“Como falar com o pai, que foi exposto à propaganda do Kremlin?” A pergunta é lançada por Misha Katsurin, no portal “Papa Pover”, ou “Papa, believe me” (Papá, acredita em mim”). Este jovem de 33 anos quer pôr os ucranianos com família na Rússia a pegar no telefone e convencê-los de que a guerra é real, não foi provocada e está a atingir civis.
O objetivo pode parecer redundante, quando as imagens de uma Ucrânia destruída ocupam, quase em permanência, canais de televisão, rádios e jornais, mas Katsurin sabe, por experiência própria, que não é assim. Há 11 milhões de familiares de ucranianos a viver Rússia, e muitos não acreditam na dimensão violenta da invasão. Aconteceu com o pai de Misha.
“Quando lhe comecei a contar como estão as coisas com a minha família, que tínhamos acordado com bombardeamentos, que peguei no meu filho de oito meses e tentei fugir, salvar a minha família, ele começou a discutir comigo. Disse ‘Não, não, não, as coisas não são assim’. Disse-me que a Rússia começou uma operação pacífica e que nos estão a tentar salvar do regime nazi que ocupou o nosso país. O mais interessante foi dizer que os soldados russos estão a dar comida e roupa quente aos locais. Foi o que ele viu na televisão.” A conversa, que Misha relatou à CNN, não acabou bem, com o filho, exasperado, a desligar o telefone ao fim de cinco minutos.
STUNNING: "No no no, it's not like this."
–Ukrainian Misha Katsurin on what his father in Russia said when he called to tell him the Russians were bombing him. The deep reach of Russian propaganda. pic.twitter.com/M3DxMy4ZJe
— John Berman (@JohnBerman) March 9, 2022
“Ele não conseguia acreditar nesta realidade. Eles vivem noutra realidade”, desabafou.
Depois desta conversa, Misha fez um post no Instagram, acompanhado de uma foto dele com o pai. “Goebbels teria apreciado: o meu próprio pai não acredita em mim”, numa alusão ao ministro da Propaganda de Hitler. “O meu próprio pai não acredita em mim, sabendo que estou aqui e vejo tudo com os meus próprios olhos. Nem acredita que a minha mãe (a sua ex-mulher) está escondida com a minha avó na casa de banho por causa dos bombardeamentos.” A publicação foi partilhada 135 mil vezes.
Os milhares de comentários fizeram Misha perceber que este não é um problema exclusivo da sua família. “As pessoas diziam ‘A minha mãe não acredita em mim, a minha irmã não acredita em mim, o meu tio não acredita em mim’. Percebi que isto era um problema enorme”, explica.
Foi assim que nasceu o “Papa Pover”, uma espécie de portal de auto-ajuda, para apoiar os que passam por este processo de convencimento, que pode revelar-se doloroso e frustrante, e facilmente resultar em violentas discussões e cisões familiares.
“Liguem aos vossos entes queridos na Rússia. Há 20 anos que lhes mentem”, lê-se logo no cabeçalho. Segue-se um guia passo-a-passo do que dizer — ou, aliás, que ideias refutar. Em resumo: não há genocídio da população russa na Ucrânia, o nazismo na Ucrânia é um mito do Kremlin, há uma guerra a acontecer no país com milhares de mortos, inclusive civis, que foi lançada pela Rússia.
A página insiste uma e outra vez na importância da moderação e da partilha da verdade, sempre sem elevar a voz. “Depois de ouvir, partilha calmamente os factos. Pede-lhes para verem pelo menos um vídeo que lhes enviaste. Discute o assunto. Não grites, não te enchas de ódio, a verdade está do teu lado”, pode ler-se.
O crime das “notícias falsas”
Após um choque inicial, Misha tentou compreender que a reação do pai é um reflexo do panorama mediático russo, onde quase só há espaço para a versão do Kremlin — RT e Sputnik foram recentemente proibidos na União Europeia por serem considerados mais órgãos de propaganda do que comunicação social.
Apesar do controlo nos media estatais, os russos tinham outros meios de obter informação: jornais e televisões independentes e serviços em russo de media estrangeiros a operar no país. Mas uma nova lei, que entrou em vigor no passado fim-de-semana, veio, na prática, criminalizar o jornalismo livre. Pelo menos, é assim que os profissionais da área a entendem. Agora, as chamadas “notícias falsas” podem resultar em multas e penas de prisão de até 15 anos, sendo que uma notícia pode ser considerada falsa se usar o termo “guerra” para se referir à “operação militar especial” na Ucrânia, ou se incluir qualquer expressão que “desacredite” a imagem do exército. Vários media independentes russos suspenderam de imediato as suas operações, incluindo o canal Dozhd, a rádio Echo of Moscow, e o prestigiado jornal Novaya Gazeta. E também media estrangeiros em russo optaram por temporariamente fazer o mesmo.
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A juntar a este panorama mediático, redes sociais como o Facebook, Twitter, Instagram e Youtube, muito usadas para a partilha de notícias, foram bloqueadas no país, deixando os russos ainda mais no escuro.
“Percebi que tinha de estar calmo e ser inteligente. E ligar-lhe várias vezes. Neste momento, os familiares são o único meio para eles acederem ao outro lado da informação”, explica Misha.
“Pai, ninguém nunca me oprimiu”
Segue-se então outra conversa, com Misha determinado em ser construtivo. “Estou um pouco chocado desde a última vez que falámos, porque somos família, tu és meu pai, eu sou teu filho. Estou a ligar-te para te contar o que se passa na minha vida e no meu país. São coisas que vejo com os meus próprios olhos, mas tu não acreditas em mim. Isto é uma loucura, é errado, e gostava de retomar o diálogo, para que me oiças e compreendas”, diz o filho, numa conversa telefónica gravada e disponibilizada no Youtube.
Misha elenca uma série de argumentos, começando pelo da ausência de fontes de informação independentes na Rússia. O pai diz que vai “ ter em consideração” o que filho lhe diz. Próximo passo: “Acreditas mesmo que nazis estão no poder aqui e oprimem os cidadãos falantes de russo?” Desta vez, o pai já não deixa passar e afirma que, na Ucrânia, “os jovens são ensinados a odiar os russos”, proíbem o ensino do russo nas escolas, e são, no geral, oprimidos. “Assisti a isso quando vivi na Ucrânia. E estás tu a contar-me histórias…”
Mas Misha não desarma. “Pai, ninguém nunca me oprimiu em Berdiansk, na Ucrânia ocidental, ou em Kiev. Além disso, falo com um sotaque russo (…), nunca ninguém me dirigiu uma palavra feia. Não há nazis aqui”, garante, com a calma que não conseguiu manter no primeiro telefonema.
Seguindo o argumentário do Kremlin, o pai culpa então os Estados Unidos pelo conflito, dizendo que “metem o nariz em tudo”, incentivam os “irmãos eslavos a matarem-se uns aos outros” e bombardearam já vários países. Misha contra argumenta: “Os Estados Unidos bombardearam a Síria, e a Rússia está a bombardear a Ucrânia, sob os mesmos pretextos falsos (…). Diz que a Ucrânia está sob um horrível regime nazi e que os ucranianos têm de ser salvos”.
Por esta altura da conversa, o pai começa a ceder, e muda de tema. “Como está a avó?”, pergunta. “Mal. Não sai de casa porque Berdiansk está ocupada. Passam a maior parte do tempo sentados na casa de banho, já que é o sítio mais seguro durante um bombardeamento. Todas as manhãs a avó tem de ir ao hospital, para receber (medicação) intravenosa, e apesar de eu lhe pedir para não ir, a avó insiste, e a mãe leva-a, passando pelos tanques, pelos soldados russos e chechenos. Assustador para caraças”, responde-lhe o filho.
Neste ponto, Misha, empresário da restauração, fala durante vários minutos seguidos. Conta ao pai a história do amigo, chef, que ficou fechado na cave de casa, em Hostomel, com a família, “sem sinal de telefone, com pouca água e comida”, e sem poder sair “por causa dos bombardeamentos constantes”. Mesmo que arriscasse ir à rua, diz, pouco havia nas mercearias, que tinham sido pilhadas pelos esfomeados soldados russos. Quando o amigo finalmente conseguiu sair, disse: “Misha, nunca vi tantos corpos, nem nos filmes”.
Misha continua a partilhar relatos de guerra com o pai, agora sobre Kharkiv, onde está a família da sua mulher, Dasha. “Posso mandar-te uns vídeos, vais ficar horrorizado. Os mísseis atingem os edifícios, tal como nos filmes de ação. Percebo que os russos, que recebem uma imagem diferente através da televisão nacional, não acreditam nisto. Caramba, nem eu acredito nisto. É surreal ver isto tudo”, desabafa.
A família de Dasha estava há vários dias num abrigo. “Ao quarto dia, enviaram uma mensagem à Dasha a pedir-lhe para encontrar um terapeuta infantil porque a filha deles estava a chorar há cinco horas seguidas, ninguém a conseguia acalmar, ela estava tão assustada”, relata.
Finalmente, e perante esta onda de informação, o pai cede: “Acredito em ti, Misha, estou tão preocupado”. Os dois trocam palavras de amizade e entendimento, mas então o pai faz uma proposta que reflete um fosso na compreensão entre os dois. “Estou a pensar, se não tens um sítio para ficar podes vir para aqui”, sugere, abrindo as portas de casa, na cidade russa de Nizhny Novgorod.
“Não, pai, nunca vamos para a Rússia, a não ser que o regime atual seja deposto”, responde o filho. “Bom, já te contei tudo”, remata. A conversa telefónica, ilustrada por uma fotografia de um Misha ainda em criança, encostado a um pai mais jovem, com uma robusta cabeleira encaracolada, termina em sucesso. Este pai, tudo indica, voltou a acreditar no filho: “Compreendo sinceramente os teus sentimentos e estou muito preocupado contigo. Que Deus te abençoe, cuida-te.”