O trabalho de Pedro Nuno Santos no aparelho do partido não é de hoje, tem anos de existência (foi-se fazendo já durante o costismo) e chegou no último fim de semana ao domínio total. Nas eleições das federações distritais do PS saiu um partido praticamente 100% alinhado com o líder, ainda que bem menos despreocupado com a antecipação de eleições legislativas que Pedro Nuno jurou estar. Uma coisa é “estar sempre preparado para ir a votos”, outra coisa é o que dizem sentir e ver à sua volta no terreno. “Não é desejável”, repete-se a cada canto do partido que até já desobriga o Presidente da República do precedente que abriu em 2021 ao convocar eleições depois de um chumbo orçamental —mas não sem lhe prometer guerra.
Mas quanto vale este controlo no atual cenário de instabilidade política? Pelo menos no dia seguinte à eleição, vale promessa de lealdade ao líder. Mais adiante — e sobretudo se vier mais alguma derrota eleitoral no caminho — se verá. No partido nota-se pouca vontade em ir novamente a legislativas, ainda que no fim de semana passado, nos Açores, o líder tenha soltado o seu próprio modelo do “que se lixem as eleições” (em modo Passos Coelho 2012) e tenha dito que prefere “perder eleições a defender convicções e aquilo que o PS acha que é o melhor para o país do que abdicar das suas convicções para evitar eleições com medo de as perder”.
“É óbvio que é desejável que não houvesse eleições”, diz o novo presidente do PS-Lisboa, Ricardo Leão, ao Observador lembrando as “circunstâncias que obrigam à estabilidade”. “Ninguém quer uma crise política”, repete Hugo Costa, do PS-Santarém. Gonçalo Lopes, novo líder do PS-Leiria, diz mesmo que “é importante que não haja eleições” e acrescenta que o que tem ouvido pelo distrito é a vontade para “que se façam entendimentos entre os dois maiores partidos”. “E parece que não há vontade política, que tem de ser dos dois”, sublinha ainda.
“O PS está sempre preparado para ir a eleições, mas o país não as deseja”, argumenta um dirigente local que prefere não ser identificado. “Nem partido nem o o país acham desejável. Desejável não é, mas não é motivo para que o PS abdique do programa que levou a eleições”, acrescenta Hugo Oliveira recém eleito para liderar o PS-Aveiro. Benjamim Rodrigues, novo líder do PS-Bragança, assume que legislativas antecipadas “não era aquilo que Pedro Nuno Santos desejava”. “E nem tem de ser assim” — essa é a outra parte da argumentação socialista.
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Eleições não são necessárias. Mas Marcelo será criticado marque ou não marque
O receio de penalizações eleitorais ao partido que precipitar eleições tem estado no topo dos cálculos políticos e no PS traduziu-se numa lógica que passa por, numa primeira premissa, garantir que os socialistas não querem esse caminho e tudo farão para viabilizar o Orçamento, e numa segunda, assegurar que não há nenhuma ligação direta entre o chumbo de um orçamento e a convocação de eleições. Tudo para a conclusão que todos desejam no partido: se houver eleições, a culpa não é do PS.
Acontece que este é o mesmo partido que, em 2021, viu o Presidente da República marcar legislativas antecipadas depois de um chumbo de um orçamento de António Costa que, na sequência das mesmas, conseguiu a segunda maioria absoluta da história do PS. Em entrevista ao Público, o líder do PS-Açores, Francisco César, diz agora não ter lido “em nenhuma alínea da Constituição que no caso de o Orçamento não ser aprovado se deva convocar eleições. Não é essa a leitura que faço da Constituição. Um Presidente, o papel que deve ter, é o de facilitar os processos e não o de condicionar nenhum ator político num processo negocial. Há alturas em que o silêncio é de ouro“, disse, numa crítica a Marcelo na gestão pública deste processo.
Na CMTV, esta segunda-feira à noite, o próprio líder também desligou os dois factos, ao dizer que eleições antecipadas “não dependem” do chumbo do Orçamento — sendo também isso que quer dizer quando repete que “só há eleições antecipadas se o primeiro-ministro e o Presidente da República quiserem”.
E o partido alinha nessa leitura, prometendo guerra a Marcelo — seja em que caso for. A marcação de eleições na sequência de crises “é uma nova moda”, refere Hugo Oliveira numa crítica ao Presidente da República. “Não ter Orçamento não significa eleições antecipadas”, refere um dirigente distrital. “Nada invalida que se governasse em duodécimos“, acrescenta Ricardo Leão. Hugo Costa nota que “não há nada na Constituição que diga que a reprovação de uma proposta de lei, que é o que é o Orçamento, significa que tem de haver eleições. Mas sim que tem de ser apresentado um novo”. “Não vejo como necessário ir para eleições”, afirma Alexandre Lote, do PS-Guarda, e Benjamim Rodrigues alinha: “O chumbo do Orçamento não é argumento para uma crise política”.
Hugo Costa ainda garante que no partido “não haveria grande problema se Marcelo decidisse de maneira diferente” do que fez em 2021. Mas aqui o mais provável é que, no PS, o Presidente da República fosse — numa adaptação do ditado — preso por marcar e eleições e preso por não as marcar. Um dos dirigentes distritais que preferiu não ser identificado argumenta que Marcelo “não pode fazer diferente” do que fez perante o chumbo do Orçamento para 2022.
No início de setembro, António Mendonça Mendes, membro da direção do partido, considerava “errada” essa decisão de Marcelo, em entrevista ao programa Vichyssoise na Rádio Observador. “Continuo a achar que o Presidente da República introduziu mais um fator de instabilidade na vida política portuguesa que foi considerar o Orçamento do Estado como uma moção de confiança ou uma moção de censura ao Governo. Isso é errado e, aliás, é surpreendente vindo de um professor de Direito Constitucional”, disse. Mas sem poupar Marcelo de críticas caso agora fizesse o contrário: “O Presidente da República teria que explicar a mudança de critério porque a única diferença que existe entre as duas situações é agora estar um governo de direita, que é da sua família política, e antes não.”
Por agora Pedro Nuno Santos vai dando uma no cravo e outra na ferradura, garantindo, como fez esta segunda-feira à noite, que “não é desejável governar em duodécimos e que isso pode evitar-se. É possível ter Orçamento, mas se não tivermos, não é por culpa do PS, mas do Governo”. No partido não só se vê como importante garantir que “não se está à procura de eleições” — nas palavras do líder, na mesma entrevista televisiva — como que é o PSD que está a empurrar o país para esse cenário.
Não há socialista que não o reclame. “Nem tempo tiveram para responder às propostas do PS e já estavam a chamar Pedro Nuno Santos de radical“, diz Ricardo Leão notando que “o PSD nem comentou o conteúdo do caderno de encargos” entregue pelo PS e aconselhando “bom senso” ao partido de Montenegro. “O PSD tem vontade de eleições e prova-o pela acção. Em primeiro lugar, pelo caderno de encargos eleitoralista, ao tentar resolver num curto espaço de tempo questões que se podem traduzir em votos. E em segundo lugar, porque não tem mostrado abertura significativa”, analisa Victor Hugo Salgado, novo líder do PS-Aveiro.
“Não é normal um comunicado contra o maior partido da oposição no meio das negociações”, recupera ainda Hugo Costa sobre a guerra de comunicados de há duas semanas. Outro dirigente distrital comenta que “negociações que se querem sérias não se fazem em 15 dias ou um mês” e atira mesmo ao PSD — e também ao Presidente — a tentativa de “chantagear o PS” e de o “encostar às cordas com a questão da instabilidade”.
Por outro lado, nesta frente das distritais, há também um olhar de esperança, noutro sentido. “Na sexta-feira fiquei convencido de que o negócio com o Chega seria relativamente fácil. Veremos se o ‘não é não’ não passa a ‘nim’ e acaba por ser ‘sim’”, comenta um dirigente. Outro antecipa outro ganho na declaração do líder da última sexta-feira: “Já tem uma história, já não sai humilhado” desta negociação. E isto porque “Pedro Nuno tinha sido um dos mais críticos na abstenção violenta de António José Seguro. Ao dizer agora que só viabiliza sem estas duas medidas e quando uma delas toda a gente diz que é má, já não sai humilhado”.
Partido dominado, líder garantido?
“O partido está dominado”, comenta um dirigente socialista quando olha para o mapa das eleições internas. “Controla totalmente“, concorda outro. Já não têm tanta certeza sobre o que isso vale para eleições no país.
Nas 19 federações que foram a votos, os vencedores foram apoiantes de Pedro Nuno Santos (há uma exceção na federação do Oeste, onde Brian Silva — agora reeleito — tinha preferido a neutralidade nas diretas de dezembro). Nos últimos meses, o líder manteve-se atento à disputa interna onde havia alguns irritantes, um deles mais do que qualquer outro, já que a sempre quente e significativa (em número de militantes) federação de Braga tinha uma contenda que podia deixar uma semente carneirista no ninho pedronunista. Não aconteceu: Luís Soares acabou por perder frente a Victor Hugo Salgado e Pedro Nuno pôde respirar fundo.
E a distrital de Bragança, que tinha como presidente a apoiante de Carneiro Berta Nunes, passou a ter Benjamim Rodrigues — mais um apoiante de Pedro Nuno — como líder. De resto, só houve disputa de liderança em quatro federações (Aveiro, Baixo Alentejo, Braga e Leiria) e só mesmo em Braga é que se enfrentaram figuras dos dois polos que se opuseram nas diretas — e a disputa tinha na base mais questões distritais do que propriamente trazidas dessa contenda nacional. A razia pedronunista surpreende, por tudo isto, pouco. “Se há coisa que ele sabe tratar é das estruturas do partido”, nota um dirigente socialista.
Federações do PS vão a votos com um “duelo fratricida” e “uma guerra civil”
E isso é uma almofada importante para o líder caso se precipitem eleições e elas corram mal? São poucos os que aceitam responder diretamente à pergunta e quem o faz é sempre politicamente correto. “Não é assunto”, responde rapidamente Gonçalo Lopes quando questionado pelo Observador. Outro dirigente distrital diz que “não está em causa a liderança por causa da hipótese de eleições antecipadas”. “Estaremos sempre com Pedro Nuno Santos”, diz Benjamim Rodrigues. “Não acredito que a antecipação de eleições traga pressão imediata sobre a liderança do PS”, acrescenta outro dirigente.
Hugo Oliveira acredita que Pedro Nuno Santos” tem todas as condições para continuar a liderar o partido” em caso de derrota nas legislativas. “Se perder continua. Vai depender da derrota que for”, concede outro dirigente. “Depende da vontade dele”, acrescenta à lista Ricardo Leão.
Pelo menos por agora. Alexandre Lote diz que as eleições nas federações “mostram claramente que o PS está com este líder e se revê na sua forma de negociar o Orçamento”. Victor Hugo Salgado diz que resultados mostra “reconhecimento dos militantes pela liderança de Pedro Nuno e que continuam a apoiar o secretário-geral”. Hugo Costa lembra que “é sempre importante ter pessoas em quem confie a trabalhar nos distritos”, sobretudo com o desafio autárquico a meio deste ciclo de dois anos dos presidentes agora eleitos ou reeleitos.
“Com paz interna, o processo autárquico é mais pacífico, o líder tem menos choques diretos porque tem os presidentes de federação a fazer esse papel por ele”, comenta um dirigente sobre este assunto. E “pode focar-se nas questões externas, sem ter de estar a gerir conflitos internos, o que dá grande tranquilidade”, acrescenta. Mas também avisa que “a unidade não é perpétua”. Ou como lembra Benjamim Rodrigues, “não há concordância total sempre”. António José Seguro, outro socialistas que durante algum tempo preparou e dominou o aparelho partidário, não diria muito diferente.