Resgates de contratos de concessão, acordos com privados interrompidos e pagamentos suspensos, pedidos de reequilíbrio financeiro e processos arbitrais. Tudo isto resulta em consequências financeiras que não é possível quantificar. Estes são alertas deixados na certificação das contas de 2018 da Infraestruturas de Portugal devido à incerteza jurídica que rodeia os contratos de subconcessões rodoviárias em regime de parceria público privado (PPP) entre a empresa pública e os vários grupos privados. Na origem deste quadro está uma decisão do Tribunal de Contas, conhecida em junho do ano passado, mas cujas implicações jurídicas e financeiras estão longe de estar clarificadas e que podem ser pesadas para o Estado.
Tal como o Observador tem vindo a noticiar, a recusa de visto pelo Tribunal de Contas à renegociação do contrato de subconcessão do Algarve Litoral, responsável pela requalificação da Estrada Nacional 125 no Algarve, lançou uma espiral de dúvidas jurídicas e financeiras sobre outros acordos de renegociação destes contratos que tinham sido anunciados pelo anterior Governo com o objetivo de reduzir os encargos do Estado e que estavam já a produzir efeitos nos pagamentos a privados.
A Infraestruturas de Portugal recorreu desta recusa de visto para o plenário do Tribunal de Contas, mas até muito recentemente este recurso não tinha sido decidido. Mantendo-se em aberto as dúvidas jurídicas, a empresa que gere as estradas em nome do Estado tomou algumas precauções para evitar executar contratos, e sobretudo despesas, que pudessem vir a ser considerados ilegais sem o necessário visto do tribunal. Entre essas precauções esteve a suspensão de pagamentos, pelo menos parcialmente, devidos ao abrigo de alguns contratos cuja legalidade está no limbo.
A situação afeta, para além do Algarve Litoral, cujos pagamentos foram totalmente suspensos, mais seis subconcessões: Baixo Alentejo, Pinhal Interior e Transmontana — cujos contratos renegociados já tinham um acordo final — e as subconcessões Baixo Tejo, Litoral Oeste — em relação às quais já existiam memorandos de entendimento — e o Douro Interior, cujo acordo ainda não estava aprovado.
“Não sendo ainda conhecida a decisão do Tribunal de Contas relativamente ao recurso apresentado, e na eventualidade de esta ser desfavorável às pretensões da Entidade (Infraestruturas de Portugal), persistem dúvidas sobre as consequências daí decorrentes, dado que, pelo menos em alguns dos casos, não será possível executar integralmente os contratos não renegociados, podendo daí resultar a inevitabilidade do resgate de alguns dos contratos, a ocorrência de novos processos negociais ou, eventualmente, o recurso a processos de arbitragem que venham a ser despoletadas por algumas das subconcessionárias, com consequências financeiras para a Entidades — e também para o Estado, que é o dono da IP cujas contas pesam no défice público — que não é possível quantificar”.
Este parágrafo faz parte de uma ênfase na certificação legal de contas de 2018 da IP, documento que foi divulgado esta terça-feira à noite na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e onde a gestão da empresa liderada por António Laranjo descreve com detalhe a situação de incerteza jurídica, bem como as potenciais consequências que levaram a IP a cortar em 47,2 milhões de euros os pagamentos a estas concessionárias, por cautela jurídica, motivando a abertura de pedidos de reequilíbrio financeiro por parte dos privados.
Não obstante o cenário de pesadas “consequências financeiras” para o Estado — que, segundo dados recolhidos pelo Observador no passado, podem ascender a várias centenas de milhões de euros, o nó górdio nas PPP rodoviárias tem estado afastado do debate político e até das notícias, cujas atenções estão neste momento viradas para outras PPP, as da saúde, mais por motivos ideológicos — as divergências entre o PS e o Bloco sobre a lei de bases da saúde — do que por preocupações sobre a situação financeira do Estado. Até porque as referidas consequências financeiras no caso das PPP rodoviárias poderão demorar anos a materializar-se. O tema nem sequer foi aflorado na primeira audição parlamentar de Pedro Nuno Santos, que substituiu Pedro Marques nas Infraestruturas.
Mas afinal o que está em causa?
Em junho de 2018, o Tribunal de Contas recusou dar visto prévio a um acordo de revisão do contrato de subconcessão rodoviária do Algarve Litoral, depois de ter indeferido pedidos de visto para outros contratos renegociados ainda pelo anterior Governo e cuja principal alteração era a redução do investimento a fazer pelos privados e que seria pago pelo Estado. O Ministério das Infraestruturas anunciou que a Infraestruturas de Portugal ia recorrer para o plenário do próprio Tribunal de Contas.
Tribunal recusa visto à revisão do contrato da Estrada Nacional 125
Esta decisão, inédita em renegociações contratuais feitas com a finalidade de baixar os custos do Estado, desencadeou um processo em cascata que é descrito no relatório e contas da IP e cujas implicações ninguém parece conseguir prever:
- Desta situação resultou uma divergência entre a IP e a concessionária do Algarve Litoral quanto ao contrato em vigor e respetivas obrigações, o que levou à suspensão por parte da operadora das atividades de operação e manutenção, logo em julho de 2018. Esta situação levou a ter de assegurar as condições de segurança de pessoas e bens. A concessionária retomou parcialmente a atividade, mas há intervenções, nomeadamente em situações de emergência e de garantia de condições de segurança rodoviária, continuam a ser assumidas pela IP.
- A suspensão das negociações ainda em curso para um acordo de redução de custos nas subconcessões do Baixo Tejo — que gere a A33 (Montijo/Caparica) e o IC20, e a Litoral Oeste — que explora a A19, ligação entre a A1 e a A8 e A17, ainda que nestes casos já tivesse sido obtido um acordo para reduzir pagamentos futuros. Em resultado, caducaram os memorandos de entendimento assinados no tempo do Executivo PSD/CDS, o que do ponto de vista jurídico implicava o regresso ao contrato original, a versão revista que foi visada pelo Tribunal de Contas.
- Mas pelo menos no caso da concessão Baixo Tejo foi comunicada a impossibilidade de prosseguir com a construção e operação de troços previstos, porque a DIA (Declaração de Impacte Ambiental) caducou, em resultado do qual a concessionária avançou com um pedido de reequilíbrio financeiro por não ter as receitas necessárias para financiar o projeto definido no contrato inicial.
- No que diz respeito aos contratos renegociados das subconcessões Baixo Alentejo, Pinhal Interior e Autoestrada Transmontana, em relação aos quais o Tribunal de Conta emitiu despacho de “indeferimento liminar” aos pedidos de visto prévio, a IP decidiu suspender os pagamentos às concessionárias no final de agosto.
- Mas, perante a demora do tribunal em apreciar o recurso, a empresa decidiu em novembro retomar, ainda que de forma parcial, o pagamento a estas subconcessões.
- Na sequência desta cadeia de eventos, as concessionárias afetadas avançaram com quatro pedidos de reequilíbrio financeiro, sobretudo para exigir juros de mora por atraso no pagamento da remuneração que foi suspensa em agosto na sequência da recusa de visto ao Algarve Litoral.
- Foram igualmente suspensas as negociações com a subconcessão do Douro Interior em relação à qual não tinha ainda sido assinada a versão renegociada do contrato, que estava para assinatura do Governo.
Como é que a recusa de visto de um contrato contagia outras concessões
A IP justifica estas repercussões face à recusa de visto a um contrato com a “contaminação” dos outros contratos — porque tiveram o mesmo percurso jurídico e financeiro, que está muito longe de ser linear.
Os sete contratos foram assinados entre 2008 e 2009, na vaga de novas concessões rodoviárias lançadas pelo Governo de José Sócrates, que apanhou os efeitos da crise financeira. Quando foram remetidos para visto ao Tribunal de Contas, este recusou porque as condições finais aceites pelo concedente, neste caso a IP, em representação do Estado, eram piores do que a proposta inicial, para acomodar o aumento dos custos financeiros.
Em 2010 é encontrada uma solução pela Estradas de Portugal (antecessora da IP) para ultrapassar a recusa do Tribunal de Contas que repôs as condições financeiras originais, mas no pressuposto de que seria possível ao longo dos anos da concessão refinanciar os contratos em condições vantajosas. Ficaram em anexo as famosas side letters, prevendo pagamentos contingentes que assegurariam aos bancos as condições de remuneração dos contratos inicialmente recusados. Mas uma auditoria do Tribunal de Contas veio um ano depois acusar a IP de ter escondido estes acordos paralelos quando apresentou os contratos revistos para obter o visto prévio — por isso, considerou ilegais quaisquer pagamentos ao abrigo dessas cláusulas paralelas.
“Com efeito, poderá depreender-se daquele acórdão que, no entendimento do Tribunal de Contas, os contratos renegociados contemplavam a inclusão nos pagamentos futuros a efetuar às subconcessionárias, as designadas remunerações contingentes, que aquele tribunal entendeu anteriormente na sequência de uma auditoria, realizada em 2011, que não seriam devidas às subconcessionárias, razão pela qual nunca foram aceites ou pagos pela empresa, muito embora constassem dos respetivos casos base, que constituem anexos aos contratos de subconcessão, o que, prevalecendo este entendimento, poderá ser suscetível de contaminar os contratos já renegociados, designadamente os contratos das subconcessões Pinhal Interior, Autoestrada Transmontana, Baixo Alentejo, ou em renegociação“.
PPP rodoviárias custaram 1191 milhões em 2019. Compensações a privados dispararam
Os encargos da Infraestruturas de Portugal com as parcerias público privadas (PPP) ascenderam no ano passado a 1191 milhões de euros, sem IVA, um valor que corresponde a quase 100% do orçamento para 2018, apesar da suspensão dos pagamentos à subconcessão Algarve Litoral. Este valor é apenas um aumento de 1,1% face à despesa da empresa em 2017 com estes contratos, mas representa uma inversão da descida de custos verificada entre 2016 e 2017. Este é o primeiro valor conhecido sobre os encargos com as PPP rodoviárias em 2018, porque a unidade responsável por fiscalizar esses encargos, a UTAP, não tem divulgado que os relatórios previstos no quadro legal que a criou Unidade Técnica de Apoio de Projeto.
Segundo a IP, a redução de 47,2 milhões de euros nos pagamentos às subconcessões — concessões lançadas pela IP e não pelo Estado — devem-se precisamente aos efeitos da decisão já referida do Tribunal de Contas em relação ao Algarve Litoral.
Mas se a fatura dos encargos com as PPP pouco subiu, já o custo assumido pela empresa com o pagamento de compensações e reequilíbrios financeiros às concessionárias disparou para 73,8 milhões de euros, dos quais a maior fatia (64,8 milhões) teve como destinatária a concessão de autoestradas da Douro Litoral, cujo controlo tem sido alvo de disputa entre a Brisa e os credores internacionais. Os dados disponibilizados pela IP indicam que, no anterior, essa despesa tinha sido inferior a 10 milhões de euros e o orçamento para 2018 previa um valor da mesma ordem de grandeza.
Outra nota dos resultados é a evolução do conflito fiscal com o fisco por causa do IVA cobrado sobre a contribuição de serviço rodoviário que a empresa entende não dever pagar por se tratar de uma receita própria. A IP reclama a devolução de mais de 1.285 milhões de euros e revela que, em 2018, a impugnação de uma das liquidações adicionais da Autoridade Tributária foi considerada procedente, tendo o fisco recorrido para o Tribunal Central Administrativo do Sul, que indeferiu o recurso, estando neste momento este processo no Supremo Tribunal Administrativo.
A IP registou um resultado de 109 milhões de euros no ano passado, uma queda de 11% face ao ano anterior. As receitas da empresa caíram 1% para 1.185 milhões de euros, apesar de um crescimento dos seus dois principais proveitos: a Contribuição do Serviço Rodoviário pago pelos automobilistas no ISP — 689 milhões de euros — e as receitas com portagens, que cresceram 7% para 316,1 milhões de euros. No ano passado, a empresa recebeu aumentos de capital do Estado de 886 milhões de euros.