Um coldre Veja Holster, uma pistola Glock 19, de 9 milímetros, e os respetivos carregadores e munições. Com algumas diferenças no número de carregadores e de balas, este foi o único material entregue pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) a Bruno Sousa, Duarte Laja e Luís Silva, os três inspetores acusados do crime de homicídio qualificado em coautoria de Ihor Homeniuk.
Ainda assim, nas imagens de videovigilância captadas no interior do Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, onde o cidadão ucraniano morreu, no passado 12 de março, pelo menos um deles, Luís Silva, surge com um bastão extensível preto, ora na mão, ora pendurado à cintura.
E 18 dias mais tarde, quando foram detidos, tanto Luís Silva como Duarte Laja tinham em seu poder um bastão extensível cada um — sendo que, de acordo com a acusação do Ministério Público, nenhum deles tinha autorização legal para estar na posse de tais armas, consideradas de classe A, uma categoria que reúne os equipamentos de maior perigosidade, incluindo material de guerra, armas de fogo automáticas e armas químicas, biológicas, radioativas ou suscetíveis de explosão nuclear, por exemplo.
Mais: a ex-diretora do SEF, questionada pela investigação, também garantiu (quando ainda estava no cargo) que nenhum bastão extensível foi distribuído aos inspetores que prestam serviço no aeroporto de Lisboa — e que aquele tipo de arma não é comprado desde 2006.
Depois de processar os dois bastões apreendidos, o laboratório da polícia científica da Polícia Judiciária concluiu que no bastão extensível sem marca, número ou modelo que estava na posse do inspetor Luís Silva havia “leves vestígios de sangue”. Como a amostra era muito reduzida, acabou por não ser possível compará-la com uma amostra de ADN de Ihor Homeniuk. Também não foi possível apurar se o sangue em questão era humano.
Se não lhes foram distribuídos pelo SEF e se não tinham autorização legal para os deter, por que motivos tinham os acusados pela morte de Ihor bastões extensíveis no seu local de trabalho? E por que razão nenhum dos demais inspetores do SEF ou dos vigilantes naquele dia de serviço no Centro de Instalação Temporária reportou a posse de uma arma ilegal — naquela altura ou em alguma outra em que também os tivessem?
A resposta não é tão simples como pode parecer, explica ao Observador Renato Mendonça, presidente do Sindicato dos Inspetores de Investigação, Fiscalização e Fronteiras (SIIFF). Tudo porque, apesar de não terem sido distribuídos aos três inspetores em causa e de não serem vistos “com regularidade” entre os colegas, os bastões extensíveis podem efetivamente ser utilizados pelos funcionários do SEF.
“Tudo depende de o Serviço os adquirir e distribuir. Sempre foi uma opção das direções nacionais não adquirirem bastões ou não adquirirem em número suficiente para toda a gente. Mas isso é comum a todas as forças de segurança, há determinados meios coercivos que são adquiridos e não são distribuídos a toda a gente. Como os coletes à prova de bala, nem todos os polícias os têm”, explica o inspetor do SEF.
“Tal como não vamos pedir aos polícias para ver a sua licença de uso e porte de arma, também não vamos fazer o mesmo com os colegas. Até porque não sabemos se o diretor distribuiu para lá bastões ou não. O diretor, por despacho próprio, por questões operacionais e de estratégia, pode entender distribuir bastões ao aeroporto A ou ao aeroporto X. Como não é ilegal por si só, ninguém vai verificar se foi distribuído ou não. São coisas que, para nós, não levantam qualquer objeção à partida”, acrescenta outro inspetor da força de segurança responsável por assegurar o controlo das fronteiras portuguesas, que prefere não ser identificado.
A mesma fonte garante ainda que não tem notícia de que alguma vez tenha sido apresentada qualquer queixa, quer por cidadãos comuns, quer por profissionais do SEF, relativa ao uso indevido deste tipo de arma. “Até porque não é uma coisa que nos incomode muito, um bastão por si só não mata. Pode servir como dissuasor, para meter medo, mas, a haver alguma coisa, não me parece que tenha sido com o bastão. Normalmente existe uma maior preocupação nos equipamentos letais”, diz.
Um dos inspetores chefes da delegação do SEF naquele aeroporto, presente no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa no dia 12 de março, terá seguido a mesma linha de pensamento.
Quando questionado pela Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) sobre o assunto, a propósito dos acontecimentos que culminaram na morte de Ihor Homeniuk, o inspetor chefe admitiu que são vários os inspetores daquela força, naquele local, a ostentar habitualmente bastões extensíveis à cintura — de acordo com o mesmo documento, terá confessado inclusivamente que achava que para poder utilizar aquele tipo de arma, bastava ter o “nível 2 de segurança”.
Por muito que, entre colegas, o desconhecimento até possa ser invocado, no casos de quem tem cargos de chefia a explicação já não será assim tão plausível — os inspetores do SEF agora acusados pela morte de Ihor Homeniuk cruzaram-se com um coordenador, que também não tomou qualquer tipo de providência tendo em conta a utilização do material indevido, na manhã em que estiveram no Centro de Instalação Temporária. Antes de março chegar ao fim, ser-lhe-ia instaurado um processo-disciplinar pela Inspeção-Geral da Administração Interna, tal como aconteceu também aos três inspetores do SEF, e ao diretor e ao subdiretor de Fronteiras de Lisboa.
Só existem bastões em duas dependências do SEF em todo o País — o Aeroporto de Lisboa não é uma delas
Para as inspetoras responsáveis pelo inquérito da IGAI, concluído em outubro, não há espaço para dúvidas. Em primeiro lugar, consideram não existir qualquer justificação para que inspetores do SEF se façam acompanhar de objetos como fitas cirúrgicas, bastões extensíveis e algemas metálicas. Depois, fazem questão de assinalar o facto de os inspetores os trazerem, de antemão, quando chamados para responder a uma situação com um cidadão impossibilitado de entrar no País e a aguardar voo de regresso, antes sequer de terem oportunidade de verificar o seu estado — e por isso sem qualquer evidência da sua alegada agressividade ou violência.
Questionada em abril pelo Ministério Público, a então diretora nacional do SEF, Cristina Gatões, garantiu que não havia, no Posto de Fronteira do Aeroporto de Lisboa e à data da morte de Ihor Homeniuk, qualquer bastão extensível — pelo menos não distribuído pelo SEF aos seus funcionários. Mais: segundo Cristina Gatões, desde 2006, há já 14 anos, que o SEF não faz qualquer aquisição deste tipo de material.
Ainda de acordo com a ex-diretora nacional, as únicas dependências do SEF onde existem bastões extensíveis são a Direção Regional do Algarve e o edifício sede do SEF, no Tagus Park, em Oeiras.
Se no Algarve estão guardados num cofre, à guarda da chefe do departamento regional de investigação e fiscalização, e só podem sair de lá mediante autorização superior; na sede do SEF os bastões extensíveis estão depositados no armeiro, para serem utilizados apenas por instrutores e para efeitos de formação, detalhou ainda a ex-diretora nacional do SEF, que renunciou ao cargo no passado dia 9 de dezembro, depois de admitir em entrevista que Ihor Homeniuk foi vítima de uma “situação de tortura evidente”.
Outra dúvida poderá surgir aqui, dizem os dois inspetores do SEF ao Observador: é que, apesar de não serem habitualmente distribuídos pelo serviço de segurança, os bastões extensíveis fazem parte do treino dos seus agentes desde 2016 — uma modificação introduzida para equiparar a formação do SEF à da Frontex, a Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas.
A partir do momento em que têm treino adequado, os agentes do SEF ficam, tal como os membros das Forças Armadas ou de outras forças e serviços de segurança, habilitados a comprar um máximo de dois bastões extensíveis. Para isso é obrigatória uma autorização de compra, que só pode ser emitida pela PSP, e mediante a apresentação de vários documentos.
Mas não é sequer pelo facto de a arma estar legalizada que pode ser utilizada em serviço, diz fonte do SEF: “Uma coisa é aquilo a que nós, inspetores, temos direito, como licença de uso e porte de arma, outra coisa são as armas fornecidas pelo Estado. Se o SEF não fornece bastões, os seus funcionários, quando uniformizados, não os podem usar. Só podemos usar em serviço o armamento que nos é disponibilizado pelo Estado. Segundo a lei das armas, temos licença de uso e porte de arma para este tipo de arma, mas não podemos usá-la quando estamos a trabalhar”.
Também não é por ter formação para isso, frisa o mesmo inspetor, que um funcionário do SEF fica automaticamente autorizado a utilizar essa arma na linha de trabalho: “Há pessoal que tem formação e há outro que não tem, mas continuamos na mesma: em serviço só pode ser usado material que seja fornecido pelo Estado”.
Questionado sobre que motivos poderão então levar representantes do SEF a comprar, a título pessoal, material que não podem legalmente utilizar em trabalho, o inspetor recorre a uma noção algo enviesada de zelo para responder: “Eu, pessoalmente, trago o que é indispensável, mas depois há aqueles indivíduos que têm o brio profissional, e trazem mais umas algemas XPTO e mais não sei o quê. Admito até que possa ser algum desconhecimento de quem coordena, mas se eu estivesse a dirigir o departamento comigo não traziam isso”.