Bruno de Carvalho, antigo presidente do Sporting, lança esta sexta-feira o livro “Sem Filtro – As histórias dos bastidores da minha presidência”, escrito em conjunto com o comentador desportivo Luís Aguilar. Na obra, o ex-número 1 dos leões, que esteve cinco anos e meio na liderança do clube, revela alguns dos episódios que marcaram os seus dois mandatos (um completo, um interrompido 16 meses depois da reeleição de 2017), numa era “recheada de episódios – uns difíceis, outros caricatos – com treinadores (como Jorge Jesus e Marco Silva), com jogadores (como Rui Patrício e William Carvalho), com empresários (como Jorge Mendes e Nélio Lucas), com a banca (nomeadamente BES e Millennium BCP), com figuras históricas do Sporting (como José Maria Ricciardi e os elementos do Grupo Stromp), com dirigentes (como Jaime Marta Soares e Frederico Varandas), sem esquecer o ataque à equipa na Academia de Alcochete e a gestão das direções e administrações anteriores”.
No domingo, o jornal Record fez a pré-publicação de parte do capítulo 8, com o título “O estranho mundo de Octávio Machado”, onde Bruno de Carvalho faz algumas revelações sobre a entrada para diretor do futebol do antigo técnico principal e adjunto do Sporting, bem como as conversas que foi mantendo com o agora comentador nos dois anos de convivência em Alvalade – e que mereceram desde logo reação do “visado”. Agora, o Observador publica em exclusivo um excerto do capítulo 6, com o título “Mas eu fui só fazer xixi”, onde o antigo presidente verde e branco explica os contornos da reestruturação financeira, em específico a última reunião mantida nas instalações do BES que teve o final conhecido entre episódios caricatos.
Bruno de Carvalho escreve sobre “o estranho mundo de Octávio” e antigo diretor já respondeu
«Mas eu fui só fazer xixi»
A minha primeira grande batalha como presidente do Sporting foi conseguir realizar uma restruturação financeira que pudesse voltar a colocar o clube no topo do desporto português. Assim que cheguei, deparei-me com um documento elaborado pela anterior direção, juntamente com a banca, que mais não era do que uma mera operação de cosmética. Servia para disfarçar o imediato, mas iria ser ainda pior a médio prazo. Vou mais longe: aquela proposta, caso fosse para a frente, poderia fazer com que o Sporting Clube de Portugal fechasse as portas de vez.
Foi uma luta de cerca de um ano, em negociações muito tensas com o Millennium BCP e com o Banco Espírito Santo (BES), os dois bancos que eram os principais credores do Sporting. Acabou bem, para todas as partes, mas esteve perto de se romper várias vezes. Incluindo num último momento, quando parecia que as principais dificuldades já estavam ultrapassadas.
Depois de muitos avanços e recuos, fui às instalações do BES para ter uma reunião com Joaquim Góis, representante deste banco, e Miguel Maia, pela parte do Millennium BCP. Naquele dia, tínhamos conseguido ultrapassar todos os assuntos mais delicados e preparávamo-nos para assinar um pré-acordo, de modo a que este fosse depois visto pelos advogados das várias partes, para então celebrarmos, em definitivo, o memorando da restruturação financeira. Tudo parecia acordado depois de mais uma reunião que demorou muitas horas. Já só faltava mesmo cumprimentarmo-nos e passarmos à próxima fase. Existia um espírito de satisfação e alívio por, finalmente, termos chegado a um patamar de entendimento que em muitos momentos parecera impossível de alcançar. É então que Joaquim Góis se levanta e diz que tem de ir à casa de banho. Fiquei sozinho com Miguel Maia e o ambiente parecia tranquilo. Mas não por muito tempo.
Miguel Maia resolveu criar uma dificuldade inesperada e totalmente desnecessária naquela altura. Disse-me que o Millennium só assinava a restruturação caso eu me comprometesse a fazer um pedido de desculpas público. Segundo ele, em algumas conferências de imprensa que realizei sobre este tema, tinha dado a entender que a banca estava a ser um empecilho e a pôr em causa, propositadamente, o futuro do Sporting. Revelou também que ele e as pessoas do seu banco não tinham gostado dessas minhas declarações e que, por isso, não havia outra solução a não ser eu retratar-me e mostrar o meu arrependimento diante dos órgãos de comunicação social. Aquilo era um braço de ferro totalmente inusitado. Depois de horas e horas de reunião, de conversa construtiva, de diálogo com vista a um entendimento benéfico para todas as partes, e aproveitando a ida do colega do BES à casa de banho, o representante do Millennium BCP faz uma inesperada exigência de última hora e completamente descontextualizada de tudo o que havíamos discutido até essa altura.
Não aguentei aquela conversa. Agarrei nas folhas do pré-acordo que estavam em cima da mesa e atirei-as para o ar. De seguida, levantei-me e disse-lhe que não tolerava semelhante atitude e desfaçatez contra o Sporting Clube de Portugal: «A restruturação acaba aqui.»
Os ânimos estavam exaltados. Gritos da minha parte. Gritos da parte dele. Palavras duras. É nesse momento que entra Joaquim Góis. Vê as folhas no chão e assiste a toda aquela discussão. Com um ar muito inocente e triste, diz uma das frases que jamais esquecerei: «Mas eu fui só fazer xixi.» Como quem diz: «Quando saí daqui estava tudo bem e agora aconteceu isto.»
Eu disse que me ia embora. Saí daquele espaço e comecei à procura, nas salas ao lado, de alguém que pudesse dar -me um cigarro. Fiquei enervado com toda aquela situação, precisava de fumar, e não tinha levado tabaco. Fui abrindo várias portas até que encontrei uma sala onde estavam cerca de 20 pessoas, incluindo o então presidente do grupo BES, Ricardo Salgado. Ficaram todos a olhar para mim em silêncio e algo receosos porque naquele momento a minha cara não era a mais simpática do mundo.
«Preciso de um cigarro», disse eu. «Alguém tem de me dar um cigarro agora.» Uma senhora olhou para mim, muito a medo, abriu a mala, puxou do maço e estendeu-mo. Agradeci e perguntei onde poderia fumar. Apontaram-me o caminho para um jardim interno. Assim que virei costas e abandonei essa sala, percebi que continuavam todos em silêncio a verem-me ir embora. Cheguei ao jardim, fumei o cigarro e tentei acalmar-me para depois poder voltar à mesa das negociações e ultrapassar aquele obstáculo de última hora. Quando quis regressar, não encontrava o caminho de volta. O meu sentido de orientação é péssimo. Sempre foi.
Estava completamente perdido dentro das instalações do BES quando passei por uma sala e Joaquim Góis viu-me. Achando que me ia embora, ele veio ter comigo e disse-me: «Por favor, presidente, não se vá embora, porque já ficou tudo resolvido com o Miguel. Não precisa de pedir desculpa a ninguém.»
Eu não estava a dirigir-me para a rua, mas, como aquilo era uma negociação importante e a ofensa não tinha sido menor, dei a entender o contrário. «Tem a certeza? É que a situação que se passou foi grave. E eu não vou fazer qualquer pedido de desculpa por causa das chantagens que ouvi ali dentro.» Em suma, não dei o braço a torcer. Até porque não tinha de o fazer. Apresentar uma exigência daquelas, após tantos meses de negociação, depois de toda a saturação que isso provocou nos diferentes envolvidos, só servia para uma reação daquelas. Mas lá voltei a entrar na sala com a garantia de Joaquim Góis de que tudo estava tratado. Só que eu precisava de ouvir isso da boca do próprio Miguel Maia. Ele falou entredentes e eu nem consegui perceber muito bem. «Peço desculpa, mas não ouvi o que o senhor disse», respondi, reagindo ao som abafado que tinha saído da boca de Miguel Maia. Após três tentativas falhadas, ele lá conseguiu dizer, de forma audível, que eu não precisava de fazer qualquer pedido de desculpas ao Millennium BCP e que a situação estava ultrapassada.
Assim que ele disse aquilo, cumprimentámo-nos cordialmente. Como se aquele episódio de grande tensão não tivesse acontecido. Esse é um aspeto interessante das negociações. Podem ser muito duras, mas quando se atinge uma plataforma de entendimento, as pessoas são educadas umas com as outras. Porque, por norma, não há ali nada pessoal. Cada um está a representar a sua instituição e a defendê -la da melhor forma que pode e sabe. E, pela parte que me tocava, esse acabou por ser um dia muito importante na história do Sporting Clube de Portugal. Um momento absolutamente fundamental para a recuperação que o clube encetou a partir daí. Em todos os setores.
Basta recordar que, mais tarde, em 2018, fomos campeões em todas as modalidades excetuando no futebol profissional masculino. Também convém lembrar que, durante a nossa administração, fomos capazes de recuperar modalidades históricas do Sporting, como o hóquei em patins ou o voleibol, e fazer uma forte aposta no projeto paralímpico, que será sempre um dos meus maiores motivos de orgulho do tempo em que fui presidente do Sporting.
Aliás, nesse período, ganhámos sete títulos europeus: três no atletismo, um no hóquei em patins, outro no andebol e um no goalball (modalidade de desporto adaptado). Encontrámos um clube à beira do precipício e com tudo encaminhado para acabar devido à gestão ruinosa de grande parte das direções que nos antecederam. Com esforço, dedicação e devoção, lembrando a base do lema do Sporting, conseguimos uma recuperação histórica. Mas tudo estava preparado para que não fossemos capazes. Para fracassarmos e sairmos mesmo antes de começarmos.