Antes de, no final dos anos 80, Luiz José Pacheco ter dado uma entrevista ao jornal Expresso que o tornaria uma celebridade entre os jornalistas que corriam atrás dele para lhe extraírem alguns chistes, piadas verrinosas sobre outros escritores e uma visão desassombrada e sarcástica sobre o meio literário português; antes de ser o “maldito”, o que fazia manguitos ao mundo, adorado por todos os que gostam de se ver como desalinhados, mas seriam eles próprios incapazes de fazer tais manguitos, de dizer tais cruas verdades; antes de ser uma figura mitificada, mas quase não lida, quase desconhecida; antes, Luiz José Pacheco teve uma vida, uma vida feita de muitas ruturas, muitos gestos de corajoso despojamento, de muitas renúncias e perdas, que isto de dizer muitos “nãos” ao poder paga-se e paga-se caro.
Se durante as duas últimas décadas da sua vida foi popular, escreveu nos jornais Público e Diário Económico juntou até dinheiro suficiente para abrir a sua primeira conta bancária, durante as décadas anteriores Luiz Pacheco escreveu muito, sobretudo diários (quase todos inéditos), contos, histórias curtas e muita crítica literária feroz, temerária, contracorrente. Mas também foi um alcoólico em último grau, viveu entre o suicídio e a loucura, na mais absoluta miséria, era espancado nas ruas, perdia a noção de si, perdeu os filhos, as mulheres amadas, os amigos estruturantes como Mário Cesariny.
Antes de ser um “escritor maldito”, foi um menino burguês da rua Dona Estefânia, ia à missa e era adorado pelas tias velhas que viam nele um grande futuro. Antes de ser o “editor maldito”, editou aqueles que ninguém editaria, como Manuel de Lima, Herberto Helder, Cesariny, Büchner, Marquês de Sade, passou pela prisão e pelo corpo de jovens raparigas e rapazes, deixou de usar gravata, depois de usar meias, por fim só usava roupa dada e demasiado curta para o seu corpo de um metro e oitenta, frágil e desnorteado perante a desmesura da vida. É, “com aquela acidez que a coragem destila nos corações exasperados da sua própria existência”, como escreveu Agustina, sobre outro excomungado, Uriel da Costa, que António Cândido Franco nos conta a vida de Luiz José Pacheco numa nova biografia intitulada Firmamento é Negro e Não Azul (Quetzal), onde, com uma grande sensibilidade, procura retirar o escritor do lugar do “maldito”, do “anedótico”, para o mostrar na sua face humana, demasiado humana.
Um livro que nos comove mais do que nos faz rir, que nos põe a olhar para um homem, mas também para o escritor e o crítico, que analisa cada um dos seus livros, que desmonta o edifício crítico que construiu sempre dentro desse movimento que ele criou e a sua obra corporizou, o Abjecionismo e o Neo-Abjecionismo. É a biografia não de um “maldito”, mas de um exemplar da condição humana. O Observador conversou com o escritor e académico da Universidade de Évora que, desde 2015, estava a trabalhar nesta biografia.
A nova biografia de Luiz Pacheco sucede a outra, de 2011, escrita por João Pedro George. A principal novidade é o facto de o António Cândido Franco retirar o Luiz Pacheco do lugar do “maldito”, “do iconoclasta” e de o querer apresentar como um homem demasiadamente humano, frágil, tantas vezes perdido, alguém que pagou um preço alto pelas escolhas que fez.
Penso que tê-lo visto naquele tempo em que estava profundamente alcoólico, numa situação de total fragilidade, a dormir em vãos de escada, a ser batido nas ruas, parcialmente enlouquecido a ponto de, por vezes, não saber quem era, me fez-me olhá-lo sempre para lá do que nele era risível, social e moralmente condenável. Nunca deixei de ver o valor que havia debaixo daquele homem que se podia tornar tão insuportável que nem os amigos o aguentavam. A complexidade da sua vida e da sua personalidade tornaram-no incapturável, mesmo que pareça fácil e tentador apresentá-lo como uma caricatura. Na verdade, duas décadas de profundo alcoolismo foi o preço que ele pagou por ter a coragem de viver de acordo com uma liberdade radical.
O que significa esse “preço que ele pagou”?
O Pacheco tornou-se alcoólico em 1967 no rescaldo da separação de Maria Irene, a jovem que foi a sua grande paixão e a quem ele chamava a “deusa das tranças loiras” e do corte de relações definitivo feito por Mário Cesariny, que era para ele a principal figura de identificação. A liberdade radical que ele vai viver é em Mário Cesariny que a vislumbra pela primeira vez. Os seus períodos de alcoolismo eram muito profundos, a que se seguiram dezenas de internamentos para desintoxicação, uma das vezes no hospital Júlio de Matos. A bebida como que o enlouquecia, aproximava-o da loucura e do suicídio. O alcoolismo era um problema muito comum aos artistas da sua geração, mas, mesmo bebendo muito, os outros escritores não deixavam de ter casa, família, apresentar-se socialmente, manter uma imagem pública respeitável. O Pacheco não. Ele tornava-se terrível, dizia obscenidades às pessoas que passavam, tentava agarrá-las, as raparigas tinham medo de passar por ele na rua. Era capaz de ser horrível até para os amigos mais próximos, adormecia nas portas dos prédios e no dia seguinte era corrido ao pontapé, batiam-lhe. Numa dessas bebedeiras monumentais que duravam dias e dias chegou a ficar nu porque lhe roubaram a roupa. Tinha sempre o corpo cheio de feridas, passava fome…
Perdeu totalmente o controle sobre a sua própria vida nesses anos. Chegou a estar na iminência de assassinar o pai — e não psicanaliticamente, mas na realidade.
Para mim, alguém que passa por isto tudo e consegue sobreviver, reabilitar-se, vencer o álcool manter-se sóbrio, é alguém que triunfa sobre a vida. Ele passou por todo o tipo de adversidades e venceu-as. Era esta experiência de vida que eu queria contar, porque acho que ela deve ser conhecida lida, estudada. Não digo que se deva elogiar o Pacheco, há muita coisa na vida dele que não é elogiável, mas é alguém com quem se pode aprender muito.
Começou a trabalhar nesta biografia, de mais de 500 páginas, em 2015, mas Luiz Pacheco sempre o fascinou, desde que o viu pela primeira vez em 1972, quando tinha apenas 15 anos. De onde veio esse fascínio?
Vi o Luiz Pacheco pela primeira vez na Feira do Livro de Lisboa, em maio de 1972. Chamou-me a atenção porque ele estava a apresentar o seu livro Exercícios de Estilo, descalço, roto, cheio de feridas, as calças enrolada e presas por um cordão a um corpo esquelético. Eu, com 15 anos, tinha criado a imagem de um escritor como uma pessoa distinta, que fazia capas de jornais, aparecia na televisão, recebia prémios, era respeitada e conceituada. Não imaginava que um escritor pudesse ser aquilo que eu tinha à minha frente. Mas ali estava ele, apresentar um livro que tinha a sua fotografia na capa, numa destacada editora, a Estampa. Aquela imagem de um homem que parecia um louco e depois se levantou e se perdeu entre a multidão impressionou-me tão vivamente que nunca mais me abandonou. Ele representava mesmo o contrário de tudo o que eu imaginava que era um escritor. Nele eu vi alguém que contestava tudo o que nos era ensinado ser o certo, o normal, ele estava fora de todos os padrões sociais a que eu estava habituado.
Mais de 5o anos depois desse encontro, esse fascínio mantém-se?
Em 1972 eu tinha 15 anos, vivia numa ditadura e esperava-me uma guerra colonial. Eu próprio estava em conflito com a sociedade, a família e todas as regras que nos eram impostas como sendo o nosso futuro inescapável: estudar, arranjar um trabalho seguro, casar, ter filhos. Era isso e ainda hoje é esse o plano de vida que se impõe às pessoas quando chegam à vida adulta: uma vida burguesa e até mesmo puritana. Eu, que sentia uma necessidade de rutura muito grande com esses modelos, vi em Luiz Pacheco uma espécie de ícone. Encontrei nele um símbolo de identificação para mim próprio que me tem acompanhado a vida toda. Assim, esta biografia é o culminar de um fio que venho desenrolando há anos. Sim, posso dizer que Luiz Pacheco é uma figura estruturante da minha identidade até hoje.
Depois desse encontro na feira do livro foi à procura dele. Chegou a conhecê-lo pessoalmente?
Sim, conheci-o, convivi com ele no final dos anos 80 quando ele voltou a viver em Setúbal e já tinha deixado de beber. Nos anos 90 escrevi vários textos sobre ele e editei o livro Cartas ao Léu, que reúne a correspondência trocada entre ele e o livreiro e poeta de Setúbal, João Raposo. Foi, precisamente, na livraria Uni-verso, do João Raposo, que o Pacheco frequentava muito, que o conheci e durante anos me relacionei com ele.
E como era o Luiz Pacheco em pessoa nessa altura?
Era um tipo que podia ser muito sacana, muito cruel com as coisas que dizia e fazia aos outros, que não tinha qualquer benevolência para com os nossos egos e as nossas ilusões. Podia também ser uma pessoa de uma generosidade sem fim. Hoje quando olho para trás percebo nele uma necessidade de nos obrigar a nós, que tínhamos idade para ser filhos dele, a limparmos determinadas escórias, impurezas que nos tinham sido inculcadas pela educação. Ele queria obrigar-nos a purgar certas ideias, certas ilusões. Uma história que mostra bem o seu carácter dúplice entre a crueldade e a generosidade era uma coisa que ele fazia quando ia almoçar fora num restaurante ali de Setúbal: no fim das refeições levantava-se da mesa e ia, à socapa, percorrer as mesas e roubava todas as gorjetas que tinham sido deixadas. Metia tudo ao bolso. No dia seguinte, voltava ao mesmo restaurante, almoçava e deixava uma gorjeta que era o dobro do que ele tinha levado no dia anterior. Acho que esta história revela bem a complexidade do Pacheco.
Na sua biografia, mostra-nos o Luiz José de boas famílias, que aos 13 anos ia à missa todos os domingos, que estudou no liceu Camões e na Faculdade de Letras até ao dia em que casou com uma adolescente que trabalhava como criada na sua casa e o mundo, que ele ele então conhecia, se fecha para sempre. Mais ao menos na mesma época foi a uma tertúlia na Casa do Alentejo e viu e ouviu pela primeira vez Mário Cesariny. São estes acontecimentos a raiz das muitas metamorfoses que ele terá ao longo da vida?
Para mim, a vida do Luiz Pacheco explica-se em parte por um drama muito comum na geração dele, certamente comum a Cesariny, que é a relação com a figura paterna. Muito cedo, e talvez por causa da loucura e afastamento da mãe, ele entra em conflito com o pai e vai multiplicar depois esse conflito com todas as figuras de autoridade: o ditador, o reitor, o patrão, o chefe. A psicanálise diria que é um complexo de Édipo nunca resolvido, e que explica muitas das opções que ele fez ao longo da vida. A rutura com o pai vai fazê-lo entrar em ruturas sucessivas com todas as instituições de autoridade, da escola ao Estado, da política à literatura.
Mas o momento em que essa rutura se torna visível é quando ele se envolve com uma das jovens criadas da sua casa, a Maria Helena. Os seus amigos e colegas de Faculdade militavam todos na esquerda, mas isso não incluía casar com uma criada. Passaram a ostracizá-lo ao ponto de ele decidir abandonar a faculdade.
Ele nasceu e cresceu dentro da burguesia lisboeta, um meio onde os condicionalismos morais e sociais eram muito grandes. Desde muito cedo os jovens eram levados a acreditar que tinham que ter um certo destino e os que não seguiam essa linha eram postos de lado. Apesar deste destino unívoco que os esperava, era muito comum os jovens rapazes burgueses terem a sua iniciação sexual com as criadas, que eram geralmente raparigas pouco ou nada alfabetizadas, vinham do campo onde havia menos condicionalismos e pruridos em relação à sexualidade. Muitas acabavam grávidas dos patrões ou dos filhos destes, eram descartadas e acabavam na prostituição. Muita da prostituição do Estado Novo era alimentada por estas meninas que vinham do campo para a cidade e acabavam por ser seduzidas pelos patrões. No caso do Luiz Pacheco foi diferente porque envolveu-se sexualmente com uma das criadas, uma menor de 14 anos, o tio desta quando soube meteu-lhe um processo em tribunal e ele confrontado com a situação e a gravidez da miúda assumiu-a e disse: “sim, eu caso”.
E casou.
Sim, casou na prisão do Limoeiro, para onde tinha sido levado, quando, ao mesmo tempo, vivia uma paixão impetuosa com outra rapariga, esta burguesa e estudante de liceu, a Fátima, que ele imortaliza no conto “Fátima ou o amor louco”. Mas casa é com Maria Helena, deixa a faculdade e arranja um emprego como funcionário público. Portanto, ele preferiu ser leal à criada do que às regras da sua classe social. Isto foi um escândalo em Lisboa e é provável que ele próprio não estivesse preparado para todas as consequências que isso teria na sua vida. Entre os colegas que o ostracizam estão David Mourão Ferreira, Maria Barroso, Urbano Tavares Rodrigues, uma esquerda muito, muito moderada e muito influenciada pelo comunismo soviético também com uma mentalidade muito autoritária e puritana. Nessa altura começa a ver-se como editor e escreve o conto “Os Doutores, a Salvação e o Menino Jesus”, para uma revista que ele sonha editar, com textos do Cesariny e de outros. Esse conto é sobre como a ingenuidade e a pureza de uma criança pode ter mais sabedoria que os doutores, que na verdade não sabem nada. É uma glorificação da ingenuidade e de uma pureza que ele vai procurar a vida toda, pois até ao fim ele procurou acima de tudo ser fiel à criança que vivia dentro dele.
Dai ele ser contra o aborto e ter aquele fascínio por adolescentes do campo.
Mais do que uma busca da pureza, diria que ele buscava aproximar-se do instinto, pelo que ainda não tinha sido manipulado e moldado pela escola, pela sociedade. Nessas jovens raparigas do campo ele vislumbrava uma pureza inicial. Ele procurou o contacto com as fontes virgens da vida, o instinto que o levou a querer ir até às ultimas consequências a viver num inferno permanente. Só o podemos comparar a Sade, de quem ele foi o primeiro editor português, não por acaso. Claro que, como Sade, a vida de Luiz Pacheco não pode ser um modelo, mas pode servir-nos de exemplo para tirarmos válidas lições. Perante ele podemos fazer duas coisas: ou apagamo-lo imediatamente ou observamo-lo e percebemos que naquela experiência de levar a vida a todos os limites há uma riqueza que nos ajuda a compreender melhor a complexidade da natureza humana.
Mas é nessa vida de extremos, nessa desobediência face às regras vigentes pela qual pagou o preço de ser ostracizado, expulso, espancado, de ter vivido quase como um sem abrigo, de ter passado fome e ter-se tornado alcoólico durante 20 anos, que muitos gostam de ver apenas a figura do “maldito” de quem se esperavam umas aventuras anedóticas…
O Pacheco é maldito devido às ruturas que faz em larga escala, com os modelos vigentes de família, de sexualidade, das relações com as instituições sociais. Ele só é maldito à luz de um olhar puritano, das instituições puritanas que, sejamos claros, não são muito diferentes hoje do que eram naquela altura. Aliás, hoje talvez seja até pior em alguns sentidos. Também pode ser visto como maldito em termos literários se tivermos em conta os modelos críticos que faziam o cânone naquela época e que também não são muito diferentes dos atuais. Escrever uma coisa como O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor constitui uma afronta a toda a literatura que se fazia na época.
Porquê?
Era uma obra que se tivesse tido uma edição nas livrarias seria imediatamente apreendida, ele e o editor teriam sido perseguidos. O problema da maldição do Pacheco não vem dele, mas da forma como os outros o olham. É no olhar que está a pornografia e não no objeto olhado. As suas escolhas de vida não mereciam que ele tivesse sido preso duas vezes, as suas escolhas não precisavam da prisão ou da maldição. Mesmo em relação ao alcoolismo, ele pode ser um modelo, porque foi um alcoólico profundo durante 20 anos e superou, sobreviveu e saiu desse circulo infernal. Todos os cortes, todas as transgressões que ele foi fazendo ao longo da vida não constituem uma maldição, mas uma evolução no sentido de viver a utopia de uma liberdade radical, de um despojamento total, quer dos bens materiais, quer das coercividades morais. Não temos, nunca mais tivemos, um escritor que se lhe assemelhasse. Foi alguém que se despojou de tudo o que era material para se enriquecer de experiência humana, levando-se aos limites do sofrimento, da nudez, da fragilidade, tendo como única arma a sua escrita e o seu humor. Tanto Luiz Pacheco como Sade ensinam-nos imenso sobre a nossa verdadeira natureza.
Nesta biografia analisa não só a vida pessoal, mas também o trabalho de Luiz Pacheco como escritor e como editor, mostrando-nos como ele foi inventivo e criou uma obra que é um movimento literário, o Abjecionismo.
A literatura dele e aquilo que podemos chamar de Abjecionismo é escrever no ponto de intersecção entre a literatura e a vida. Mesmo sabendo que a palavra não pode nunca reconstruir o vivido com exatidão, ele vai na sua linguagem vernacular, no seu estilo, na sua sintaxe, procurar o máximo de aproximação entre a viva vivida e a literatura. Por isso, considera que encontra o seu género e o seu cume quando começa a escrever diários. Considero os diários de Luiz Pacheco o ponto cimeiro da sua produção literária e infelizmente estão praticamente todos inéditos, à exceção de um excerto que ele publica e que abarca os anos de 1970 a 73, o Diário Remendado. Ora, ele vai escrever diários durante trinta anos. São uns 40 cadernos que precisavam de ser transcritos, analisados, trabalhados e depois publicados. Só aí se vai ver a dimensão de Luiz Pacheco como escritor. Porque mesmo que os contos, as novelas, as histórias curtas e os fragmentos nos deem ideia do seu talento, do seu humor, da sua erudição, só no diários ele vai realizar profundamente a experiência Abjecionista. Uma vez que toda a literatura do Luiz Pacheco é feita neste sentido, ela vai ser contra toda a literatura que se faz naquela época, dos anos 40 aos anos 70.
Que literatura era essa?
O que se escrevia naquela época eram sobretudo exercícios de estilo. Não por caso, como ironia, ele dará a um dos seus livros o nome de Exercícios de Estilo, 1972. Naquelas décadas com os Neorealistas, os Presencistas, era cada um a ver quem escrevia melhor, quem tinha um melhor estilo, independentemente do conteúdo. Todos aqueles escritores que o Pacheco desprezava estavam a ver qual conseguia fazer o melhor romance do ponto de vista estilístico, melhor jogo de sintaxes, a narrativa mais inventiva, muitos a copiar o Nouveau Roman importado de França. Ora a literatura do Pacheco nada tem que ver com isto. É uma literatura muito simples porque ele escreve a sua vida e tenta mesmo despir-se de qualquer tique estilístico. A ele interessa-lhe retratar a vida como forma de pensar e retratar a sociedade em que vive, atacar essa sociedade.
Outra das coisas que faz neste livro é mostrar o edifício conceptual de Luiz Pacheco enquanto crítico literário, porque também nisso ele foi inovador.
O cânone critico da época do Pacheco — e de hoje, ainda — é dominado pela ideia de que o autor não interessa nada, o que interessa é a obra. Esta corrente atingirá o paroxismo quando Roland Barthes declara a “morte do autor”. Luiz Pacheco não pensava assim. A sua crítica literária poderia resumir-se no mote “diz-me como vives e dir-te-ei como escreves”. Portanto, a sua crítica é totalmente virada para o autor, o que acabou com ele a escrutinar a vida de todos os escritores do seu tempo, acabando sempre por arranjar problemas a esses escritores. A crítica dele era apoiada também na ideia de fazer uma pedagogia e, ao centrar de novo o seu olhar na relação escrita-vida, vai conseguir extrair um retrato e uma avaliação do que vale determinado livro em termos literários e sociais. Considero que, tirando o caso de António Sérgio, não temos mais nenhum crítico tão singular e com um pensamento construído à margem dos cânones. Ao contrário de outros críticos, de Gaspar Simões a Eduardo Prado Coelho, de onde só podemos retirar lições de estilo, com Luiz Pacheco ficamos com uma visão social da obra e do autor. Os seu textos críticos dão-nos uma visão única da sociedade portuguesa e do meio literário.
Desses textos gosta de destacar um que se chama “A Jantarada”. Porquê?
Porque é um acontecimento literário ao qual mais nenhum crítico ligou, mas que a ele não passou despercebido. Aconteceu em 1976 e Mário Soares, que presidia o 1.º Governo Constitucional, resolveu fazer um jantar para os escritores portugueses e convidou vários de várias correntes e quadrantes, de Gaspar Simões a Maria Velho da Costa. Luiz Pacheco escreve então uma crítica a que chama “A Jantarada” e que visa mostrar como rapidamente os escritores correm a sentar-se nas mesas do poder. É uma pequena obra-prima da crítica que mostra como a literatura se relaciona e depende ou cria dependências do meio que a envolve. É pena que tanto naquele tempo como hoje a crítica literária não olhe para estes pequenos acontecimentos, porque dar-nos-ia um retrato interessantíssimo do que é a literatura portuguesa hoje.
Se estivesse vivo e escrevesse sobre o meio literário de hoje, que título teria a crítica do Luiz Pacheco?
Hoje provavelmente seria “O gang do prémio Saramago”. Faz falta alguém que faça uma crítica centrada no autor e não só na obra. O João Pedro George tentou fazer, mas terá tido muitas limitações, como de resto o Pacheco também teve. Até à ultima década de vida, quando escreveu para o Público e para o Diário Económico, ele teve imensa dificuldade em publicar as suas críticas. O jornal que mais liberdade lhe deu foi o Diário Popular, honra seja feita ao seu diretor, hoje esquecido, Jacinto Batista. Os textos de critica que ele coligiu em Textos de Guerrilha I e II tiveram também muitas provações até serem editados. A livraria e editora Ler que ia fazer a edição em livro sofreu imensas pressões, sobretudo de escritores e em especial de Fernando Namora, que chegou a ameaçar a chancela com tribunal, para que o livro não fosse publicado. Mas aí também Pacheco mexeu os seus cordelinhos e organizou um abaixo-assinado para o livro sair.
Na sua crítica como na vida, o humor era a sua principal arma e ele mostra como pode ser uma arma letal.
O humor é um ponto fulcral da escrita do Luiz Pacheco, seja na crítica, nos contos, nas cartas e no dia-a-dia. O humor foi a sua arma mais importante, a que funcionava para atacar, mas também para se defender dos ataques dos outros. Ele tinha um olhar satírico sobre o mundo e sobre si mesmo e soube pôr isso em palavras, o que tornou os seus textos, sobretudo os de crítica, absolutamente mortais para os autores que eram o seu alvo. Mas até aqui ele tinha um sentido pedagógico, desafiava constantemente as pessoas a se “desaburguesarem”.
O que é que diferencia esta sua biografia da que escreveu João Pedro George?
São estratégias totalmente diferentes, ele vem da sociologia e é do ponto de vista social que ele conta a vida do Pacheco, usando muitos excertos do diário, pondo-nos face à voz dele. Eu entro na história do Pacheco pela via da literatura. Procuro contar a sua vida, mas também analisar o que foi a obra como escritor e como crítico. Eu quis fazer uma investigação a fundo e depois criar uma narrativa minha. De certa forma, posso dizer que tentei escrevê-la de forma neo-abjecionista, aproximando o mais possível a obra da vida vivida. Dai também um lexical que eu faço, usando o vernáculo, porque foi a forma que encontrei de me aproximar mais dele, da sua história, pela liberdade que ele teve e pela forma como escreveu nos diários, que foram a minha principal fonte. Trabalhei neste livro desde 2015, quando acabei a a biografia de Agostinho da Silva, mas na verdade acho que ele anda comigo desde o dia em que o vi na feira do livro de 1972. Depois há coisas que o George escreveu que na minha interpretação são imprecisões, o que é normal para alguém que escreve a primeira biografia de uma pessoa. É provável que quem quer que venha a seguir a mim encontra também imprecisões no meu trabalho, mas por isso as biografias são tão importantes.
A sua visão trágica e não cómica, não anedótica da vida do Luiz Pacheco, não corre o risco de desapontar os leitores?
Pretendi fugir ao máximo dos lugares comuns que o tempo depositou na figura do Pacheco. O anedótico na vida dele existe, mas não poderia constituir o núcleo da minha biografia. Esta é a biografia de um escritor e não de um humorista, por mais que como humorista ele também fosse virtuoso.