O longo caminho que deverá levar à aprovação da lei para despenalizar a eutanásia, ou a morte medicamente assistida, poderia ter conhecido um novo capítulo esta quarta-feira, quando os partidos com propostas neste sentido (PS, IL, BE e PAN) levassem o seu texto comum a votos. Só que a votação não chegou a acontecer: os partidos até estavam confiantes e “esperançosos” numa aprovação, mas uma alteração “cirúrgica” feita à meia-noite de véspera deitou o processo por terra. A votação, a menos que haja novo adiamento, será na próxima semana.
Essa alteração — a supressão de uma alínea que estava no artigo 25 da nova proposta — levou o Chega a pedir o adiamento da votação, desconfiado, e tanto PS como PSD concordaram em conceder mais tempo para a análise da proposta. O que não significa que os proponentes não continuem a defender que a mudança é “administrativa” e que tudo não passa de um “expediente” do partido de André Ventura para voltar a adiar o momento, que parece inevitável, da aprovação final.
O problema é que, como aconteceu até aqui, é mais provável que os problemas surjam fora do Parlamento, mais concretamente em Belém e no Palácio Ratton, assim que a lei acabar por ser aprovada. Em dez perguntas e respostas, explicamos como chegámos até aqui, o que diz agora a proposta, o que mudou e que obstáculos pode enfrentar o diploma.
Afinal, porque é que a votação foi adiada desta vez?
Por dois motivos principais: uma alínea alterada em cima da hora e… a própria hora. Esta quarta-feira, já tinham passado três horas desde o início da reunião da Comissão de Assuntos Constitucionais, Liberdades e Garantias em que os deputados planeavam votar o projeto; já se tinham discutido os mais diversos assuntos e requerimentos; os líderes parlamentares já tinham pedido que a votação só acontecesse no final da reunião da conferência de líderes, que acontecia ao mesmo tempo; e a discussão sobre a eutanásia continuava a ser empurrada para o final do encontro.
Quando finalmente ia começar, já pelas 13h, o Chega constatou que tinha havido a tal mudança numa alínea e pediu mais tempo para analisar, até “juridicamente”, a proposta, uma vez que a alteração foi feita à meia-noite e um quarto e só foi distribuída aos deputados perto das oito horas da manhã.
PS e PSD votaram a favor do adiamento, com os socialistas a explicarem que desejam um processo sem mácula nem queixas de falta de democraticidade — e com mais tempo para discutir em comissão; os outros partidos, exceto o Bloco de Esquerda, permitiram que o adiamento acontecesse, abstendo-se. Mesmo assim, bloquistas e PAN acusaram o Chega de recorrer a um “expediente” e a uma manobra de “secretaria” para continuar a adiar a aprovação, que parece inevitável, da despenalização da eutanásia.
E afinal o que é que dizia a tal alínea?
A alínea em causa tem a ver com a Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Antecipação da Morte, que tem um papel na autorização de cada pedido de eutanásia (ver abaixo). Ora o que a proposta já previa era que a comissão fosse composta por juristas indicados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo Conselho Superior do Ministério Público; um médico indicado pela Ordem dos Médicos; um enfermeiro indicado pela Ordem dos Enfermeiros (estes dois últimos sem que tenham alegado objeção de consciência); e um especialista em bioética indicado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Entretanto, a Ordem dos Médicos tinha vindo garantir que recusaria indicar um membro.
Na versão anterior da proposta, constava uma alínea que previa que a comissão entraria em funcionamento “no primeiro dia útil seguinte ao termo do prazo previsto” (vinte dias) “ou logo que tenham sido designados todos os seus membros”. Ora foi esta parte que foi eliminada. Agora, da proposta consta apenas que os membros devem ser designados num prazo de 20 dias depois da entrada em vigor da lei.
O que significa isto? Para o Chega, que os proponentes podem estar a tentar contornar a exigência de que a comissão só possa funcionar com todos os membros presentes, dado o problema colocado pela Ordem dos Médicos. Mas é o único que interpreta assim a alteração: já cá fora, o PSD também disse ver a mudança na lei como uma questão que não será de substância.
Ao Observador, a socialista Isabel Moreira defende que a proposta entrará, assim, em vigor “nos termos gerais de qualquer órgão colegial”, agora sem margem para “dúvidas interpretativas ou hipóteses absurdas que não estavam de todo no espírito do legislador, e que a formulação atual — que não tem referência nem a dizer que têm de ser designados todos os membros nem em sentido contrário — é clara o suficiente.
Se a alínea anterior permanecesse, por colocar a designação de todos os membros como uma mera alternativa, poderia no limite dar-se o “ridículo” de alguém entender que bastaria um membro tomar posse para a comissão funcionar — “sendo colegial nunca poderia ser assim”, aponta a deputada. Com esta formulação, “todos os membros são nomeados”, garante.
Mas porque é que estamos a falar da eutanásia outra vez?
O caminho para a (tentativa de) aprovação da eutanásia, ou morte medicamente assistida, em Portugal tem sido longo e cheio de obstáculos. A primeira vez que os partidos – PS, Bloco de Esquerda, PAN e Iniciativa Liberal – conseguiram fazer aprovar propostas neste sentido aconteceu em 2020, depois de uma primeira tentativa falhada, ainda nos tempos da geringonça.
Entretanto, o Tribunal Constitucional vetou as propostas, argumentando que havia conceitos “imprecisos” na lei e que as condições em que a morte medicamente assistida ficaria despenalizada teriam de ser mais claras. Depois disso, Marcelo Rebelo de Sousa voltou a devolver o diploma ao Parlamento, argumentando que os partidos continuavam a misturar conceitos, falando de doenças que seriam ora “incuráveis”, ora “graves”, ora “fatais” como condição para alguém pedir a eutanásia – e questionava se os partidos quereriam mesmo deixar cair a exigência de “doença fatal”, que restringia claramente o âmbito da lei.
É na sequência deste percurso de obstáculos que os partidos voltaram a aprovar um texto novo em junho, na fase da generalidade; voltaram ao grupo de trabalho em que construíram a lei da morte medicamente assistida para a afinar na especialidade; e voltaram, mais uma vez, a apresentar o texto a que chegaram – um texto comum, partindo das propostas individuais de cada um –, com alguns retoques, a votação (agora adiada) nesta quarta-feira, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
Apesar do adiamento, é agora que as propostas vão ser aprovadas?
É o momento em que estão mais perto de ser. Nos últimos meses, houve vários percalços. O início da discussão e votação em Comissão, depois de os partidos terem acertado agulhas no grupo de trabalho, chegou a estar previsto por uma vez para 18 de outubro, dia em que o Chega acabou por usar o seu direito de pedir um adiamento, que é obrigatoriamente concedido por ser potestativo – todos os grupos parlamentares podem recorrer uma vez a este instrumento, adiando a votação por uma semana. Na altura, fonte da bancada do Chega dizia ao Observador que o partido tinha pedido alguns pareceres sobre a proposta e que continuava à espera deles.
Depois, foi a vez de o PS usar a mesma figura, mesmo antes do início do processo orçamental: já em novembro, os socialistas pediram o adiamento usando vários argumentos, do mau timing – por coincidir com as votações orçamentais – à necessidade de reverem mais uma vez o texto e deixarem-no à prova de bala. Na altura havia ainda uma terceira razão, mais pessoal, admitida no PS: o histórico do CDS Adriano Moreira, pai da socialista Isabel Moreira – que é uma das principais responsáveis por esta lei – tinha morrido e a deputada não poderia fazer a apresentação da lei, como estava previsto.
Chegamos assim à votação desta quarta-feira, para a qual todos os partidos proponentes estavam alinhados e expectantes. O Observador foi ouvindo um sentimento comum: “Esperamos que seja desta”. Agora, com a votação adiada, garantem que isto não será motivo para adiar o assunto sine die e que até pode voltar a ir a votos já na próxima semana. O presidente da comissão, Fernando Negrão, disse ao Observador que, a menos que haja novo pedido de adiamento acordado por todos, o assunto será mesmo votado na próxima reunião.
Além dessa alínea, mudou alguma coisa desde a última votação?
Desde a última votação na generalidade no Parlamento, em junho, mudou. A esta seguiu-se o processo de especialidade, em que os partidos foram tentar responder às inquietações de Marcelo – nalguns casos reforçando-as, mas já lá vamos – e às entidades que foram ouvindo, durante o processo de audições.
Foi nessa sequência que os partidos introduziram várias alterações: o texto comum passou a estabelecer vários novos timings para o processo, incluindo um prazo mínimo de dois meses entre o pedido e a concretização da morte medicamente assistida ou prazos de 20 e 15 dias para os pareceres médicos.
Passou também a ser obrigatório o acompanhamento por um psicólogo durante o processo (a não ser que o paciente o recuse expressamente) e a realização de um parecer psiquiátrico caso haja “dúvidas” por parte do médico orientador ou do médico especialista sobre a capacidade do doente de decidir, ou caso este seja portador de alguma “perturbação psíquica” ou de alguma condição que afete a sua capacidade de tomar decisões.
Há ainda um prazo limite de vinte dias para a escolha dos membros da tal Comissão de Verificação e Avaliação, que terá nas mãos o poder de validar os pedidos de eutanásia.
E é mais fácil que se torne lei, da próxima vez que for a votos?
Em teoria sim. Isto porque os deputados terão maioria para votar a favor da proposta tanto na Comissão como depois na votação geral em plenário. PS, BE, IL, PAN e Livre são favoráveis à lei; apenas Chega e PCP são frontalmente contra, embora o PSD, que voltará a dar liberdade de voto nesta matéria, tradicionalmente vote esmagadoramente contra. A maioria dos deputados estará, portanto, assegurada, até porque a lei já passou, na generalidade, em junho.
O problema pode vir depois. Se nas últimas tentativas de passar a lei os deputados esbarraram contra as objeções de Marcelo Rebelo de Sousa e do Tribunal Constitucional, desta vez a interpretação geral é que, tendo entretanto começado uma nova legislatura em março, esses passos podem voltar a ser dados e o filme ainda pode voltar a repetir-se.
“Houve uma preocupação acrescida para não haver lapsos – infelizmente o que aconteceu na outra legislatura [vetos de Marcelo e do TC] tratou-se mais de lapsos do que de outra coisa”, assegura ao Observador a deputada do PS e coordenadora do grupo de trabalho Maria Antónia Almeida Santos. Desta vez, os deputados fizeram a “harmonização de conceitos” como o Tribunal Constitucional pedia; depois, “acrescentaram a obrigatoriedade do acompanhamento psicológico”, para responder aos pedidos ouvidos nas audições a entidades externas; e por fim, estabeleceram balizas temporais para que o processo tenha um timing “razoável”, resume a deputada.
“Nestas três ideias, o que esteve presente foi um trabalho de apuramento e harmonização de tudo. Todos os proponentes se reviram e sentiram bem e confortáveis com o trabalho produzido – por isso é que houve unanimidade [entre os proponentes] sobre este texto num processo tão sensível”. Frisando o “rigor”, a “minúcia” e o que diz ser o caráter “exemplar” deste trabalho, a deputada faz agora votos de que não haja mais “dúvidas”, depois de ouvidos “muitos intervenientes, da sociedade civil, da academia…”.
O problema é que ainda pode haver mais dúvidas, nomeadamente da parte de Belém. Marcelo tinha sido claro nos avisos que deixou quando vetou a lei, dizendo que o efeito que teria deixar cair o termo “fatal” seria, na prática, uma “ampliação” das condições em que a eutanásia pode acontecer. Se assim fosse, Portugal estaria no grupo de países com leis mais radicais neste âmbito, avisava, questionando se essa visão “mais radical ou drástica” corresponderia ao “sentimento dominante na sociedade portuguesa. Em tese, um argumento que corresponderia aos pedidos do Chega para se avançar para um referendo.
A isto, os partidos respondiam que nunca tinha estado no “espírito” da lei a exigência de que a doença fosse fatal e que a nova versão da lei só viria clarificá-lo. E assumiam a intenção de ir ao choque com Marcelo. A esta questão, Maria Antónia Almeida Santos responde que “a formulação encontrada” – falar numa doença de natureza grave e incurável e de uma lesão definitiva e extrema – “é perfeitamente enquadrável dentro do espírito que constava do acórdão do TC”, não respondendo diretamente ao Presidente.
“Está tudo assegurado, foi com prudência que fizemos tudo”, garante a deputada, deixando um aviso: “Há pessoas que estão à espera, outras que já não puderam esperar e tiveram de sair do país. Esperemos que seja agora que damos este salto, que é, diria eu, quase civilizacional”. Resta saber se Marcelo concorda e, se o texto voltar ao TC, se os juízes do Ratton consideram que a lei está, desta vez, construída e escrita à prova de bala, sem conceitos confusos ou misturados como aconteceu no passado.
Portanto os partidos estão maioritariamente de acordo com a lei. Mas é assim tão pacífica?
Está longe de o ser. As ordens profissionais dos Médicos e dos Enfermeiros (que podem exercer o direito à objeção de consciência, previsto neste texto) são frontalmente contra a proposta, sendo que os médicos a consideram mesmo uma violação do código deontológico que regula a profissão. O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida também se manifestou contra a “urgência” de legislar sobre a eutanásia e a Federação pró-vida tem liderado as manifestações públicas contra a lei.
Do lado dos deputados que a defendem, ironiza-se que estará a carregar nos pedidos de apoio nesta reta final, dadas as vozes que se têm levantado contra a proposta, mas mesmo assim os parlamentares garantem que a pressão só poderá chegar “a Belém ou ao Tribunal Constitucional”. Esta terça-feira, o ex-Presidente Cavaco Silva voltou a juntar-se a essas vozes, garantindo que a legalização da eutanásia “não respeita o espírito da Constituição”.
Então o que é que diz, exatamente, o texto?
O que a lei estabelece, neste momento, é que podem recorrer à eutanásia as pessoas com mais de 18 anos que se encontrem em situação de doença de natureza grave e incurável ou com uma lesão definitiva e extrema. Mas, para isso, terão de passar por uma série (extensa) de passos intermédios. Primeiro, o paciente terá um médico orientador, que avalia se o caso se enquadra nas situações previstas na lei. Depois, será avaliado por um especialista da patologia em causa, sendo que com as novas alterações se poderá juntar também o parecer de um psiquiatra, caso os primeiros médicos tenham dúvidas. A seguir, o paciente passará pelo crivo da Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Antecipação da Morte.
Em todos estes passos, tanto os médicos como o paciente podem reverter a decisão e decidir em sentido contrário. Por fim, o doente terá de estar consciente no dia marcado e de confirmar, mais uma vez, a sua vontade, “imediatamente antes de se iniciar a administração ou autoadministração [no caso de se tratar, tecnicamente, de um suicídio assistido] dos fármacos letais”.
E pode haver novo veto?
Segundo a leitura que os próprios deputados fazem, pode: como esta é uma nova legislatura – a terceira desde que o processo começou – a interpretação do Parlamento é que os projetos de lei em causa, que foram sintetizados neste novo texto comum, são tecnicamente projetos novos e portanto podem passar por todo o processo outra vez. Ou seja, Marcelo poderá exercer o seu direito de veto político ou pedir a fiscalização do diploma, mais uma vez, ao Palácio Ratton, que avaliará se a lei está conforme a Constituição.
E um referendo?
É mais improvável, uma vez que o PS tem agora maioria absoluta no Parlamento e é frontalmente contra esta ideia. Na legislatura anterior, quando Rui Rio era presidente do PSD – e também contra o referendo, ao contrário de parte do partido – uma petição com 95 mil votos para se levar a eutanásia a referendo acabou chumbada, com votos favoráveis apenas do CDS e da Iniciativa Liberal, que entretanto mudou de ideias.
O único fator novo em jogo, embora não decisivo em termos de votos, é que o PSD mudou de líder e Luís Montenegro confirmou, enquanto candidato à presidência do partido, que é favorável ao referendo.