processo legislativo é complexo”, que implica equilíbrios delicados, mas pede ao Presidente da República um “margenzinha” para que os deputados possam construir um diploma que não levante dúvidas.
Em entrevista ao Observador, no programa “Sofá do Parlamento”, Pedro Delgado Alves não resiste a responder às críticas de Aníbal Cavaco Silva a António Costa. “Seguramente que qualquer um gostaria que os governos atuassem à sua imagem. Essa dimensão narcísica é inevitável em qualquer ser humano.”
[Ouça aqui o programa “Sofá do Parlamento”]
O PS vai votar contra a criação de uma comissão de inquérito sobre o acolhimento de refugiados. O Parlamento já foi até onde tinha que ir na fiscalização a este assunto?
O Parlamento continua a poder ir até onde quiser. Até ao momento, face ao que dispunha promoveu um conjunto de audições bastante alargado. Nesse primeiro lote de audições percebeu-se que há um problema registado em Setúbal e que está a ser investigado pelas autoridades competentes. A Assembleia desempenhou parte do papel com a informação que dispunha e pôde confirmar parte das dúvidas. Naturalmente, continua disponível, seja em audições regulares ou em audições extraordinárias
E isso dispensa a vinda do primeiro-ministro ao Parlamento?
O primeiro-ministro é que ainda não teve um momento regimental para lhe serem colocadas questões.
Podia ter aproveitado o debate de urgência sobre o tema.
Não há a tradição de o primeiro-ministro vir fora dos antigos debates quinzenais, do Estado da Nação ou do Conselho Europeu ao Parlamento responder aos deputados. É nessas alturas que o primeiro-ministro marca presença. Aliás, há um marcado para 22 de junho. Esse debate tem até um grau de publicidade maior do que uma comissão de inquérito onde o primeiro-ministro responde por escrito. As comissões de inquérito são importantes, mas também não devem ser banalizadas ou usadas para todos os temas que surgem ao virar da esquina.
Mas não fica o trabalho pela metade? Com a ausência do presidente da Câmara de Setúbal ou da embaixadora, por exemplo.
Um embaixador de um Estado estrangeiro não pode ser chamado a prestar esclarecimentos numa Assembleia. Na lógica normal e na separação de poderes, se os deputados tiverem dúvidas, as perguntas devem ser dirigidas ao ministro dos Negócios Estrangeiro. Quanto à questão do presidente da Câmara de Setúbal, aí geraram-se mais dúvidas. Mas não é a função da Assembleia da República escrutinar a gestão autárquica e as falhas de uma autarquia. Os órgãos municipais podem adotar mecanismos de fiscalização e fizeram-no.
Sendo que o Parlamento tem sempre outro peso.
Mas vem-se ao Parlamento quando se responde ao Parlamento ou no âmbito do escrutínio que a Assembleia da República deve fazer. O local certo para um autarca responder são os órgãos municipais e não se perde informação porque ela tem chegado.
Mas aí até existiu uma troca de acusações entre o presidente da autarquia e a ministra Ana Catarina Mendes que podia, por exemplo, ser esclarecida nesta casa.
Nesse caso, se existirem dúvidas podem ser dirigidas à ministra e foram levantadas pelo PCP sobre a falta de disponibilidade do Governo para reunir e a ministra demonstrou e respondeu que o calendário não é propriamente este. No momento em que foi feito esse pedido já estava esta procissão bem avançada no adro e portanto não era um pedido pendente que tivesse ficado arredado devido a incúria governamental .
“Estava escrito nas estrelas que íamos ser acusados de serem um rolo compressor”
O PS não quer, a audição não decorre. O regimento não protege demais a maioria absoluta? Não é a tal prova do rolo compressor que a oposição afirma, ou seja,
Há direitos potestativos. Se a oposição quisesse, podia exercê-los e o PS não podia fazer nada. Os partidos optaram por não o fazer porque se sentiram esclarecidos. Depois, o facto de um partido ter maioria absoluta não o impede de poder discordar. Não pode ficar neutralizado com receio de que venha a ser acusado de usar o rolo compressor. O PS rejeitou uma audição e foi logo acusado disso. Diria que estava escrito nas estrelas que no primeiro dia que o PS recusasse uma audição seria acusado de utilizar o rolo compressor, pronto. Estávamos habilitados e preparados para isso.
Este debate tem-se feito muito à volta do caso de Setúbal, mas depois surgiram questões sobre a tutela das secretas e sobre como é que se presta esclarecimentos sobre esta matéria. Não sente que falta esclarecimento sobre os que os serviços de informação sabem sobre a questão russa?
Os serviços de informações funcionam na base de: sabe quem tem que saber ou quem deve saber. Há matérias que são confidenciais, outras que devem manter-se assim durante algum tempo para assegurar que a operacionalidade dos serviços é eficaz e outras que têm que ser geridas com parcimónia no que toca à partilha com órgãos de soberania. Quanto à fiscalização dos serviços de informações há vários mecanismos para superar esta dificuldade. Há uma comissão de fiscalização que faz a intermediação e que presta esclarecimentos. Não pode identificar os factos, as pessoas e as organizações. Mas pode dar nota de que os procedimentos foram seguidos e que as diligências foram feitas. Essa informação chegou.
Mas ouvir a tutela direta, neste caso o primeiro-ministro, só deve acontecer em último caso?
Historicamente, é assim e é assim não apenas por decisão deste Governo, é de uma lei da Assembleia, com quase 20 anos, não há uma novidade, passou por vários governos, várias maiorias, vários contextos. Pela natureza destes serviços, pela sensibilidade dos temas, pelo circuito de informação ser razoavelmente reservado. Este é um problema de todas as democracias que têm serviços de informações. A democracia puxa pela transparência e pela abertura, mas há certas atividades que, para salvaguarda da segurança, têm que trabalhar sob maior reserva.
Marcelo e a lei dos metadados. “Dê-nos uma margenzinha”
Noutra matéria, o PS criticou a proposta do PSD para os metadados, dizendo que era precipitada. Agora, no entanto, vão viabilizar todos os projetos para discutir na especialidade. O objetivo é aprovar um diploma com larga maioria para garantir que passa no Tribunal Constitucional?
Quanto mais abrangente for a maioria de aprovação, mais robusta a solução e maior a possibilidade de ser durável no tempo e congregar várias sensibilidades. O tema é bastante complexo e parece-nos que a opção do PSD é algo precipitada, deixando alguns elementos a descoberto. Mas há elementos valiosos que podem ser pescados nas várias iniciativas. É um processo legislativo exigente
A mudança de paradigma que o Governo apresentou é utilizar as bases de dados das operadoras em vez de centralizar a informação numa nova base de dados. É suficiente para superar os problemas constitucionais?
Supera parte deles. Nesta solução do Executivo, o objetivo é não privar as autoridades que querem investigar e garantir o acesso a informação que já existe por outro motivo, em virtude dos contratos celebrados entre as pessoas e as operadoras. É um modelo capaz de superar muitas das dificuldades, mas pode não resolver todas. É isso que temos que ver na especialidade.
Existe também a questão dos prazos de armazenamento dos dados.
A questão dos prazos é muito técnica. No caso do PSD, é existir um prazo de conservação para uma base de dados específica. Aqui é diferente, porque estamos a falar de uma base de dados que foi consentida no âmbito de uma relação contratual. Mas podem não ser todos os dados. Por exemplo, os dados de tráfego — ‘eu liguei ao Zé às x horas do dia y’ — mostra que existiu uma comunicação. Quanto aos dados de georreferenciação, já não é certo que existam nos mesmos termos e tem que se ver, até tecnicamente, que informação é que lá está e como é que deve ser acedida. É um trabalho de muito detalhe, técnico, jurídico e informático.
Disse, na SIC Notícias, que a decisão do Presidente da República de anunciar já que vai pedir a fiscalização da lei é peculiar. Marcelo Rebelo de Sousa pode estar a criar entraves a uma solução?
Ela é peculiar, não é por requerer a fiscalização, é por estar já a anunciar que a vai requerer antes de conhecer o texto. O Presidente já está a assumir que vai ter dúvidas. Dê-nos ainda a margenzinha para tentarmos construir um decreto que não suscite dúvidas.
Devida optar por uma fiscalização sucessiva em vez de preventiva?
O ponto não é esse. O ponto é “esperar para ver”. Se de facto o que daqui sair for duvidoso então pode anunciar e verificar através de uma fiscalização preventiva. Agora, em defesa do Presidente da República, parece-me que o que procurou dar nota é que tendo em conta a sensibilidade do tema e antevendo até uma fiscalização sucessiva é evitar que, a meio de uma investigação e com a lei em vigor, a constitucionalidade seja posta em causa. Cautelas e caldos de galinha. Mais vale fazer o pedido da preventiva já.
Outra questão paralela era o acesso das secretas aos metadados. O PS não vai pôr essa matéria em cima da mesa?
Esse é outro tema. Esses dados não são acessíveis pelos serviços de informação. A decisão diz respeito a dados que estavam a ser utilizados pelas investigações. O outro caso é distinto. Os nossos serviços de informações estão numa posição singular face aos congéneres porque são dos poucos que não conseguem aceder a estes dados, especialmente no que toca à geolocalização, que deve ser o mais importante para acompanhar movimentos. Essa sim, pode ser insuperável sem uma revisão constitucional mas não é esse o assunto de metadados neste momento
Cavaco Silva? “Dimensão narcísica é inevitável em qualquer ser humano”
A eutanásia também virá ao Parlamento. Acredita que esta alteração pode resolver de vez os problemas?
Parece-nos que se olhou para tudo de forma transversal, melhorou-se a norma de definições para que fique correspondente ao que o Constitucional disse que era o problema. Sabemos já que o Chega pretende realizar um referendo, de constitucionalidade duvidosa, e essa matéria deverá ser discutida em simultâneo. Mas como já existia uma maioria bastante sólida na legislatura anterior que aprovou o texto, não há uma alteração de configuração muito expressiva. O Bloco diminuiu mas a Iniciativa Liberal aumentou. No PSD também há muitos que já tinham acompanhado esta decisão.
Cavaco Silva publicou um texto de opinião no Observador onde desafia António Costa a utilizar a maioria absoluta para fazer mais do que Cavaco Silva. Como é que lida com essa bitola?
Não é a nossa bitola, não seria a minha. Seguramente que qualquer um gostaria que os governos atuassem à sua imagem. Essa dimensão narcísica é inevitável em qualquer ser humano, mas o ponto não é tanto esse. As nossas prioridades políticas são outras, as nossas linhas são diferentes e mesmo sem maioria absoluta, da minha perspetiva, as maiorias relativas do PS já fizeram mais do que as maiorias absolutas de Cavaco Silva. Ele discordará com certeza, mas é da vida.