Aos 14 anos entrou no PCP e a relação ainda durou dez anos até Manuel Pizarro concluir que, afinal, “no centralismo democrático, o centralismo come a democracia”, como o próprio atira quando lhe recordam esses tempos onde chegou até a ser eleito como autarca, na Junta de Ramalde, pela CDU. Ainda teve um curtíssimo interregno de três anos até aderir ao PS, de que se tinha aproximado durante esse primeiro exercício do poder local. Esteve para ser secretário de Estado de um Governo de António Guterres, mas com a especialidade de medicina interna por terminar, foi ambição que colocou em espera. Na sua descrição, pelos que o conhecem, cabe a obsessão com o trabalho, a “eloquência” e a “flexibilidade” de um “canivete suíço”. Características para o mal e para o bem.
“Diz que sim a tudo. Vai dizer que sim a médicos, enfermeiros, sindicatos, ministro das Finanças, grupos privados”, comenta com o Observador quem com ele trabalhou de perto. “Diz sim ao amigo e ao inimigo dele”. “É multifacetado”, um verdadeiro “canivete suíço”, descreve um socialista de forma mais abonatória para Pizarro. As duas descrições juntam-se numa personalidade que vive para a política e dela tem também vivido, cultivando claques e apoios com presença ativa no terreno, onde não há horas para atender pedidos, do mais ao menos influente da cadeia.
“É poderosíssimo no controlo da máquina do PS”. É assim que é visto, um “apparatchik de primeira água”. Na Câmara do Porto, quando estabeleceu um acordo político com Rui Moreira (ler mais abaixo) existia um termo para descrever episódios gerados por promessas feitas no terreno por Pizarro: eram as “pizarrices”. “Promete com eloquência”, lembra quem esteve mais próximo nesses tempos, mas promete tudo ao mesmo tempo.
Quanto à capacidade de trabalho, maiores ou menores apreciadores do estilo, todos reconhecem que “é muito acima da média”. “É determinado”, descreve Renato Sampaio, que liderou o PS-Porto e conhece-o desde que aderiu ao PS. “Muito inteligente e trabalhador”, acrescenta. João Pedro Matos Fernandes, ex-ministro do Ambiente, é seu amigo (e paciente) e garante que “é muito preparado“, conhecendo bem o terreno que vai ocupar a partir deste sábado.
É médico especialista em medicina interna, no Centro Hospitalar e Universitário de São
João e também diretor clínico do Hospital da Ordem da Trindade. No início da pandemia, logo em março de 2020, atirou-se para o terreno e, no Facebook, escreveu que voltava como voluntário ao São João para “reforçar a equipa de combate ao Covid-19”, sendo saudado à esquerda mas também à direita — nos comentários é possível ler o elogio de Graça Carvalho, ex-ministra de Durão Barroso, por exemplo.
Matos Fernandes diz que é um médico “com grande humanidade” e um “mago do diagnóstico, adorado pelos pacientes mais velhos”. É sobre esta vertente profissional do amigo socialista que acrescenta um episódio que faz questão de assentar em Pizarro como uma coroa de glória. Quando um importante médico portuense, numerário do Opus Dei, se retirou, passou os seus pacientes para Pizarro. “Quando alguém do Opus Dei entrega os seus doentes a alguém que veio do PCP!”, ironiza.
PS elogia “perfil político”
No PS é aclamado — pelo mesmo partido que quando viu partir Temido pedia a Costa Fernando Araújo. Foi visível esta sexta-feira, quando, um par de horas depois de ter sido anunciado, o novo ministro da Saúde aparecia na Batalha, onde decorre a rentrée socialista, com a academia que pretende a formação de novos quadros do partido. A sala irrompeu num aplauso, em pé, quando o orador da noite, Pedro Silva Pereira, o cumprimentou a partir do púlpito.
Marta Temido “não aguentou mais”. Agora, PS já olha para Fernando Araújo, o novo preferido
Pizarro já tinha prometido ir, como líder da delegação socialista no Parlamento Europeu, para acompanhar Iratxe García Pérez, líder do grupo parlamentar da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas. Mas quando chegou à Batalha já ia com outro rótulo e, entre abraços sonoros dos camaradas socialistas, não largou o telemóvel praticamente um segundo.
Pelo meio ainda fez uma primeira declaração, depois da nomeação, aos jornalistas, para dizer que era um convite que “não podia recusar” e que regressa a Portugal “cheio de determinação e vontade de trabalhar em favor da saúde dos portugueses e em defesa do SNS”. Ainda se riu quando ouviu a espanhola de que tinha ido fazer de chaperone confessar que estava de “corazón partido“ pela saída do socialista do grupo parlamentar europeu. Mas logo agarrou o telemóvel de onde só levantou os olhos quando um dos jovens participantes o saudou por ser o novo “ministro das Finanças”. O erro fez Manuel Pizarro levantar os braços, sorrindo.
Os socialistas ouvidos pelo Observador confiam que o seu perfil, político, assenta no que o Ministério da Saúde precisa nesta fase. “Tinha de ser alguém alinhado com as políticas definidas”, atira um socialista do norte. “É muito solidário e um jogador de equipa”, diz Matos Fernandes, que vê em Pizarro alguém com “capacidade para mobilizar os diversos agentes do setor”, que está envolto no caos.
“Vai entrar as 8h e sair às 22h para ainda trabalhar depois disto. A vida dele é isto”, diz quem trabalhou com ele de perto. O Ministério da Saúde não é uma pasta desconhecida, Manuel Pizarro já por lá passou, como secretário de Estado entre 2008 e 2011. E podia ter entrado num Governo antes disso, como lembra um socialista que garante que Pizarro foi convidado, era António Guterres primeiro-ministro, para ser secretário de Estado da Juventude. Estava a terminar a especialidade e recusou o cargo que acabou ocupado por Miguel Fontes.
Entrou agora por via do seu amigo político António Costa. Aproximaram-se de vez entre 2013 e 2014, quando Costa já se preparava para atacar a liderança de António José Seguro e Pizarro foi apontado como um dos elementos socialistas que fez contra-vapor na candidatura às Europeias do PS em 2014.
O segurismo estava em rota ascendente e essas eleições eram — como depois se veio mesmo a verificar — a linha de água para aquela liderança. O costismo aguardava um deslize para atacar em força e o pouco empenho de algumas estruturas locais em iniciativas dessa campanha eleitoral foram notadas internamente. Depois veio a avaliação de um resultado eleitoral “poucochinho” e António Costa desafiou formalmente Seguro. O resto da história é bem conhecida e o papel de Pizarro, elemento determinante para congregar as tropas no distrito do Porto, foi sendo reconhecido por António Costa, mas com pouca chama. O topo chegou esta sexta-feira com a nomeação para ministro da Saúde.
O empurrão de Costa depois do divórcio com Moreira
Teve a morte política anunciada uma mão cheia de vezes, parecia ter sido exilado no el dorado europeu, tantas vezes a prateleira dos que já foram quase tudo o que podiam ser em território nacional, e, mesmo assim, só lá chegou porque o PS, contra todas as expectativas, conseguiu eleger nove eurodeputados em 2019.
Até entrar na Europa, o percurso partidário do agora novo ministro da Saúde teve a sua boa dose de drama. À cabeça, o episódio que lhe mudou o destino na Câmara do Porto: em 2017, quando tudo fazia prever que ia renovar o casamento com Rui Moreira, uma aliança estratégica que permitiria ao PS chegar ao poder no futuro, viu o então e agora presidente da Câmara do Porto acenar com o divórcio e foi obrigado a tomar uma decisão.
Tudo começou com uma entrevista de Ana Catarina Mendes ao Observador, onde a então número dois do PS sugeriu que uma vitória de Rui Moreira nas autárquicas de 2017 seria também uma conquista do PS. O autarca não gostou e ameaçou com a cisão – até hoje, os socialistas, no Porto e no Largo do Rato, estão perfeitamente convencidos de que Moreira usou essa entrevista como um mero pretexto para se livrar do PS. Mas os estragos estavam feitos.
A moeda de troca era inaceitável para os socialistas: a aliança poderia ser renovada desde que Pizarro abdicasse do seu estatuto de socialista. Ainda assim, o então vereador hesitou até ao fim e chegou a estar disposto a dar a mão a Moreira. De acordo com fontes do partido ouvidas na altura pelo Observador, foi António Costa que, despeitado pela decisão de Moreira, pressionou Pizarro a ir a votos. Não havia margem de recuo.
A decisão chegou na madrugada de 6 de maio, depois de uma reunião de várias horas da concelhia do PS/Porto: os socialistas tinham mesmo de ir a votos sozinhos. A decisão representou, na prática, o fim das aspirações de Pizarro de vir um dia a ser presidente da Câmara de Porto. Sabia que avançava para perder.
Dadas as circunstâncias dessas eleições, até conquistaria um resultado simpático (28,55%); mas as condições políticas (e a vontade) para voltar a encabeçar candidaturas à autarquia tinham-se esgotado.
A rivalidade de sempre com o outro ministro
O golpe nessas autárquicas ameaçou o poder de Pizarro, então líder da concelhia do PS/Porto, no aparelho socialista local – um poder que começou a ser construído anos antes e que nasceu com todos os ingredientes que costumam alimentar as teias dos aparelhos partidários.
Manuel Pizarro chegou a líder da concelhia socialista em 2011 com o apoio do octogenário Orlando Gaspar, figura influente do partido na cidade, que chegou a ajudar a ganhar eleições internas a troco de uma dentadura. A inimizade com José Luís Carneiro (sempre negada) começou a ganhar maior intensidade nesse mesmo período.
Eram próximos e ambos tinham trabalhado pela eleição de Francisco Assis na liderança do PS-Porto, em 2005, e depois disso na candidatura do socialista à Câmara, contra Rui Rio. Muitos anos depois, em 2010, José Luís Carneiro candidata-se contra Renato Sampaio e Pizarro apoia Renato. “A partir daí as coisas entre os dois agudizaram-se“, conta um socialista.
Três anos depois, em 2013, o então líder da Federação do PS/Porto e hoje ministro da Administração Interna, queria que o candidato à autarquia fosse Fernando Gomes, mas Pizarro impôs-se e trocou as voltas a José Luís Carneiro e a António José Seguro – nenhum dos dois quis abrir uma guerra com Pizarro e deixaram a pista para a Câmara do Porto desocupada.
Pizarro perderia por números pesados e parecia arrumado politicamente. Com um senão: depois de 12 anos arredado da autarquia, durante a era Rui Rio, o PS conseguia uma aliança com Rui Moreira que lhe permitia sentar-se à mesa do poder – e Pizarro era a chave para o acesso ao banquete.
O novo estatuto de Pizarro dava-lhe um brilho especial. A ala de José Luís Carneiro, reforçada com apoios dos mais variados setores do PS local (outrora desavindos) ainda tentou derrotá-lo em 2013, por intermédio de José Luís Catarino, outro figura influente do PS/Porto. Sem efeito: o aparelho já estava blindado e Pizarro de pedra e cal.
Em 2014, a disputa entre António Costa e António José Seguro veio fazer o resto: com a derrota dos seguristas, o costista Pizarro avançou contra o segurista José Luís Carneiro e passou da liderança da concelhia para a chefia da Federação do PS/Porto. O rival tinha sido derrotado e Pizarro era dono e senhor de uma das estruturas mais influentes do partido, aliado estratégico do novo líder.
Mesmo assim, daí para cá, o poder de Pizarro nunca deixou de ser contestado. O deputado Tiago Barbosa Ribeiro, o delfim que deixou no PS/Porto, sentiu isso na pele depois de ter perdido, por dois anos, o controlo do aparelho portuense em virtude dos resultados de Pizarro. O golpe, apesar de duro, acabaria por não ter qualquer efeito prático para o agora novo ministro da Saúde.
Em 2020, e depois de nunca ter tido concorrência, foi desafiado por José Manuel Ribeiro, presidente da Câmara de Valongo, e homem de José Luís Carneiro. Apesar da contestação no aparelho local, Pizarro voltaria a vencer sem dificuldade.
Os dois – agora colegas de Governo – vão jurando a pés juntos que não existe qualquer antipatia entre ambos. As declarações públicas contam outra história. Recentemente, pouco antes das autárquicas de 2021, em entrevista ao Observador, Pizarro disse o seguinte sobre Carneiro: “Do ponto de vista político [o apoio de Carneiro a José António Seguro contra António Costa] parece-me que é cadastro”. Vale o que vale e as palavras têm um peso. “A relação é muito difícil”, descreve um socialista que seguiu a relação de perto. “Não há qualquer proximidade política entre os dois, mas agora vão ter de conviver no Conselho de Ministros“.
O bilhete dourado para Bruxelas que ia fugindo
Depois de duas eleições perdidas no Porto, Manuel Pizarro foi-se voltando para outras aspirações políticas. Uma eventual ida para Bruxelas surgiu-lhe como uma solução possível para continuar a alimentar as suas ambições políticas. A oportunidade acabaria por concretizar-se, ainda que com a sua boa dose de drama.
Em 2019, António Costa tinha um lugar para lhe oferecer, mas era tudo menos risonho: a nona posição numa equipa que, nas melhores perspetivas, só conseguiria eleger oito. Durante semanas, alimentou-se o folhetim nos jornais, com fontes próximas de Pizarro a jurarem que o socialista jamais aceitaria ser nono nessa lista.
Depois dos muitos recados trocados na praça pública – Pizarro chegou a assumir que o aparelho socialista não tinha ficado agradado com aquele lugar – o antigo secretário de Estado aceitou o desafio, e, quiseram os astros e os resultados eleitorais, o PS conseguiu eleger nove eurodeputados. Estava consumada a viagem de Pizarro para Bruxelas.
Mesmo longe, os problemas no PS/Porto continuaram a assombrar o agora ministro da Saúde. Quando tudo levava a crer que Eduardo Pinheiro seria o candidato às eleições autárquicas de 2021, uma solução concertada entre António Costa e Manuel Pizarro, apareceu o delfim, Tiago Barbosa Ribeiro, a romper o arranjinho. Pinheiro caiu, Costa irritou-se, Ribeiro foi candidato e o PS voltou a perder por números redondos.
Pizarro, que durante o processo do vai-não-vai socialista chegou a ser equacionado como possível candidato à Câmara do Porto (seria a terceira vez), resistiu ao canto das sereias e deixou-se ficar por Bruxelas. Três anos depois regressa a Lisboa para ser ministro da Saúde, pasta que há muito ambicionava.
“Nunca será tão bom político como médico”
Saindo agora da esfera política, Manuel Pizarro é visto dentro da comunidade médica como um profissional com uma “capacidade de decisão clínica vincada”. E quem trabalhou com o novo ministro da Saúde, no serviço de medicina interna do Hospital de São João, no Porto – onde fez, aliás, o internato para se especializar na área da oncologia – aponta ainda um “espírito de sacrifício enorme”.
Enquanto médico, Manuel Pizarro não trabalhava em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde e juntou sempre o setor privado ao público. Ajudou a fundar a unidade de cuidados intermédios do Hospital de São João e, já enquanto eurodeputado socialista, ainda voltou a vestir a bata, recordam ex-colegas.
Quando se voluntariou para combater a pandemia no São João como voluntário, ficou na ala de medicina interna destinada a doentes não-covid durante cerca de dois meses e ainda chegou a participar nas reuniões do Parlamento Europeu a partir das salas daquele hospital, que se realizavam à distância. É então pela dedicação à profissão que, dizem, “nunca será tão bom político como médico”.
O facto de ser profissional de saúde permite-lhe conhecer as fragilidades do Serviço Nacional de Saúde e os administradores hospitalares esperam que essa experiência no terreno possa ser, de facto, transformada em medidas adequadas. “É um profissional de saúde e, portanto, tem certamente conhecimento e experiência para fazer um bom trabalho”, argumentou Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, ao Observador.
Mas há uma questão importante: “O ministro da Saúde não trabalha sozinho”. E muitas decisões “têm sido condicionadas pelo Ministério das Finanças, como aconteceu com a ministra Marta Temido”, acrescentou. Por agora, e a poucas horas de Manuel Pizarro assumir formalmente a pasta da Saúde, espera-se que seja um ministro com “capacidade política para defender um projeto de reforma, uma reforma do SNS, que o capacite, que o torne mais capaz de responder às necessidades da população”.
Mas, se Manuel Pizarro deixou a marca de profissional dedicado junto dos seus colegas do Hospital de São João, a classe dos enfermeiros não guarda tão boas memórias. Sem grande expectativas, recordam, sobretudo, o período em que Pizarro ocupou o cargo de secretário de Estado Adjunto da Saúde.
Esta pode ser, aliás, “a oportunidade para fazer uma coisa muito importante, já que quando era secretário de Estado foi precisamente ele que conduziu as negociações para terminar com a carreira dos enfermeiros e trocar a carreira dos enfermeiros por outra que nunca chegou sequer a entrar em vigor”, criticou Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros, também ao Observador. “Nós estamos há dois mandatos na Ordem e este é o terceiro ministro que é nomeado. Temos sempre muitas expectativas positivas e depois foi o que foi e que toda a gente conhece”, acrescentou. Para já, os enfermeiros esperam que o processo negocial entre os sindicatos e a tutela possa continuar.