A dívida pública portuguesa deverá nesta sexta-feira deixar de ser considerada “lixo” por uma das três maiores agências de “rating”, a Fitch. Em rigor, o que os analistas acreditam é que a notação de risco será melhorada para um nível que corresponde a um “investimento de qualidade”, em oposição à classificação de “investimento especulativo” que o atual “rating” confere à dívida nacional. A confirmar-se, o que pode mudar na vida do Estado e das empresas e famílias portuguesas?
BB+. É neste patamar que a agência Fitch classifica o risco da dívida pública. É um “rating” que, na nomenclatura da terceira maior agência a nível mundial, designa “uma vulnerabilidade elevada a risco de incumprimento, particularmente no caso de haver alterações adversas nas condições empresariais ou económicas”. Por outras palavras, há um risco de que o emitente, neste caso o Estado português, não pague a dívida, apesar de haver alguma “flexibilidade” que torna um pouco menos provável que isso aconteça. Por definição, os “ratings” são uma opinião de um conjunto de analistas sobre a capacidade e a vontade de um Estado ou de uma empresa cumprir com os seus compromissos.
“É provável, ainda que não seja um dado adquirido” que a Fitch suba sexta-feira a notação de Portugal, diz ao Observador Lyn Graham-Taylor, analista de mercado de dívida pública do Rabobank, em Londres. Já na sexta-feira, também David Schnautz, do Commerzbank, apostava que “a Fitch deverá ser a primeira das ‘três grandes’ a colocar a dívida portuguesa, de novo, em ‘investimento de qualidade'”. Uma opinião partilhada por Alessandro Giansanti, especialista do ING, que acredita que “é muito provável que a agência reveja em alta o ‘rating’ de Portugal, depois de uma conclusão bem sucedida do resgate financeiro” pedido pelo Estado em abril de 2011.
Foi precisamente aí, durante o programa de ajustamento da troika, que as várias agências de “rating”, não só a Fitch mas também a Moody’s e a S&P, agravaram a “nota” dada à dívida nacional de forma sucessiva. A Moody’s foi a primeira a despromover a dívida portuguesa para um nível conhecido na gíria dos mercados financeiros como “junk”, ou “lixo”. Foi a 5 de julho de 2011, poucos dias depois da tomada de posse do governo liderado por Pedro Passos Coelho. Em novembro viria o corte de “rating” da Fitch e em janeiro do ano seguinte – 2012 – também a norte-americana S&P baixaria a notação de risco de Portugal para “investimento especulativo”.
Voltar ao “radar” dos (grandes) investidores
Para a dívida pública portuguesa, esta é uma designação que limita o número de investidores, tornando mais difícil (e mais caro) para o Estado obter financiamento nos mercados internacionais. Boa parte dos fundos de pensões e das seguradoras, tradicionalmente os maiores investidores em dívida pública, estão impedidos pelas suas próprias regras internas de aplicar liquidez em ativos com “rating” inferior a um determinado patamar. Frequentemente, a “linha” é traçada entre aquilo que as agências consideram “investimento especulativo” e “investimento de qualidade”.
A notação da Fitch está apenas a um nível de passar a “investimento de qualidade”. Mas mesmo que a agência, detida por capitais norte-americanos e franceses, decida melhorar o “rating” na sexta-feira, muito pouco irá mudar na facilidade com que o Tesouro português atrai esses fundos de pensões e seguradoras. A Fitch é apenas a terceira maior agência e das duas mais importantes, a Moody’s e a S&P, não se espera uma promoção ainda durante este ano.
“A agência Fitch, que é tendencialmente a menos exigente das três grandes agências em relação a emitentes soberanos, poderá ser a única a rever em alta, no curto prazo, o ‘rating’ português”, afirma Diogo Teixeira, administrador da gestora Optimize Investment Partners, em Lisboa. “A S&P e a Moody’s poderão aguardar por um regresso a um crescimento mais firme da economia portuguesa para rever as suas avaliações”, receia o especialista. A Moody’s tem, tal como a Fitch, a notação de risco de Portugal em um nível abaixo de “investimento de qualidade”, ao passo que na S&P o “rating” está dois patamares abaixo.
É certo que a Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP) tem conseguido atrair alguns fundos de pensões e seguradoras – estes investidores tomaram 13,2% das obrigações a 15 anos que o Tesouro emitiu em setembro –, mas enquanto o “rating” não sair de “lixo” também nas outras agências, será sempre limitada a margem de manobra destes fundos para “apostar” na dívida portuguesa. É que, no melhor dos casos, estes estão autorizados a investir uma pequena porção dos seus recursos em instrumentos com maior risco ou, em rigor, maior risco percecionado pelas agências de “rating”.
E há outra questão: se o “rating” melhorar, a dívida portuguesa acabará por voltar a fazer parte dos principais índices de dívida pública. Os participantes no mercado de dívida pública – tal como, de resto, nas ações – investem de acordo com um determinado índice. Compram títulos na medida correspondente ao peso desse ativo na composição do índice, ou seja, replicando-o. Em alternativa, nos chamados “fundos de gestão ativa”, os investidores adotam estratégias próprias de “apostar” mais num ativo do que noutro, “fugindo” aos pesos relativos que o índice determina. Isto para “bater” o índice, isto é, ter um desempenho superior a este.
Com os sucessivos cortes de “rating”, a dívida portuguesa deixou, sequer, de integrar os principais índices. E mesmo que a Fitch retire, na sexta-feira, a dívida nacional de “lixo”, isso não deverá alterar-se. “A alteração de ‘rating’ por apenas uma das três grandes agências não é, geralmente, suficiente para os investidores considerarem a divida como “investimento de qualidade’”, explica Diogo Teixeira, da Optimize. É que alguns índices utilizam a média entre as três agências e outros utilizam a melhor classificação mas recorrem apenas às duas maiores agências, a Moody’s e a S&P. Em ambos os casos, nada feito, para já.
Juros estão a baixar demais?
Enquanto o “rating” limitar o IGCP a trabalhar “nas franjas” destes fundos de pensões e seguradoras, o Tesouro português continuará a ter como principais financiadores as gestoras de ativos, que compraram dois terços dos títulos emitidos na operação de financiamento a 15 anos realizada no início de setembro. Estes investidores tendem a ser mais voláteis, isto é, “apostam” normalmente num título de dívida não com a expectativa de o conservar até ao reembolso final (e receber os juros periódicos) mas com a intenção de o vender a um preço mais elevado a outro investidor, muitas vezes pouco tempo depois da compra.
Estes investidores, atraídos pelas rendibilidades comparativamente elevadas que a dívida portuguesa ainda oferece, têm uma maior tendência a “despachar” os títulos no mercado à mínima instabilidade, o que torna a dívida portuguesa mais propensa a picos de volatilidade: outra coisa pela qual os fundos de pensões e seguradoras não têm o mínimo apreço.
O facto de o “rating” estar em “lixo” não tem impedido que o Estado se tenha conseguido financiar até agora, conseguindo cumprir o desejado “regresso aos mercados”. E os juros estão nos níveis mais baixos desde a criação da zona euro. Mas os especialistas receiam que à medida que os juros descem para o Estado (e, visto de outra forma, se reduzem as rendibilidades para os investidores), a dívida portuguesa pode tornar-se pouco atrativa para as gestoras de ativos. Esse efeito só não se tem feito sentir porque também as alternativas (como a dívida de países como a Alemanha ou França) estão a pagar juros cada vez menores, com o mercado a antecipar mais medidas de estímulo monetário por parte do Banco Central Europeu.
Ainda assim, é por essa razão que o IGCP tem vindo, sobretudo desde o início deste ano, a aumentar a pressão sobre as agências para que estas melhorem o “rating” de Portugal. No fundo, para que uma eventual subida do “rating” ajude a fazer a transição para a próxima fase do regresso aos mercados, isto é, um acesso regular não só às gestoras de ativos (predominantemente) mas também aos “bolsos fundos” dos fundos de pensões e seguradoras. Já em abril, João Moreira Rato, na altura presidente do organismo, dizia que esta questão “pode condicionar o apetite dos investidores”. “Estamos conscientes desta questão e vamos continuar a trabalhar de perto com as agências para melhorar o rating’ de Portugal”, garantiu, no Parlamento.
“Perspetiva” positiva leva a “rating” melhor?
A Fitch deverá tornar pública a sua decisão nesta sexta-feira, ao final da tarde, respeitando as novas regras europeias para os “ratings” de emitentes soberanos. Em abril, a agência atribui uma “perspetiva” positiva ao “rating”, o que significa que existe uma probabilidade elevada – ainda que não uma certeza – de que a notação evoluirá numa direção favorável dentro de dois anos após a atribuição da perspetiva. A maioria dos analistas acredita que essa promoção poderá acontecer já nesta sexta-feira.
Diogo Teixeira, administrador da Optimize, diz que “Portugal está ‘no fio da navalha’ em termos de ‘rating’: os pontos a favor de uma revisão em alta como, por exemplo, o excelente comportamento da balança de pagamentos, contrabalançados por outros mais negativos, como o facto de o crescimento económico estar aquém do necessário para estabilizar o peso da dívida pública”.
A agência disse, em abril, que Portugal estava a fazer “bons progressos na redução do défice orçamental, que estão a superar as nossas expectativas” e que “a economia está a recuperar”. A Fitch previu, na altura, um crescimento de 1,4% do PIB em 2014 – o Banco de Portugal baixou quarta-feira a sua previsão para um aumento de 0,9% – e indicou a capacidade da economia nacional de manter um crescimento positivo como um fator crucial para a sua decisão de subir, ou não, o “rating”.
Se a notação de risco da República Portuguesa subir, é provável que a agência replique a decisão para as principais empresas nacionais. “O ‘rating’ de um Estado é muito importante na apreciação do risco dos investimentos em empresas desse país. É, por isso, raro encontrar empresas com notações muito superiores às do respetivo Estado”, explica Diogo Teixeira. Isto acontece porque “os investidores consideram, com razão, que as empresas dependem da boa saúde do Estado para garantir o bom desempenho dos seus negócios”.
Com “ratings” mais elevados, o Estado encontra mais investidores e consegue juros mais baixos para se financiar. Idealmente, a prazo, isso faz baixar o custo médio em juros de um “stock” total de dívida que, nessas condições, também tende a reduzir-se. Resultado: menos necessidade de cobrar impostos para suportar encargos com o pagamento de juros da dívida. Já para as empresas, Diogo Teixeira explica que “a melhoria do ‘rating’ do Estado é um passo necessário para que outras empresas portuguesas, públicas e privadas, possam seguir o mesmo caminho. O que ajudará a reduzir os custos de financiamento de toda a nossa economia”.