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“Clarificação”. Foi essa a palavra usada pelo Presidente Emmanuel Macron quando, há três semanas, anunciou a convocação de legislativas antecipadas perante a vitória estrondosa da União Nacional (UN, ex-Frente Nacional) nas europeias. O Presidente defendeu a sua decisão como uma forma de instigar um “levantamento” entre os franceses, um “choque” que os levasse a fazer o país regressar ao centro.
A jogada não podia ter corrido pior. Nesta primeira volta, a UN teve um resultado histórico de 34% (comparado com 18% há apenas dois anos), a esquerda unida da Frente Popular confirmou o segundo lugar e o Renascença de Macron ficou reduzido a uma humilhação que pode fazer com que passe de 250 deputados para menos de 100.
E não foi por falta de envolvimento dos franceses: a participação eleitoral foi histórica, atingindo recordes que não eram alcançados desde 1997. A mensagem dos eleitores para Macron foi clara: o “levantamento” está em curso, mas não é a favor do atual governo, nem do macronismo.
“Quando os historiadores olharem para a dissolução, só terão uma palavra: desastre”, escrevia esta noite o Le Figaro no seu editorial. “Emmanuel Macron tinha tudo ou quase tudo: o Eliseu e três anos pela frente; uma maioria, é certo que relativa, mas uma maioria à mesma; um partido a funcionar; uma base eleitoral reduzida, mas sólida; uma imagem pessoal danificada, mas de autoridade inquestionável. Perdeu tudo.”
A autópsia já vinha a ser feita dentro do partido ao longo da última semana de campanha. “Muitos dos nossos deputados estão a ser enviados para o matadouro”, comentava com o Les Échos um ministro, que classificava a decisão de Macron de “incompreensível e solitária”.
Outros, muitos deles com ambições políticas próprias, começavam a criticá-lo em público: “Ele matou a maioria presidencial”, declarou o até aqui aliado da maioria Édouard Philippe, do partido Horizontes. O próprio ministro da Economia, Bruno Le Maire, enterrou a faca: “O chão dos ministérios e do palácio da República está cheio de bichos-de-conta. Sempre os houve, é parte da vida política francesa”, disse numa entrevista. “O melhor é não lhes dar ouvidos e manter o rumo, quer se seja Presidente, primeiro-ministro ou ministro, e tomar decisões em consciência.”
"Les parquets des palais de la République sont plein de cloportes. Ils sont dans les rainures des parquets, c’est très difficile de s’en débarrasser. Le mieux : ne pas les écouter" cingle Bruno Le Maire sur BRP et les conseillers de Macron. Wow. pic.twitter.com/Ddeviu99Rj
— Nils Wilcke (@paul_denton) June 20, 2024
Até o primeiro-ministro Gabriel Attal pareceu seguir o conselho de Le Maire. Apesar de ser uma criatura do macronismo, uma espécie de representante por procuração do Presidente, foi tentando distanciar-se dele ao longo desta campanha. Raramente mencionou Emmanuel Macron e repetiu os apelos aos franceses para que votassem nele para primeiro-ministro.
Extrema-direita sobe face às europeias, vence legislativas pela primeira vez e mantém o sonho de fazer de Bardella primeiro-ministro
De pouco serviu. A vitória da União Nacional esta noite foi clara como água. Se alguns pensavam que os 31% das europeias eram o reflexo de um voto de protesto, na noite deste sábado os franceses deixaram claro que não: o partido da extrema-direita foi o mais votado, com 34% dos votos, um recorde e a primeira vez que a força política de Marine Le Pen vence umas legislativas.
Terá agora um grupo parlamentar próprio, algo que não acontecia desde 1986, ainda nos tempos de Jean-Marie Le Pen — muito graças a uma alteração das regras eleitorais de Mitterrand, como relembra o Les Échos. Nessa altura, o partido tinha 35 deputados. Agora, a antiga Frente Nacional deverá subir dos atuais 88 para mais de 200, deixando em aberto na segunda volta a possibilidade de atingir o número mágico de 289 que lhe daria a maioria absoluta e o governo do país.
Por isso mesmo, Marine Le Pen apressou-se a ser a primeira a reagir na noite eleitoral, lembrando que “nada está ganho e a segunda volta será decisiva”. Chutando o macronismo para canto, concentrou-se no ataque à esquerda, que disse ter “tendências violentas, antissemitas e antirrepublicanas”. Por fim, suavizou a mensagem, reforçando a tendência de aparente moderação que vem aprimorando há anos: “Nenhum francês irá perder qualquer direito [com um governo da UN]. Pelo contrário: os direitos serão garantidos e, assim que a situação o permitir, serão criados novos direitos para que todos beneficiem.”
Mensagem reforçada por Jordan Bardella, o seu delfim, pouco depois: “No próximo domingo, se os eleitores nos derem uma maioria absoluta, tenciono ser o primeiro-ministro de todos os franceses, o primeiro-ministro da vida quotidiana, aquele que coloca como prioridades a defesa do poder de compra, a restauração da ordem e da segurança e o regresso do controlo da nossa política migratória.” O inimigo? Como Le Pen, escolheu não se focar no macronismo, mas na esquerda: “O senhor Mélenchon e os seus amigos são um perigo existencial. Mobilizemo-nos pela mudança.”
O dilema das triangulações e as fraturas entre Mélenchon e o resto da coligação de esquerda
Mélenchon e os amigos também tiveram algumas razões para festejar esta noite. Não só foram os segundos mais votados e ultrapassaram o Renascença de Macron (vencedor em 2022), como a Nova Frente Popular obteve um melhor resultado do que a NUPES, a aliança das últimas legislativas liderada pela França Insubmissa (FI) de Mélenchon que não incluía o Partido Socialista e algumas outras forças de esquerda — teve uma subida 25% para 28%, residual mas num contexto de maior participação eleitoral. O que leva alguns a concluir, como nota o Le Monde, que, “novamente unida, a esquerda parece ter beneficiado de uma forte mobilização contra a extrema-direita”.
Pouco depois de Le Pen, Mélenchon apressou-se a discursar, destacando a “derrota” do Presidente Macron. Mas, de seguida, pareceu estender-lhe um ramo de oliveira. Para a segunda volta, disse, “as nossas instruções são claras”. Nos círculos em que passaram à segunda volta três partidos e a Nova Frente Popular ficou em terceiro lugar e a União Nacional em primeiro, a coligação partidária da esquerda francesa “retirará a candidatura, onde quer que seja, em todas as circunstâncias”, para combater a extrema direita na segunda volta. “Nem um voto, nem mais um lugar para a UN”, apelou.
Uma primeira instrução para os chamados casos de “triangulação”. De acordo com as regras francesas, caso um candidato não obtenha maioria absoluta num círculo eleitoral, passa à segunda volta não apenas contra o segundo mais votado, mas contra cada candidato daquele círculo que tenha obtido mais de 12,5% dos votos. Numa eleição tão participada como esta, este cenário multiplica-se por vários círculos eleitorais em toda a França (estima-se que entre 200 a 300), deixando a esquerda e o centro num dilema: em locais onde a UN pode vencer, deve unir esforços e retirar o candidato com menos hipóteses, para dar força à alternativa?
Os restantes partidos da Frente Popular de esquerda não têm dúvidas. “A posição do Partido Socialista é muito clara: é preciso travar a UN na segunda ronda”, disse o seu secretário-geral Olivier Faure. Raphaël Glucksmann, o cabeça-de-lista socialista das europeias, reforçou: “Temos sete dias para evitar a catástrofe”. Os Verdes e o Partido Comunista juntaram-se ao apelo e repetiram as mesmas instruções, mesmo que tal beneficie um candidato macronista.
Aparentemente, Mélenchon estaria a fazer o mesmo ao início da noite. Mas uma leitura mais fina mostra sinais contraditórios, como notou o Les Échos: e nos casos em que a UN não está à frente, mas continuam três ou quatro candidatos na corrida para a segunda volta? Deve a Frente Popular abdicar se o Renascença tiver mais hipóteses de derrotar a extrema-direita?
A dúvida adensou-se ao longo da noite. Os líderes da esquerda juntaram-se mais tarde num comício na Praça da República, no centro de Paris, e, uma vez mais, as fraturas entre a FI e o resto da coligação ficaram expostas: o socialista Faure foi vaiado por alguns, a ecologista Marine Tondelier recebeu apenas aplausos educados quando disse a frase “Não baixamos a cabeça, não baixamos os olhos, não baixamos os braços!”. Mas a grande explosão de alegria foi para Mélenchon, que não falou de união ao centro, mas sim da “França revolucionária” que, garantiu, “todo o mundo adora”. A multidão, recheada de apoiantes da FI, aplaudiu fortemente.
À saída do comício, Olivier Faure falou à France Info e voltou a relembrar que esta não é uma coligação dominada pelos Insubmissos e que tem outros membros: “Não é o senhor Mélenchon quem dita o programa do próximo governo e não será ele o próximo primeiro-ministro”, garantiu. “O objetivo tem de ser o de servir de barragem à extrema-direita.” Este, sim, era um verdadeiro ramo de oliveira estendido ao Renascença — e, sobretudo, aos eleitores, entre quem Mélenchon regista taxas de rejeição cada vez maiores.
As linhas vermelhas do Macronismo contra a França Insubmissa e a voz própria do primeiro-ministro Gabriel Attal
Mas é mais fácil para a esquerda manter essa proposta, já que, na maioria dos círculos em disputa, os seus candidatos estão em segundo e não em terceiro, como os do Renascença. Este está, como previa um conselheiro do governo ainda antes da eleição de sábado, “no lugar do morto ou do idiota”. Por outras palavras: ou perde completamente, desistindo, ou resiste e passa a ser visto como o empecilho que pode permitir a vitória total da União Nacional.
Daí que Emmanuel Macron se tenha apressado a distribuir jogo assim que as primeiras projeções foram conhecidas. Num comunicado, anunciou ser necessária uma “união ampla, republicana e claramente democrática para a segunda volta”, de forma a defrontar a UN. A expressão é suficientemente vaga para questionar se os candidatos da França Insubmissa de Mélenchon — quando há apenas dois dias Macron classificava algumas declarações de membros do partido como estando “fora do arco democrático” — deveriam fazer parte dessa união.
Ao longo da noite, vários políticos próximos de Macron foram clarificando nas televisões a estratégia: os eleitores que quiserem derrotar a ex-Frente Nacional devem analisar “caso a caso” qual a melhor alternativa, perante os candidatos do seu respetivo círculo eleitoral. Yaël Braun-Pivet, atual presidente da Assembleia Nacional que não se recandidatou nesta eleição, apelou a um voto “no candidato mais republicano” de cada triangulação. Questionada na TF1 sobre se todos os candidatos da Frente Popular se encaixavam nessa descrição, foi clara: “Há muitos, mas nem todos seguem essa linha. Sob nenhuma circunstância posso apelar ao voto em alguns candidatos que não partilham os valores republicanos.”
Os líderes dos partidos aliados do Renascença que sustentam a maioria foram ainda mais claros. Édouard Philippe, do Horizontes, apelou claramente ao voto em qualquer candidato que não seja da União Nacional nem da França Insubmissa, criando um cordão sanitário dentro da própria Frente Popular. François Bayrou, do MoDem, reforçou: “Não olho da mesma forma para candidatos da FI que tiveram atitudes profundamente chocantes e anti-republicanas.”
A estratégia de “caso a caso” é assumida dentro do Eliseu, como confessou uma fonte ao Le Figaro: “Alguns da FI são claramente inimigos dos valores da República”. O objetivo agora, dizia, deve ser o de votar em candidatos “compatíveis com os valores republicanos no parlamentarismo, universalismo e [combate] ao antissemitismo”.
Não é por isso de admirar que, nalguns casos, as desistências já tenham começado de forma estratégica, como notou o Le Monde: no Somme, Albane Branlant anunciou a sua desistência para apoiar François Ruffin, da Frente Popular — antigo membro da FI atualmente em confronto claro com Mélenchon; em Avignon, as ordens são para não ceder o lugar a Raphaël Arnault, ativista Antifa condenado em 2022 por agressão em grupo.
Mas, à medida que a noite avançava, enquanto se tornavam claras as ordens de Macron, faltava ouvir o que tinha a dizer o primeiro-ministro em funções, Gabriel Attal. E, quando este fez o seu discurso, à porta do Matignon, não impôs quaisquer condições para as triangulações: “A extrema-direita está às portas do poder e a Assembleia Nacional corre o risco de ser dominada pela extrema-direita”, afirmou. “O objetivo é claro: impedir a União Nacional de ter uma maioria absoluta e governar o país”.
“A todos os nossos eleitores: não deve ir um único voto para a União Nacional”, acrescentou, falando em “união de esforços”. “Isto significa que em alguns círculos eleitorais os nossos candidatos que ficaram em terceiro lugar devem desistir, porque a sua permanência pode levar à vitória do candidato da União Nacional em vez de outro que, como nós, defende os valores da República.”
A expressão é ambígua e semelhante à usada pelos porta-vozes de Macron, deixando no ar a dúvida sobre se a instrução também se aplica à França Insubmissa. Nas horas seguintes, Attal pareceu deixar sinais de que tem uma voz própria: não só anunciou a suspensão de um projeto de lei de reforma das regras do subsídio de desemprego, que agrada à esquerda, como fontes da sua equipa esclareceram aos jornalistas que as instruções para as triangulações se aplicam a todos os partidos, FI incluída.
Talvez Gabriel Attal esteja apenas a testar as águas e acabe por regressar às fileiras do macronismo nos próximos dias. Ou talvez esteja a tentar posicionar-se e a desafiar o pai político, perante uma segunda volta que pode fazer de Jordan Bardella primeiro-ministro e colocar a União Nacional no governo.
A verdade é que, depois de ter convocado esta eleição, Emmanuel Macron perdeu grande parte da autoridade que tinha sobre o Renascença, a sua criatura. Como dizia há poucos dias um conselheiro do governo num desabafo ao Le Figaro: “Acho que hoje em dia a voz do Presidente já importa muito pouco”. Depois do resultado histórico desta primeira volta, pode passar a contar ainda menos.