Índice
Índice
Luís Monteiro tem por hábito dizer que Maria Antónia Guerra dedicou-se à sua vocação num ano e, no ano seguinte, ele dedicou-se à dele. A diferença é que a sua vocação foi o casamento e a dela foi Deus. Foi exatamente em julho de 1979, quando tinha 21 anos, que a irmã Tona, como era conhecida, vestiu o hábito das Servas de Maria Ministras dos Enfermos. “Éramos amigos na juventude. Andávamos no grupo de jovens juntos: eu comecei a namorar e ela entregou-se à congregação”, recorda Luís Monteiro. Está reformado, mas é catequista e ministro da comunhão, tendo chegado até a convidar a irmã Maria Antónia Guerra para falar sobre a sua história de vida na catequese. “Ela até disse: ‘Achas que os meninos ficam contentes de ver uma pessoa com estes trajes?'”.
Foi nesses “trajes” que Luís Monteiro se habituou a ver, desde jovem, a amiga. “Depois, nunca a vi com outra roupa sem ser a de freira. Nem no pico do calor”, conta em conversa com o Observador. A decisão começou a ser tomada por volta dos 18 anos, quando a irmã Tona frequentou um Convívio Fraterno que a levou a questionar: “Porque não entregar-me aos outros?”.
Natural daquela cidade no distrito de Aveiro, a irmã Tona, como era ali conhecida, passou a vida a cuidar de doentes durante a noite, entre Portugal e Espanha, por pertencer à Congregação Servas de Maria Ministras dos Enfermos. Mas regressou à sua terra natal para cuidar da família.
Ficou conhecida por andar andar de mota pela cidade, e sempre com o hábito vestido. Mas a forma como se deslocava, conta quem a conhecia, estava longe de ser aquilo que a caracterizava. Mesmo de capacete posto, o sorriso ia sempre com ela e era nisso que todos reparavam. “Era muito querida, muito alegre e estava sempre com um sorriso”, recorda a irmã Inés Flores Vázquez, responsável pela Congregação Servas de Maria Ministras dos Enfermos, no Porto. Foi àquela casa que a “freira radical” esteve sempre ligada, mesmo depois de ter voltado para São João da Madeira para cuidar do pai e, depois, da mãe. Apesar de ser a ela que nos últimos tempo dedicava a maioria do seu tempo, a irmã Tona continuava a cuidar de doentes, pessoas com problemas de toxicodependência e sem-abrigo em São João da Madeira. “Disponibilizava-se sempre, se estivesse nas suas mãos poder ajudar”, acrescenta a irmã Inés Flores Vázquez.
É por isso que ninguém estranha que Maria Antónia tenha decidido entrar, na manhã do passado domingo, na casa de um homem de 44 anos — registado no banco de toxicodependentes que a freira ajudava. “Não sei o que aconteceu, mas supondo que ele tinha pedido ajuda, claro, é lógico que a irmã fosse. Não há dúvida nenhuma”, afirma a irmã Inés Flores Vázquez. A “freira radical” foi ali encontrada morta, horas mais tarde. Terá sido asfixiada até à morte e, depois, violada — um crime que o bispo do Porto, Manuel Linda, considerou “hediondo”. Morreu em trabalho e convencida que estaria a ajudar alguém que precisava dela: até porque a mãe do alegado homicida era um dos doentes de quem a irmã Tona cuidava.
Pensou “em ter sete filhos” e viveu a mocidade “como as de hoje”, antes de entrar para o convento
Só não entrava com a mota nos cafés porque não podia, chegou a admitir numa entrevista que o jornal O Regional publicou três dias antes do crime. Era quase impossível não reparar na irmã Maria Antónia Guerra ao volante de uma lambreta, pelas ruas de São João da Madeira, e sempre de hábito vestido. Quem não a conhecia pelo nome, conhecia-a, pelo menos, por isso.
Foi a lambreta que levou a que ficasse conhecida como “freira radical”, embora o pároco de São João da Madeira prefira dizer que a irmã Maria Antónia “era radicalmente uma freira, radicalmente uma consagrada e radicalmente alguém que amava os outros”. O padre Álvaro Rocha não deixa, no entanto, de admitir: “Claro que não é muito comum vermos uma freira a andar de mota”.
“Quando veio para cá tratar do pai, andava de bicicleta”, recorda Luís Monteiro, amigo de infância da irmã Maria Antónia. O pai morreu em 2016 e ficou a cuidar a mãe. “Os amigos compraram-lhe a mota e ela passou a andar sempre de mota. Tirou a carta há um ano ou dois“, conta ainda ao Observador, acrescentando: “Também lhe arranjaram um carro, mas ela preferia a mota”.
O presente foi uma grande ajuda. Na entrevista ao jornal O Regional, a freira descreveu o seu dia-a-dia como “de trabalho, de manhã à noite, contribuindo para o bem-estar” principalmente da mãe e da família. Quando os amigos lhe ofereceram a lambreta, tudo ficou mais fácil. “Só não entro nos estabelecimentos de mota, porque não me é permitido. Mas antes da mota, que foi oferecida pelos meus amigos, andava de bicicleta. Só que as minhas pernas começaram a ficar cansadas e assim é mais fácil”, revelou.
Ser freira era, de facto, a sua vocação. Três anos depois de, ainda aos 18 anos, ter questionado sobre qual deveria ser o seu papel no serviço aos outros, vestia o hábito. Antes disso, contou, teve uma juventude como a de qualquer outra rapariga da sua idade. Trabalhou numa fábrica, teve “alguns amigos coloridos” e até pensou “em ter sete filhos”. “Vivi a minha mocidade como as de hoje. Fui a bailes e até chegava tarde a casa, mas os meus pais confiavam em mim”, recordou na mesma entrevista. Também sentiu esse apoio quando decidiu largar tudo e entrar no convento. “Felizmente, senti-me sempre apoiada pelos meus pais, inclusive quando decidi tornar-me freira. Eles disseram: a porta por onde sais é a mesma por onde podes entrar, caso não te sintas bem. E também senti o apoio dos meus amigos”, recordou.
Esteve entre Portugal e Espanha — onde tirou um curso de enfermagem — a cuidar de doentes durante a noite
Depois dos dois anos de noviciado, o período de formação depois de faz os seus votos, entrou para a Congregação Servas de Maria Ministras dos Enfermos, no Porto — à qual esteve sempre ligada, mesmo depois de ter ido para Espanha. Ali, passou por conventos em Bilbau, Salamanca e Valência, conta ao Observador a irmã Inés Flores Vázquez.
Foi em Bilbau, em 1995, que conheceu a irmã Tona. “Depois ela foi para outra casa, em Espanha. Quando vim para aqui [para o Porto], ela estava aqui. Depois, ela voltou a ir para outra casa também em Espanha”, recorda. Voltariam a encontrar-se em 2013, no Porto quando a irmã Maria Antónia regressou novamente e definitivamente. Durante os últimos anos que esteve naquela casa, dedicou-se também aos mais jovens. “Trabalhou no secretariado das vocações, aqui na Diocese do Porto. Houve vários grupos de raparigas que ela ajudou no discernimento vocacional. Só por isso, era muito conhecida. Andava muito nas reuniões com os seminaristas”, explica a responsável pela congregação.
Durante a passagem por Espanha, tirou um curso de enfermagem. Como explicou a irmã Inés Flores Vázquez, “tenta-se sempre que a Servas de Maria Ministras dos Enfermos tenham alguma formação em enfermagem”, devido ao serviço que prestam. “Foram as primeiras religiosas a sair dos seus conventos de noite para cuidar dos doentes nas suas casas”, recorda, detalhando: “Não são os doentes que vão em busca de alguém. As irmãs são como a luz na noite do doente. Passam lá a noite e, de manhã, voltam ao seu convento, a recuperar forças para voltar de noite”.
Noutros países, como na Indonésia ou nas Filipinas, estes serviços são prestados também de dia. No Porto, também chegou a ser assim. “Havia irmãs para ir de manhã e de noite. Algumas prestavam apoio em lares e centros de dia.” À data, eram quase 30 freiras. Agora, sem a irmã Tona, são apenas seis.
Em 2016, passou a cuidar da mãe. Mas continuou a tratar outros doentes, incluindo a mãe do homem que a matou
Nos últimos anos, a mãe de irmã Maria Antónia passou a ser a sua prioridade. Regressou a São João da Madeira quando o pai começou a ficar debilitado e, quando ele morreu, em 2016, passou estar com a mãe de forma mais permanente. Nunca deixou, ainda assim, a Congregação Servas de Maria Ministras dos Enfermos e permaneceu sempre ligada a ela. Apenas pediu para que pudesse fazer com a mãe o trabalho que fazia com os outros. “Vinha todas as sextas-feiras e uma vez por mês para fazer o retiro”, conta a irmã Inés Flores Vázquez. Em junho, fez o retiro de dez dias, na Corunha, e esteve no Porto, no dia 15 de agosto, para o aniversário da Congregação. “Esteve cá também no dia 28 de agosto. Foi a ultima vez que a vi.”
“Era uma irmã Serva de Maria que estava a cuidar da sua mãe”, descreve a responsável pela Congregação. Mas, ainda assim, não deixou de continuar a ajudar outros doentes. “Ela estava a cuidar da mãe e, naquilo que o tempo lhe permitia, ajudava, não no formalismo institucional, mas conforme podia: doentes, pessoas com toxicodependência, sem abrigo ou quem precisasse de um médico, de uma roupa ou de uma refeição”, lembra o padre Álvaro Rocha. Um desses doentes era a mãe do homem que, agora, é suspeito de a ter assassinado.
O trabalho da irmã Tona sempre levou o amigo Luís Monteiro a questionar: “Como é que é possível uma pessoa dedicar-se uma vida inteira a estas pessoas?”.
“Ai, mas eu não tenho nada para dizer”. Irmã Tona hesitou, mas acabou por dar uma entrevista — três dias antes de morrer
Do princípio ao fim da entrevista, respondeu a todas as perguntas “com o mesmo sorriso” — a sua marca. “Até a andar de mota estava sempre a sorrir”, disse ao Observador o jornalista António Gomes Costa, que a entrevistou para o jornal O Regional, três dias antes de a irmã Tona morrer. Quis entrevistá-la porque se apercebeu que “a cidade não conhecia a sua história” e “tudo o que fazia e fez” por ela. Também porque o facto de andar de lambreta “despertava alguma curiosidade”. E, claro, por ser uma “freira radical”.
A irmã Maria Antónia revelou-lhe que fazia “um esforço” para ser radical e moderna. Mas alertou: “Olhe que já tenho 61 anos” — 61 anos que não a impediam de ser uma utilizadora assídua do Facebook, onde partilhava várias fotos suas, do seu quotidiano e dos trabalhos manuais que ia fazendo. Fazia-o, até, com algum humor — como quando decidiu aderir à moda das montagens de selfies com famosos e incluiu Cristiano Ronaldo na sua foto de perfil.
O seu foco, porém, era estar mais próxima dos outros. “Acho que é uma ferramenta importante que é preciso saber utilizar de modo a não ficarmos totalmente dependentes dessas redes sociais”, defendeu.
Quando recebeu o convite de António Gomes Costa, hesitou. “Ai, mas eu não tenho nada para dizer”, disse, segundo recorda o jornalista. Mas acabou por ter muito para contar. Admitiu que, como todos os pecadores, já pecou e que não concorda que os padres casem: “Quando fazem a opção de serem padres, já sabem que não podem casar e isso permite-lhes estarem mais livres e disponíveis aos outros, para exercer o seu ministério”. Lamentou que muita gente pense que as freiras passam o dia a rezar e admitiu ter pena que poucos saibam” verdadeiramente em que consiste a maravilha da vida religiosa”. Sobre o Papa Francisco, considerou-o “único” e “um fenómeno que o Espírito Santo ofereceu à Igreja”.
Sobre o seu próprio trabalho, disse acreditar que as pessoas não reconheciam o seu esforço enquanto cuidadora — “Só quem pratica esse tipo de ações é que sabe o quanto custa e dar o devido valor”, apontou —, mas sublinhou que, ainda assim, se sentia uma pessoa acarinhada em São João da Madeira: “Graças a Deus, sim!”.
A entrevista foi publicada na quinta-feira, dia 5 de setembro. “Estou ali em duas grandes fotografias”, chegou a dizer ao jornalista. Este domingo, viria a aparecer novamente no jornal: a freira foi encontrada morta na casa de um homem registado no banco de toxicodependentes — os mesmos que ajudava no concelho de São João da Madeira.
Freira encontrada morta na casa de ex-recluso. Suspeito está detido
O suspeito já tinha cumprido parte de uma pena de 16 anos por dois crimes de violação e estava em liberdade condicional desde maio. Em agosto, terá atacado e tentado violar uma rapariga de 20 anos, no Lugar de Parrinho, também em São João da Madeira. No dia 3 de setembro — cinco dias antes de ter alegadamente matado a irmã Tona — o Ministério Público tinha emitido um mandado de detenção.
Bispo do Porto presidiu o funeral. “A irmã era uma presença solidária e cristã” e foi vítima de um “crime hediondo”
A irmã Inés Flores Vázquez recebeu uma chamada da família da irmã Tona na manhã de domingo.” A irmã, a irmã de sangue, ligou-me para dizer que há várias horas não a encontrava. Que tinha ido à missa e não tinha voltado. E perguntou-me se, por acaso, por qualquer coisa, ela estaria por cá”, recorda ao Observador. Mas não estava. “Normalmente, quando ela vem ao Porto, avisa, deixa a comida para a mãe, liga para cá. E até comentava: ‘Deixei tudo preparadinho, vamos ver se ela come’.”
Um hora e meia depois, uma nova chamada: “Ligaram para dizer que a tinham encontrado…”. A responsável pela Congregação Servas de Maria Ministras dos Enfermos não quis acreditar e foi insistindo: “‘Como é que sabem que é ela? Têm de se certificar que é realmente ela’. Mas a irmã Maria Antónia tinha o cartão de cidadão consigo.”
Confirmou-se o pior cenário. Inés Flores Vázquez não tem lido notícias sobre o crime porque só quer saber o resultado da autópsia pela polícia. Para já, a investigação da Polícia Judiciária concluiu que o suspeito conseguiu que a freira entrasse em sua casa para lhe oferecer um café, uma forma de agradecimento por lhe ter dado boleia de carro até ali. O homem terá aplicado “um golpe de estrangulamento denominado mata-leão que terá sido a causa da morte”. A violação terá acontecido depois.
A Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP) condenou “a forma violenta e incompreensível do cruel assassinato” e as “circunstâncias algo estranhas” em que aconteceu. Numa nota publicada no site, a CIRP apontou ainda que a irmã Tona “derramou o seu sangue pela remissão dos pecados da Humanidade”. A Câmara de São João da Madeira também aprovou por unanimidade, na sua reunião desta terça-feira, um voto de “profundo pesar pelo trágico falecimento” da irmã Maria Antónia, no qual realça a “importância do trabalho humanitário e a dedicação aos mais fragilizados”.
O funeral realizou-se esta quarta-feira. As cerimónias fúnebres começaram de manhã, em São João da Madeira, onde esteve presente o monsenhor Amaury Medina Blanco, representante do Papa em Portugal, que discursou para centenas de amigos e conhecidos. “A irmã Tona preferiu a morte a ter de renunciar aos seus votos religiosos“, apontou. À tarde, houve outra cerimónia na Paróquia do Carvalhido, no Porto, presidida pelo bispo do Porto, Manuel Linda. “Trata-se de um momento de consternação por causa da morte da nossa irmã Tona, provocada por um crime hediondo“, disse o bispo. A freira foi enterrada no Cemitério do Prado do Repouso, na campa Servas de Maria Ministras dos Enfermos.
O suspeito foi detido de imediato e terá confessado o crime ao juiz de instrução. Agora, aguarda os próximos passos judiciais em prisão preventiva. Apesar do que aconteceu, a irmã Inés Flores Vázquez vê-o como uma “pessoa doente e pecadora que precisa de perdão de Deus” porque “é um irmão”. “Temos de pedir muito por ele. Temos de perdoar, não é?”