“Muito, muito, muito grave”. As palavras da médica do Hospital de Santa Maria soam-lhe na cabeça como se não tivessem acontecido há quase um ano. “Disse três vezes”, sublinha Fernanda Carvalho quando recorda ao Observador como foi diagnosticado o problema no coração — uma miocardiopatia dilatada — do seu único filho de 16 anos, que acabou por morrer quatro meses depois.
A mãe acredita que nas duas consultas de urgência a que levou João Pedro Soeiro, ao hospital CUF Descobertas, os médicos que o atenderam foram negligentes ao não perceberem em dois raio-x que havia um alteração no coração do rapaz, mandando-o para casa medicado para uma infeção… nos pulmões. Mais. Fernanda acredita que essa semana teria sido fundamental para a sobrevivência do filho, vítima de uma doença cuja mortalidade anual ronda os 5%. Foi isso mesmo que argumentou junto do Tribunal Cível de Lisboa — numa ação interposta contra os dois médicos que o atenderam filho e contra o próprio hospital, o da CUF Descobertas.
Foi ainda de madrugada, a 16 de novembro de 2019, que João Pedro Soeiro, então com 16 anos, começou a sentir-se mal, com falta de ar e tosse. Nesse final de tarde a mãe levou-o ao serviço de urgência da CUF Descobertas onde foi atendido por um médica que o mandou fazer um raio-x ao tórax, aos pulmões e ao coração. Nas palavras da mãe, João era um “miúdo cheio de vida”, em que o único problema de saúde conhecido eram as alergias. “Mas estava tudo controlado, há três ou quatro anos que não tinha nada de relevante, nem tomava medicação diária”, conta ao Observador.
Nesse dia, João ainda fez aerossóis no hospital por causa de uma”infeçãozinha respiratória”, como lhe terá dito o médico, e voltou para casa com medicamentos para a curar. Durante os dias seguintes poderia voltar a fazer a sua vida, evitando apenas as aulas de Educação Física na escola que frequentava, em Lisboa, foram as outras indicações que recebeu.
Dois dias depois, no entanto, os sintomas mantinham-se. De volta às urgências daquele hospital privado foi atendido, desta vez, por uma médica pediatra que mandou repetir o raio-x. “Viu-lhe um a leve pneumonia, manteve a medicação e acrescentou um antibiótico”, recorda a mãe, numa memória tão viva quanto a dor da perda do filho.
Desta vez João Pedro levou uma declaração médica para justificar três dias de ausência à escola, a pedido da mãe, segundo garante ao Observador. Uma semana que para João Pedro foi muito dura. Sempre na expectativa de o antibiótico começar a fazer efeito, continuava contudo a sentir-se sempre “cansado”. Até que no dia 24, ainda à espera de recuperar e pensando que os antibióticos podiam estar a demorar mais tempo a fazer efeito, João Pedro sentiu-se mais fraco e começou a vomitar.
Enfermeiro da triagem chamou logo o médico
“Apresentava mucosas pálidas e desidratadas, frequência cardíaca de 156 bpm, ritmo aparentemente galopante, murmúrio mantido e simétrico à auscultação pulmonar e aparentes fervores bibasais”, lê-se no relatório médico sobre o seu estado da terceira ida ao hospital. Logo na triagem, o enfermeiro chamou de imediato o médico. “Estava com arritmia, levaram-no imediatamente para a sala dos tratamentos, começaram a fazer análises e exames, puseram-lhe logo um catéter”, enumera, numa altura em que começou a perceber, com o marido, que algo de grave se passava com o filho.
A análise ao terceiro raio-x ao tórax, pulmões e coração feito no espaço de uma semana trazia mais do que aquilo que antes tinha parecia uma infeção respiratória aos outros médicos. Referia que havia um aumento global das dimensões da silhueta cardíaca, o que levou o pediatra a pedir um eletrocardiograma e um ecocardiograma, que detetou uma dilatação do ventrículo esquerdo. O médico pediu então que João Pedro fosse visto por um cardiologista que diagnosticou miocardite.
A partir daqui foi tudo muito rápido. Na memória de Fernanda está João Pedro numa maca, entubado, “cheio de aparelhos”, a ser levado de urgência para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Ela sempre ao lado, sem saber o que esperar. Foi naquele hospital que recebeu da médica o diagnóstico de miocardiopatia dilatada, uma disfunção que provoca insuficiência cardíaca. Ou seja, o miocárdio dilata, diminui e hipertrofia-se, como se lê na explicação médica que consta no parecer entretanto pedido pela família.
Apesar de poder manifestar-se de várias formas, um dos sintomas desta doença é de facto a falta de ar, a arritmia ou uma insuficiência cardíaca progressiva “com sinais de congestão pulmonar e/ou intolerância ao esforço e fadiga”, lê-se.
Quando a pediatra do Santa Maria lhe falou na gravidade do problema explicou-lhe logo que a hipótese mais provável de cura era um transplante de coração. Fernanda passou do diagnóstico de uma “infeçãozinha pulmonar” para o de um problema cardíaco só resolvido com um coração novo. “Entrei em pânico”, conta. “Estou desde novembro a chorar”.
Perante o grave estado de saúde de João Pedro, a equipa médica decidiu transferi-lo para o Hospital de Santa Cruz, onde deu entrada a 27 de novembro. “Fez sete cirurgias ao coração e aos pulmões, sofreu imenso”, recorda Fernanda. Uma delas foi no dia de Natal. “O médico que o operou disse para rezarmos, que ele também ia rezar”, relembra a mãe. Três dias depois, a 28 de dezembro, João Pedro completou 17 anos.
Nos períodos de “recuperação” João Pedro chegou a comunicar com os pais, ainda que gestualmente. Perguntava-lhes se já havia coração ou quando chegava o coração novo. Houve momentos em que perdeu as forças e que chegou a pedir aos pais que lhe tirasse a dor para sempre. “Teve altos e baixos. Era um miúdo com muita vida e muita garra, mas tinha momentos que quebrava, houve alturas que me disse mais não, já chega. Era um aluno brilhante, com média 18, queria entrar para Engenharia Eletrotécnica”, conta a mãe.
Até que ao dia 3 de março, sem qualquer transplante de coração, “entrou em morte cerebral”. E morreu no dia seguinte.
Diagnóstico precoce fundamental
Nos últimos meses Fernanda tem-se agarrado a uma única ideia. A de que se o problema do filho “tivesse sido detetado uma semana antes, quando foi às duas consultas de urgência na CUF Descobertas, hoje João Pedro ainda estaria vivo”. Mais que isso, acredita que “todo o sofrimento” que o filho passou é da responsabilidade dos dois primeiros médicos que o atenderam.
Uma convicção alimentada pelos relatórios clínicos que acabou por pedir à CUF. É que com os exames vinha uma análise inscrita feita posteriormente, a 24 de junho de 2020, por uma outra médica daquele serviço em resposta ao pedido de Fernanda. E ao olhar para os dois primeiros raio-x que João Pedro fez, essa médica viu aquilo que o terceiro médico também viu: um “aumento global das dimensões da silhueta cardíaca”.
Toda esta documentação foi entregue a um médico independente para que este desse um parecer sobre o que se tinha passado. Nesse parecer, um documento de dez páginas a que o Observador teve acesso com a condição de não divulgar o nome do autor, o especialista concluiu que os dois médicos que atenderam inicialmente João Pedro violaram as boas práticas médicas ao não detetarem as alterações cardíacas nos raio-x, mesmo que depois as confirmassem com exames complementares — como aconteceu na terceira consulta.
Alteração esta que, reforça o especialista, é “explícita em ambas as as imagens e alcançável por qualquer médico com conhecimentos para desempenhar as funções a que se propõe, nomeadamente um médico especialista em pediatria a exercer funções de urgência hospitalar pediátrica em estabelecimentos de referência”, lê-se.
O médico não tem dúvidas que esta “ausência de diagnóstico, para além de impedir a decisão de eventual internamento hospitalar da vítima, impediu, ainda, um atempado tratamento da miocardite e/ou miocardiopatia dilatada”, que viriam a tornar-se “fulminante(s)”.
Hospital diz que há doenças nos jovens com “desfecho imprevisível”
Para a CUF Descobertas, no entanto, a 16 e a 18 de novembro de 2019 as queixas respiratórias de João Pedro, “com antecedentes de asma brônquica” levaram apenas a um diagnóstico de pneumonia. E só a 24 de novembro, quando voltou às urgências, encontraram “sintomas compatíveis com um possível choque de origem cardíaca” quando foi “revelado um índice cardiotorácico — índice que avalia o aumento da silhueta cardíaca — fora dos parâmetros normais” o que, garantem, não foi evidente antes, “não sendo, por isso, identificável, nessas datas, uma patologia cardíaca, além da pneumonia que apresentava”.
Uma explicação que para Fernanda é “ultrajante”, uma vez que nos exames analisados por uma outra médica da CUF dão conta de que essa alteração era visível.
“Perante esta situação clínica emergente, as equipas do Atendimento Permanente do hospital fizeram tudo o que estava ao seu alcance para a estabilização do doente, tendo assegurado todas as condições para que, em segurança, fosse transportado para uma unidade de cuidados intensivos pediátricos especializada”, lê-se na resposta enviada ao Observador, onde é dito que só souberam da morte de João Pedro depois, após a informação da mãe.
“O Hospital considera, no entanto, importante salientar que, apesar de todo o empenho e experiência dos seus profissionais de saúde, existem doenças, como é o caso das doenças cardíacas em crianças e jovens, que infelizmente, tendo em conta a sua gravidade, podem ter um desfecho imprevisível”, lê-se.
O Observador quis saber se foi feito algum inquérito interno à atuação dos profissionais de saúde. “Realizou-se uma análise interna, sendo que este esclarecimento é também resultado da mesma”, responderam. Perante esta informação, Fernanda e o marido decidiram avançar com um processo cível contra a CUF e os dois profissionais de saúde, para ser indemnizados. “Não é pelo dinheiro, é para impedir que aconteça a outras crianças”, garantem.