Os especialistas do Instituto Ricardo Jorge (INSA), responsáveis pelos cálculos estatísticos da evolução da pandemia da Covid-19 em Portugal, discordam do levantamento imediato das restrições implementadas no país — que começou a ser admitido pelo Governo, de forma gradual, na última semana e que será decidido na próxima. Os peritos consideram que ainda é cedo para o fazer e estão preocupados com essa possibilidade. O Observador sabe que, dentro do instituto, teme-se que um levantamento das restrições feito demasiado cedo possa fazer subir o valor do “R” (o número médio de pessoas infetadas por cada doente), numa altura em que a margem de manobra é ainda muito reduzida e em que ainda não há estudos suficientes que permitam antecipar o impacto do fim das restrições nesse valor.
Na semana passada, uma reunião entre os principais especialistas do país e a elite política portuguesa dedicada à pandemia da Covid-19 tinha posto o assunto em cima da mesa: é preciso reduzir o “R” no país para um valor abaixo de 0,7 para que Portugal possa começar a pensar em aliviar as medidas de restrição desenhadas para conter a disseminação do coronavírus. Perante uma audiência composta pelo Presidente da República, primeiro-ministro, presidente do Parlamento, líderes partidários, parceiros sociais e outros atores políticos, os especialistas sublinharam a importância da redução do R — um valor que, por definição, representa o número médio de pessoas a quem cada doente infetado transmite a doença.
Sem referir a preocupação que existe entre os peritos do INSA, revelada por outros ao Observador, o coordenador da Unidade de Investigação Epidemiológica do INSA, Baltazar Nunes, explicou esta sexta-feira que o valor do “R” em Portugal estabilizou nos últimos dias à volta do 0,9, não representando ainda uma margem de manobra confortável para o regresso à normalidade. A matemática é muito óbvia: se este valor for superior a 1, então o surto aumenta de dimensão; se o valor for inferior a 1, a epidemia caminha para o seu fim. Recentemente, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, tinha revelado que o valor do R em Portugal era de “cerca de 1”, com algumas variações regionais.
Baltazar Nunes falou ao Observador a poucos dias de uma nova reunião no Infarmed entre os especialistas e os líderes políticos. Nessa reunião, o Governo irá ouvir o aconselhamento da comunidade científica para tomar depois uma decisão concreta sobre a forma e o momento do gradual regresso à normalidade em Portugal, sendo que a expectativa já anunciada repetidas vezes pelo Governo é que esse regresso possa começar a ser feito já a partir do início do mês de maio. O desconforto dos peritos do Instituto Ricardo Jorge perante a ideia deverá ser transmitido aos responsáveis políticos durante esse encontro. O Governo já fez saber que pretende que as aulas presenciais no ensino superior sejam retomadas a partir de dia 4. Também no que toca à Igreja Católica, por exemplo, o primeiro-ministro já manifestou a intenção de que no mês de maio possam ser retomadas de forma gradual as celebrações.
“Agora está à volta dos 0,9. É a estimativa que temos. Tem variado de região para região, mas tem andado à volta desses valores e sempre abaixo de 1“, disse Baltazar Nunes, sublinhando que o valor não cresceu sistematicamente desde a adoção das medidas de contenção. “Aumenta ligeiramente, desce ligeiramente, tem estado estável”, explicou. O valor de 0,7 como indicador de que foram atingidas as condições para um potencial regresso gradual à normalidade foi apresentado à elite política com base no exemplo da Noruega, que definiu que a epidemia estava sob controlo a partir desse ponto. Apesar de Graça Freitas ter insistido que o 0,7 não é nenhum valor “milagroso”, os especialistas ouvidos pelo Observador concordam que é a partir daquele ponto que há maior segurança para uma reabertura da economia — mas Portugal ainda não chegou lá.
“O 0,7 dá uma maior folga na implementação de medidas do que o 0,9“, considera Baltazar Nunes. “E se tivermos 0,5, ainda é melhor, por exemplo”, acrescenta. “Mas depende muito das medidas que vierem a ser implementadas”, sublinha o especialista, reconhecendo que um aligeirar da contenção representa sempre uma subida do valor do R. Crucial é garantir que o país tem margem de manobra para aguentar uma subida do número sem que este ultrapasse o valor de 1 — momento a partir do qual a epidemia voltaria a estar em tendência de crescimento —, algo que um valor de 0,9 ainda não garante, no entender do instituto.
Para isso, sublinha Baltazar Nunes, é fundamental olhar para as experiência dos países que vão à frente de Portugal no caminho de combate à pandemia — e essa análise ainda não está feita. “Temos de saber em quanto é que as medidas que vamos implementar vão aumentar o R. Imagine que pretendemos reabrir o pequeno comércio. Para saber qual é o impacto, tenho de saber em quanto é que isso vai aumentar a taxa de contacto entre as pessoas”, destaca o responsável do INSA, sublinhando que é preciso aliar esta previsão ao conhecimento obtido com base nas experiências dos outros. “Tenho de ver, também, na Noruega, quando eles abriram o pequeno comércio, se o R deles passou de X para Y. Trabalhamos sempre com cenários.”
Além disso, é preciso ter atenção à própria capacidade disponível no sistema de saúde. Segundo Baltazar Nunes, o levantamento de medidas deverá ser feito numa altura em que se registe um menor número de pessoas internadas nos cuidados intensivos.
Medidas de contenção fizeram cair o contágio
No início do surto em Portugal, os especialistas do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) calcularam o chamado “R0”, ou seja, o número básico de reprodução do coronavírus. Segundo explica ao Observador o coordenador da Unidade de Investigação Epidemiológica do INSA, Baltazar Nunes, o R0 é uma “medida em condições ideais para o vírus“. Ou seja, “em que toda a gente é suscetível ao vírus, ninguém tem anticorpos, não há medidas de saúde pública implementadas e o vírus se propaga na população tendo em conta a taxa de contactos”. Trata-se da “propagação da doença em condições naturais”.
Em Portugal, o R0 foi medido até ao dia 16 de março, dia em que entrou em vigor o encerramento das escolas no país. “Mesmo assim, não conseguimos calcular de forma pura, porque já estávamos à espera do vírus e já havia alguns cuidados“, reconhece Baltazar Nunes. A estimativa é que o vírus tenha crescido com um R0 superior a 2 e inferior a 3 — ou seja, antes de haver medidas implementadas, o vírus transmitia-se naturalmente com cada infetado a contagiar em média entre duas e três pessoas.
A partir daí, os especialistas do INSA começaram a calcular o “R”, ou “Rt” — ou seja, o valor do R em função do tempo já em condições reais, tendo em conta as medidas de saúde pública implementadas e a imunidade gradualmente gerada na população. “É o que nos monitorizamos para perceber o que se está a passar. Quisemos saber como evoluiu depois do fecho das escolas e da implementação do estado de emergência. Conseguimos perceber se as medidas têm impacto de passarmos de um R=2 para um número mais baixo. O que nós estamos a monitorizar é este R efetivo.”
Segundo Baltazar Nunes, este valor tem “decrescido gradualmente” desde a implementação das primeiras medidas de contenção, já se encontrando abaixo de 1 — ou seja, a epidemia já está numa tendência de diminuição do número de novos casos.
Os números da evolução do valor do R em Portugal têm sido mantidos sob reserva, partilhados pelo INSA apenas com a Direção-Geral da Saúde e o Ministério da Saúde. Ao que o Observador apurou, o valor do R em Portugal atingiu os maiores picos nos dias 21 a 23 de março, ainda no início do período em que as medidas de contenção foram aplicadas. Entre essa altura e o período da Páscoa, que se assinalou a 12 de abril, o R em Portugal desceu até 1 e desde essa altura que se encontra a oscilar ligeiramente em torno dos 0,9. Isto significa que o valor do R em Portugal se encontra relativamente estagnado há cerca de duas semanas.
Noruega atingiu 0,7, mas mesmo assim especialistas pediram cautela
Aos responsáveis políticos portugueses foi na semana passada apresentado o caso norueguês. Na semana passada, o ministro da Saúde da Noruega, Bent Høye, revelou que o R0 no país tinha caído para 0,7, num discurso em que agradeceu aos noruegueses por continuarem a seguir as recomendações das autoridades de saúde relativamente ao distanciamento social. “Isto significa que temos a epidemia sob controlo”, assegurou Bent Høye, lembrando que antes da aplicação das medidas restritivas o valor do R0 no país era de 2,5.
No dia seguinte, com base nas conclusões apresentadas pelo ministro da Saúde, o governo norueguês decidiu que, a partir do dia 20 de abril, poderiam reabrir as escolas e seria levantada a restrição de viajar para as casas de férias nas zonas rurais (que havia sido imposta em março para reduzir a pressão sobre as menos bem equipadas unidades de saúde das regiões remotas do país).
Na mesma semana, porém, o instituto de saúde pública da Noruega, o FHI, publicou um relatório em que apelou à cautela na tomada de decisões neste sentido. Segundo o relato da imprensa norueguesa, este organismo escreveu que “a população tem de estar preparada” para que as condições piorem no futuro. “Muitos vão ficar doentes, alguns com gravidade”, consideraram os cientistas, que, reconhecendo que a descida do valor do R0 era positiva, sublinharam que “a epidemia vai sofrer um declínio rápido se as condições que afetam esse declínio forem mantidas”.
Por outras palavras: as medidas de contenção resultaram na descida do valor do R0 e devem ser mantidas de forma a que esse valor continue abaixo de 1. Até porque, como recomendou o FHI, as autoridades de saúde na Noruega devem preparar-se para uma epidemia com a duração de um ano.
O recurso ao exemplo norueguês não tardou a gerar questões em Portugal. Questionada sobre o tema na quinta-feira, durante a conferência de imprensa diária sobre a evolução do surto, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, foi clara: “Não há um valor milagroso”.
“Houve um país que, foi a Noruega, que decidiu que quando o R0 da Noruega fosse de 0,7, ou seja, quando uma pessoa infetasse em média 0,7 pessoas, estaria na altura de descomprimir as medidas de contenção. Este não é o único critério que está a ser utilizado por diferentes países”, afirmou Graça Freitas aos jornalistas, acrescentando que Portugal está a beneficiar da vantagem de ter começado o período epidémico mais tarde, podendo “acompanhar diferentes critérios, que estão a ser adotados por diferentes países, para ver qual é aquele se adaptará melhor à nossa realidade”.
Graça Freitas insistiu que o valor de 0,7 foi “apenas o número que a Noruega decidiu, com a população norueguesa, com a cultura norueguesa, com as características do serviço de saúde norueguês”. Neste momento, assegurou, existe em Portugal um “grupo grande de cientistas e um grupo grande de médicos clínicos, médicos de saúde pública, pessoas que estão na gestão destas situações, a avaliar qual será a altura ideal para começarmos a descomprimir, como é que isso poderá ser feito e quais vão ser os critérios”.
Ao Observador, o pneumologista Filipe Froes, que coordena o gabinete de crise montado pela Ordem dos Médicos para a Covid-19, explicou que o valor de 0,7 é considerado um indicador, a nível global, de que a epidemia “está em extinção”. Este valor “significa que o número de novos casos é inferior ao número de casos atuais” e é “um indicador de que, a manter-se esse número, há condições para que alguma atividade possa ser aberta sob grande vigilância”.
“Significa que foi atingido um patamar de sustentabilidade na propagação da doença que nos permite reabrir algumas atividades”, sublinha o especialista. Mas, tendo em conta que o R representa o número de pessoas infetadas em média por cada portador do vírus, a abertura da economia não poderá fazer aumentar o valor — inclusivamente fazendo-o subir acima de 1?
“Podemos correr esse risco”, responde Filipe Froes. “Por isso é que digo que tem de ser com vigilância e de forma faseada. Se nós soubermos manter um sistema de vigilância e ir abrindo progressivamente, à partida temos mais sucesso.”
Apesar de 0,7 ser “o valor que a maior parte dos países utiliza como indicador”, o mesmo se aplicando a Portugal, Filipe Froes entende a posição de Graça Freitas de não classificar o número como “um ponto milagroso” — não só porque é necessário pesar mais fatores na decisão de reabrir a economia, mas também porque o número estará sempre sujeito a variações de âmbito regional. “O 0,7 é o valor que nos dá a maior segurança. O que não quer dizer que não seja possível reabrir com 0,8, ou até 0,9. É preciso é saber qual é o número e calcular todos os riscos no momento de tomar a decisão.”
Também o coordenador da Unidade de Investigação Epidemiológica do do INSA, Baltazar Nunes, concorda que a decisão de levantar medidas restritivas não deve ser feita com base apenas no valor do R. “O desejo é que ele desça mais e que também o nível da incidência desça mais. Não podemos tomar decisões só com base no número, teremos de analisar vários números em conjunto, que são diferentes nas regiões”, explica.
O R e o colapso do sistema de saúde
O valor do R0 — tecnicamente chamado o número básico de reprodução — e a evolução do R não têm sido utilizados unicamente para ajudar na determinação do momento em que será possível levantar as restrições impostas para conter o surto. O número também pode ser útil para calcular a capacidade dos sistemas de saúde para lidar com a epidemia — e, sobretudo, para perceber quando é que os sistemas podem esgotar a sua capacidade.
Recentemente, a chanceler alemã, Angela Merkel, foi muito clara sobre a interpretação concreta dos números. Numa apresentação sobre o plano do governo federal para responder à epidemia, Merkel destacou que o R no país, naquele momento, estava calculado em cerca de 1 — ou seja, cada pessoa infetada contagiava, em média, outra pessoa. No seu discurso, Merkel detalhou a matemática estudada pelo governo alemão. Segundo explicou a chanceler, o governo de Berlim tentou perceber exatamente como reagiria o sistema de saúde alemão com diferentes valores do R.
This is how Angela Merkel explained the effect of a higher #covid19 infection rate on the country's health system.
This part of today's press conf was great, so I just added English subtitels for all non-German speakers. #flattenthecurve pic.twitter.com/VzBLdh16kR
— Benjamin Alvarez (@BenjAlvarez1) April 15, 2020
Se cada doente infetasse em média 1,1 pessoas, o sistema de saúde, incluindo já as instalações adaptadas para reforçar a capacidade instalada, chegaria ao limite no mês de outubro. Se o valor subisse para 1,2 a capacidade máxima do sistema de saúde alemão seria atingida em julho. Já se o número fosse de 1,3 este limite seria alcançado em junho.
“Portanto, podem ver a partir daqui a pequena margem de manobra que temos”, concluiu Merkel. Dois dias depois de a chanceler ter anunciado aqueles números, o valor do R registou, de acordo com o instituto de saúde pública alemão, uma queda para 0,7.
A diminuição do valor do R levou o ministro da Saúde da Alemanha, Jens Spahn, a afirmar que o surto da Covid-19 voltou a estar sob controlo e que as medidas implementadas nas últimas semanas foram bem sucedidas na luta contra o vírus. A declaração do ministro foi, contudo, temperada com palavras de cautela por parte do presidente do instituto de saúde pública, Lothar Wieler. “Ainda estamos no início da pandemia”, disse Wieler, sublinhando que a Alemanha “sobreviveu muito bem à primeira onda” da infeção.
O Observador procurou saber junto das instituições portuguesas qual a realidade em Portugal no que toca à capacidade do sistema de saúde para dar resposta à epidemia perante diferentes cenários de levantamento de medidas de contenção que representem diferentes alterações no valor do R.
Porém, chegar à resposta é um caminho longo e nem sequer é possível encontrar uma resposta concreta à relação entre o R e a capacidade do sistema de saúde. O Ministério da Saúde remeteu as questões do Observador para a Direção-Geral da Saúde, que por seu turno afirmou que deveria ser o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) a pronunciar-se sobre questões relacionadas com o R0.
“Essas contas estão a ser feitas, mas neste momento não temos resultados finais para os apresentar”, diz Baltazar Nunes, coordenador da Unidade de Investigação Epidemiológica do INSA. “Depende de qual vai ser a capacitação do SNS para responder e vai depender do momento em que isso for feito“, explica o responsável.
“Se fizermos uma reabertura numa altura em que temos muitos indivíduos internados em cuidados intensivos, a nossa capacidade de folga vai ser menor. Se levantarmos as medidas numa fase em que tivermos menos indivíduos internados em cuidados intensivos, vamos ter uma folga maior. É preciso ter em atenção a capacitação do SNS, que deve ser levada em conta na fase de levantamento das medidas”, acrescenta Baltazar Nunes.
No entender do médico Filipe Froes, as afirmações de Angela Merkel fazem sentido, mas devem ser interpretadas numa lógica de preparação do sistema de saúde. “O que ela diz é que, com os meios atuais, entrariam em rutura com determinado valor do R0, o que pressupõe que se tivessem aquele R0 seriam encontrados os meios necessários“, sublinha o especialista, acrescentando que o Serviço Nacional de Saúde tem vindo a reforçar a capacidade de resposta e que, até agora, o SNS ainda não viu a procura superar a oferta.
Ainda assim, a dificuldade em ter uma ideia completa da capacidade do SNS a nível nacional para responder à pandemia impede que seja feito um cálculo detalhado como o apresentado pela chanceler alemã na semana passada. A questão dos ventiladores é só um exemplo: o Governo apenas fez o levantamento completo do número de ventiladores disponíveis no território português em março deste ano, numa altura em que já lidava com a pandemia da Covid-19.
Para Filipe Froes, num contexto em que tudo parece indicar que o sistema de saúde em Portugal será capaz de responder à crise, “uma das lições que se podem retirar desta pandemia” é precisamente a necessidade de melhorar a “monitorização da capacidade do SNS“.
Cientistas aconselham cautela no recurso ao R0
Embora a definição seja simples, a forma de calcular o R0 e o R é mais complexa do que aparenta. E, embora este seja um valor fundamental para estudar a forma como qualquer epidemia evolui e no qual se baseiam muitas das medidas de saúde pública adotadas num contexto como o atual, é preciso ter cautela no seu cálculo e interpretação.
“O número básico de reprodução (R0) pretende ser um indicador da contagiosidade ou transmissibilidade de agentes infecciosos e parasíticos”, indica uma revisão científica publicada em janeiro de 2019 pelos Centros para o Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA. “É expectável que um surto continue se o R0 tiver um valor superior a 1 e que acabe se o R0 for inferior a 1”, explicam os cientistas norte-americanos, destacando que a interpretação deste valor é tipicamente “direta”.
“A dimensão potencial de um surto ou de uma epidemia é frequentemente baseada na magnitude do valor do R0 para o acontecimento, e o R0 pode ser usado para estimar a proporção da população que deve ser vacinada para eliminar a infeção da população”, lê-se no mesmo artigo.
Menos direto é o cálculo do valor. “Nas mãos dos especialistas, o R0 pode ser um conceito de grande valor. Porém, o processo de definir, calcular, interpretar e aplicar o R0 está longe de ser direto. A simplicidade de um valor R0 e a sua interpretação correspondente mascaram a natureza complicada desta métrica”, diz o CDC, que alerta para os frequentes erros na interpretação “dos efeitos da vacinação” neste valor.
Os cientistas norte-americanos alertam para uma série de fatores a ter em conta na interpretação do R0. Em primeiro lugar, o valor não é uma constante associada a determinada infeção. Por exemplo, estudos recentes identificaram valores de R0 para o sarampo a oscilar entre o 3,7 e o 203,3. Esta enorme variação “destaca a potencial variação do valor de R0 para uma doença infecciosa com base nas circunstâncias sócio-comportamentais e ambientais de cada local”.
Além disso, a própria linguagem tem aqui um papel importante. Embora seja frequente a descrição do R0 como “taxa de contágio”, a comunidade científica defende que a expressão mais correta é “número de casos por caso”. Ou seja, trata-se de um número, ou de um rácio, mas não de uma taxa, que teria subjacente uma dimensão temporal.
Na verdade, o R0 não tem essa dimensão temporal. “Se o R0 fosse uma taxa que envolvia o tempo, a medida forneceria informação sobre quão rapidamente uma epidemia se dissemina numa população. Mas o R0 não indica se os novos casos vão ocorrer 24 horas depois do caso inicial ou meses depois, tal como o R0 não indica se a doença produzida pela infeção é grave”, adverte o mesmo organismo.
Como resume o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC), “o R0 é proporcional à taxa de contactos e vai variar de acordo com a situação local”. Numa revisão científica publicada já em abril deste ano e focada particularmente na pandemia da Covid-19, o ECDC explica que ainda é necessária “mais investigação para obter uma estimativa mais exata do R0 nos vários contextos do surto”.
Mas há mais. Os cientistas advertem para a cautela que é necessária na adoção de medidas de saúde pública com base no valor do R0. “Quando o objetivo é medir a eficácia de campanhas de vacinação ou de outras intervenções de saúde pública, o R0 não é necessariamente a melhor medida”, dizem os especialistas do CDC.
Segundo explica aquele organismo, o valor calculado para o R0 implica assumir que toda a população é igualmente suscetível de contrair o vírus. Por isso, a criação de imunidade numa população não reduz, do ponto de vista matemático, o R0, nem deve ser anunciada, portanto, como forma de o reduzir.
Ao mesmo tempo, há um elevado grau de incerteza no cálculo dos valores para o R0 durante o desenrolar de uma epidemia. Se for calculado a posteriori, este valor será mais exato e terá com base dados científicos recolhidos durante o surto; se for calculado durante o surto, o cálculo baseia-se em modelos matemáticos e é praticamente impossível garantir a fiabilidade de toda a informação usada nessa contabilização.
Além disso, é preciso ter em conta os diferentes padrões comportamentais de cada segmento populacional em estudo — e aqui importa muito se estamos a falar de contextos urbanos ou de contextos rurais. Por exemplo, sublinham os especialistas, é preciso entender se “todos os membros da população têm a mesma probabilidade de contactar uns com os outros” ou se há “variação nos padrões de contacto em subgrupos geracionais ou em regiões geográficas”.