Depois de um mês atribulado para António Costa, para o Governo e para o país, o Parlamento debateu o Estado da Nação. O primeiro-ministro esteve, sem surpresas, no centro de todos os ataques e foi respondendo quando e como quis, tendo mesmo acabado por ser acusado de estar a abusar da maioria absoluta ao fim de três meses, depois de ignorar 17 perguntas (ou de responder em segundos e praticamente sem conteúdo). Houve estreias, espectadores (pouco) escondidos e um primeiro-ministro que se sentiu insultado por uma velha aliada e que até já mostra algumas saudades de Rui Rio.

Contamos-lhe estas longas quatro horas de debate numa versão resumida.

Os anúncios

Se no final da sessão legislativa anterior o único anúncio que o Governo fez estava relacionado com a vacinação dos jovens contra a Covid-19, este ano a história foi outra. Com novidades de última hora sobre a gratuitidade das creches para os mais jovens, o Governo somou ainda seis outros anúncios divididos entre o chefe de Executivo e o ministro do Ambiente Duarte Cordeiro.

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A partir de setembro haverá creches gratuitas para as crianças do primeiro ano; um novo pacote de medidas de apoio a empresas e famílias (que não mereceu a explicação de qualquer detalhe) e ainda uma nova avaliação estratégica dos projetos de reforço do caudal na secção do médio Tejo.

António Costa anunciou ainda uma “nova edição do Simplex” e o início da reforma da Administração Pública, com a valorização do salário dos técnicos superiores.

Mas nem tudo se faz de promessas a médio/longo prazo. Duarte Cordeiro anunciou ainda que, em menos de 24 horas, o Conselho de Ministros aprovará medidas para facilitar o processo de licenciamento do uso da água reciclada.

A duração

No primeiro Estado da Nação da maioria absoluta de António Costa, o início dos trabalhos foi adiado uns minutos graças ao voto de uma deliberação sobre um projeto do Chega, mas nada que incomodasse a postura praticamente intocável do Governo. Num debate com cerca de quatro horas, os ânimos mantiveram-se quase sempre tranquilos, com a habitual troca de comentários entre bancadas e entre deputados e membros do Governo.

As estreias

Começou pela sua área forte, a economia, a acusar este Governo de conduzir o país ao empobrecimento e disparou números a provar que o PS cortou um salário em 14 aos funcionários públicos. Enfim, “a austeridade socialista que tentam esconder”, dizia Joaquim Miranda Sarmento na sua estreia como líder parlamentar. Um batismo cuja história também contará a ofensiva que Costa disparou sobre o deputado, na resposta.

Chamou-lhe “um elo de continuidade” entre o PSD de Rui Rio e o de Montenegro que, na verdade, diz ser o de Passos. “O velho novo, revelho, PSD”, resumiu o líder socialista numa rajada de ataques que até incluiu um “manual” de propostas económicas que Miranda Sarmento publicou em 2019. Costa prometeu depois levar esse livro para ler nas férias (ler mais abaixo), após ter tirado alguns exemplos de uma tabela como a reposição do IVA da restauração em 23%,u a aplicação da coleta mínima do IRC para as 302 mil empresas que não estão obrigadas ao pagamento do IRC e a criação de um IRS mínimo de 40 euros para os 2,5 milhões isentos da coleta por estarem abaixo do mínimo de existência.

O outro estreante num debate do género foi o ministro da Cultura, o que alguns deputados do PS “estranharam”. Costa chamou Pedro Adão e Silva para o fecho de um debate político quando a sua área, a cultura, está longe de ser uma das centrais nos últimos tempos (e noutros também). O elemento que faz parte da coordenação política do Governo acabou por se dedicar a um discurso exclusivamente de política geral (e nada setorial), focando-se nos ataques ao passismo, onde o seu PS vê há anos um primeiro-ministro que dividiu o país. “Já passou o tempo em que se punham uns contra os outros”, garantiu.

Os avisos

Quem viu António Costa no debate de política geral há um mês ainda se recorda do tom crispado, com que atirou para todos os lados. Longe desse dia está o primeiro-ministro que surgiu esta quarta-feira no Parlamento — muito mais rodeado de polémicas e problemas (no Governo e não país), mas com uma atitude menos assertiva. Desta vez (à semelhança do último debate), um dos tiros do primeiro-ministro foi para uma velha aliada: Catarina Martins.

A coordenadora do Bloco de Esquerda trouxe a debate a atribuição de fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), mais especificamente o facto de a empresa de Mário Ferreira ser uma das que recebeu fundos e sugeriu que foi dada “prioridade” a uma empresa administrada por um ex-assessor do primeiro-ministro. Para Catarina Martins não foi suficiente deixar a suspeita no ar e resolveu perguntar diretamente a António Costa que envolvimento teve no caso. Foi a gota de água. O primeiro-ministro não foi de meias-palavras, sentiu-se picado, disse mesmo que aquela era uma pergunta “insultuosa” e garantiu ter tido intervenção “zero” no caso.

Agora que o PSD tem um novo presidente, António Costa, aparentemente, já está com saudades de Rui Rio (o que até valeu um elogio ao ex-líder social-democrata — ver mais abaixo). Porém, há um passado mais longínquo que o primeiro-ministro usou como arma de arremesso para o novo (velho) PSD. E tem um nome: Passos Coelho.

O primeiro-ministro acredita que com a eleição de Luís Montenegro o PSD entrou em “marcha à ré”, tanto que, aos olhos de Costa, conseguiu trazer a “velha constelação do passismo puro e duro”, nomeadamente com nomes como Maria Luís Albuquerque.

O espectador

Luís Montenegro lidera a oposição com o desafio acrescido de não ocupar nenhum dos 77 lugares dos sociais-democratas na bancada. Mas se há coisa que conhece bem são os corredores do Parlamento e a necessidade de marcar a agenda. A solução? Assistir ao debate no gabinete do PSD e falar aos jornalistas à saída, no final do debate.

Depois de ouvir António Costa associar a sua liderança ao regresso do passismo, Montenegro frisou que “tem uma grande honra em ter estado ao lado de Pedro Passos Coelho” e, na impossibilidade de atacar diretamente durante o jogo parlamentar, fê-lo no tempo de compensação: “Exorto o primeiro-ministro a dizer se tem o mesmo orgulho em ter estado ao lado de José Sócrates e António Guterres, bancarrota e pântano.”

Naquela que foi a primeira prestação à frente da bancada, Miranda Sarmento beneficiou ainda da defesa do líder do partido nas declarações que fez à saída do Parlamento. Com um António Costa ao ataque a Miranda Sarmento, Montenegro diz que “as intervenções do PSD se centram na substância” e que a resposta de Costa foi “folclore parlamentar”.

Conhecedor a 100% da importância de liderar uma bancada parlamentar para crescer politicamente e em notoriedade, Luís Montenegro continuará ainda assim a fazer o comentário final depois de o hemiciclo se esvaziar.

O bombeiro de serviço

Por mais do que uma vez, durante as suas intervenções (algo impacientes) neste debate, o primeiro-ministro atirou para o seu ministro do Ambiente e da Ação Climática respostas a perguntas que lhe chegavam da oposição sobre incêndios. Quis colocar o assunto no plano das reformas e nem expôs o ministro da Administração Interna nesta fase. Duarte Cordeiro assumiu a gestão dessa frente de fogo, disparando com os números de recursos materiais e os milhões neles investidos, na prevenção de incêndios. Mas sobretudo com as reformas que estão a ser feitas para combater as alterações climáticas, a seca e os outros riscos que delas decorrem. Aqui avisou que “este processo demorará uma geração: a escala da paisagem e da floresta não é dos ciclos políticos, mas da natureza.”

Costa tocou no tema o menos que conseguiu (e noutros também, na verdade), ainda que este tenha sido o assunto que mais centrou a oposição, desde uma ponta à outra do plenário: das acusações de falta de investimento e de eucaliptos e mato a “crescer desordenados”, apontados por Catarina Martins (do BE), à acusação de André Ventura (do Chega) sobre o país liderado por Costa que “tem a maior área ardida da Europa desde 2015”. O assunto foi passando, com o PSD a falar ainda na falta de meios, questionando o motivo para em 2016 o Governo ter dispensado a compra de Canadair (aviões anfíbios de combate aos fogos). A tudo, Costa acabou por acudir com uma extensa lista, enumerada por Duarte Cordeiro, com medidas que prometem “transformar a paisagem e a floresta”, mas à la longue.

A dificuldade

A maior dificuldade foi ter o primeiro-ministro a responder a perguntas. Fez uma intervenção inicial, chutou o que pôde para o ministro que se seguia, anunciou um pacote de medidas para setembro sem adiantar uma única e quando lhe foram dirigidos 17 pedidos esclarecimentos seguidos, escolheu responder em conjunto fazendo o impensável: não respondeu a um único. Entre elas estavam até perguntas da bancada da maioria, incluindo do líder da JS que quis saber que medidas estão alinhadas para “melhorar a vida dos jovens em Portugal”. Apenas assumiu “que há problemas” e que “a grande diferença é que a oposição quando vê problemas fala em caos e o Governo vê desafios para procurar soluções”. Um minuto de resposta genérica para os longos minutos de pedidos de esclarecimento da oposição e siga.

No Chega, o líder Parlamentar Pedro Pinto, chegou a queixar-se ainda enquanto se sucediam os esclarecimentos, apontando ser “antidemocrático” responder em conjunto ao que estava a ser perguntado. E, depois deste momento, já na intervenção final, a líder do BE Catarina Martins assinalou que “esta recusa em responder é um sinal do estado da maioria absoluta e ainda só passaram 100 dias desde que o Governo tomou posse.”

As melhores tiradas (e um insólito)

António Costa chegou ao debate pronto para esvaziar o novo líder da bancada parlamentar do PSD, Joaquim Miranda Sarmento (a quem até chamou Morais Sarmento). Depois da estreia do social-democrata, o primeiro-ministro admitiu estar “perplexo” pela “dessintonia” que notou entre o discurso de Miranda Sarmento e o PSD que existe no terreno, mais propriamente os autarcas do PSD. Em causa estava o acordo de descentralização, que incluiu um acordo entre o Governo e a Associação Nacional de Municípios Portugueses (que contou com votos de autarcas do PSD).

Mas não se ficou por aqui o bate-boca entre os dois. António Costa trouxe para o debate algumas folhas, entre elas uma em que mostrou a capa do livro de Joaquim Miranda Sarmento, intitulado “A reforma das finanças públicas em Portugal”. Atirou às ideias do novo líder parlamentar e depois de ter ouvido de Miranda Sarmento que devia ler mais do que aquilo que lhe foi dado pelo assessor, António Costa prometeu abrir uma exceção para as férias: não ler só romances.

António Costa elogiou Rui Rio, agradecendo ao ex-presidente do PSD o contributo em momentos difíceis e André Ventura não deixou escapar o momento para reiterar a ideia de que o PSD não fazia oposição ao Governo e para garantir que dispensa elogios do género. Na resposta, o primeiro-ministro, lembrou que, num debate da campanha eleitoral, já tinha prometido ler a tese de doutoramento de Ventura: “Não precisa de ter ciúmes.”

O tête-à-tête que António Costa costuma manter com a Iniciativa Liberal teve mais um capítulo, desta feita pela reação de António Costa quando João Cotrim Figueiredo o acusou de não conhecer o país real. O primeiro-ministro enunciou um conjunto de fatores da vida dos portugueses que não lhe escapavam e finalizou: “Acha que não conheço a realidade social? Ó senhor deputado, eu não sou da Iniciativa Liberal”, sugerindo que os deputados liberais é que não conhecem o país.

O aplauso

O primeiro-ministro fez questão de ir à antepenúltima fila da bancada parlamentar do PSD para dois dedos de conversa com o líder do partido que saiu, Rui Rio. Pouco depois — quando respondia pela primeira vez ao PSD — fez questão de referir o antigo adversário, justificando que no último debate não o referiu por estar “discretamente lá atrás”. Agora, também com Rio lá atrás, Costa agradeceu-lhe “o contributo que deu em momentos tão duros e difíceis” para o país, nomeadamente a pandemia. A referência mereceu aplausos da bancada do PSD, mas também de alguns socialistas.

Fazer o que nem a ditadura fez

António Costa, ainda sobre a diferença entre a bolha central do PSD e os autarcas, usou o exemplo da ditadura para dizer que o que está a ser feito a nível de cadastro florestal “nem na ditadura se conseguiu avançar”. Rui Tavares ainda tocou no tema, crendo ter sido um “lapso” do primeiro-ministro fazer a comparação, mas o chefe do Executivo não voltou com a palavra atrás e reiterou a ideia.

Foi até buscar o código civil de 1966 para dizer que permitia a apropriação pelo Estado das terras sem dono conhecido. Certo é que Costa disse estar a fazer mais do que a ditadura fez — sem se perceber bem a comparação.

O protesto

António Costa preparava-se para responder a Jerónimo de Sousa quando um som vindo das galerias lhe roubou a atenção – e as palavras – por uns segundos. Nas galerias destinadas ao público estava um homem, de pé, que pedia a atenção e a palavra ao primeiro-ministro. Em pouco tempo, os agentes da PSP pediram ao homem que abandonasse as galerias para ser identificado. Não são permitidas quaisquer tipos de manifestações do público nas bancadas da Assembleia da República.

O objetivo do protesto era chamar a atenção do primeiro-ministro para o 5G. Queria Ricardo Pinto alertar o Governo para o que consideram ser os malefícios que a tecnologia pode trazer à saúde, mas em poucos segundos o homem foi obrigado a sair das galerias sem conseguir mais do que colocar o dedo no ar. A intervenção seguiu como se nada se passasse.