Na acusação da Operação Marquês é possível ver como José Sócrates, Ricardo Salgado, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava se interligavam e as ligações entre a política e os grandes grupos económicos nacionais. Esses mesmos protagonistas são as figuras principais do livro “A Sangue Frio” (Matéria Prima), que é apresentado esta quinta-feira, em Lisboa.
Dois anos depois de ter lançado “Cercado” em 2015 — um livro sobre os vários casos em que José Sócrates esteve envolvido ao longo da sua carreira política –, o jornalista Fernando Esteves publica um novo volume de 304 páginas onde levanta o véu sobre os interrogatórios a que foram sujeitos os vários arguidos na Operação Marquês. O livro organiza-se em cinco capítulos e foca a relação do antigo líder socialista com 13 pessoas envolvidas no processo.
O Observador publica aqui o capítulo sobre Ricardo Salgado, uma peça-chave do processo, que também envolve Zeinal Bava e Henrique Granadeiro.
Ricardo (e Zeinal) (e Henrique)
“Sr.Procurador, (…) estou profundamente chocado. Nunca vi tanta mentira junta.”
Até à queda do universo Espírito Santo, Ricardo Salgado, 73 anos, era conhecido como o Dono Disto Tudo. O seu poder era imenso. No caso Marquês, o Ministério Público acredita que seja ele o alegado corruptor de José Sócrates. Em causa estão dois negócios. O primeiro: a OPA falhada da Sonae à Portugal Telecom; o segundo, o da venda da operadora de telecomunicações Vivo à espanhola Telefónica e posterior entrada da operadora portuguesa no capital da brasileira Oi.
Terça‑feira, 9 de dezembro de 2014
São 9h08 quando Ricardo Salgado entra na sala da comissão de inquérito ao BES. Veste um fato negro clássico, que contrasta com a gravata castanha clara que escolheu para viver o dia mais humilhante da sua vida pública. Os flashes das máquinas fotográficas disparam, numa perfeita harmonia descontrolada, em direção ao ex -líder do BES. Salgado, tantas vezes insondável pelo gelo que quase sempre emanou a partir dos seus olhos azuis -claros, está claramente ferido, debilitado, fragilizado. Os tempos em que era o Dono Disto Tudo são hoje para si uma memória nostálgica. Perdido num turbilhão de suspeitas, vive uma experiência nova: está ali para dar explicações; não para receber atenções.
O banqueiro desaperta o botão do casaco e acomoda-se na cadeira de madeira maciça. Está pronto para se sujeitar às perguntas dos deputados. Mas antes quer fazer uma declaração inicial. À sua frente tem um considerável lote de folhas A4. Estica o braço para alcançar a garrafa de água que lhe disponibilizaram. Dá dois pequenos goles, enche os pulmões de oxigénio e começa: «O leopardo quando morre deixa a sua pele e o
homem deixa a reputação1.»
Quarta‑feira, 18 de janeiro de 2017
Passaram mais de dois anos sobre o vexame a que foi sujeito na Assembleia da República quando Ricardo Salgado entra, logo no início da manhã, no edifício do DCIAP, em Lisboa. O cenário é diferente mas na sua vida pouco se alterou de substancial: continua em estado de desgraça, sob suspeita de crimes que vão da corrupção ativa à fraude fiscal. Nem a indumentária mudou: o agora ex-banqueiro escolheu, uma vez mais, um fato negro e uma gravata castanha para enfrentar o interrogatório mais difícil da sua vida. Prepara-se para ser questionado durante várias horas por Rosário Teixeira e Paulo Silva, a dupla que tem dedicado os últimos anos a promover uma espécie de striptease empresarial e financeiro da vida de Ricardo Salgado, provocando sucessivas ondas de choque na sociedade portuguesa, que se espanta com a lascívia quase pornográfica com que à mesa do ex-líder do BES se falava de milhões como se se discutissem tostões.
Salgado senta-se na cadeira que lhe foi reservada – a mesma em que, há apenas 13 dias, se instalara Hélder Bataglia, o seu ex-amigo e parceiro de negócios em Angola que, num depoimento explosivo, deu toda uma nova atualidade à velha lenda dos castelos carregados de histórias de heroísmo e de fidelidade, mas que nas suas muralhas tinham sempre escondida uma pontinha de traição.
Entre outras coisas, Bataglia garantira que Salgado lhe pediu para, através das suas empresas sediadas em offshore, fazer chegar vários milhões de euros a Carlos Santos Silva, o amigo de José Sócrates que o MP acredita ser seu testa-de-ferro. A revelação foi crucial para sedimentar a mais profunda das crenças de Rosário Teixeira no âmbito da Operação Marquês: que José Sócrates foi corrompido por Ricardo Salgado para, enquanto primeiro-ministro, tomar decisões que renderam muitas centenas de milhões de euros ao GES.
Sentado a cerca de um metro e meio de Salgado, Rosário Teixeira durante 31 minutos dedica-se à leitura, sempre em tom monocórdico, da indiciação contra aquele que já foi o homem mais poderoso do país.
À medida que Rosário avança, Ricardo Salgado alterna entre o choque, a surpresa, o espanto e o horror. Passa a mão pelo cabelo. Tira os óculos para esfregar os olhos, em aparente desespero. É muita coisa junta. É a OPA da Sonae à PT. É o saco azul do GES. São os pagamentos a Carlos Santos Silva. São as transferências milionárias para Zeinal Bava. São os dinheiros para Henrique Granadeiro. É a relação com Hélder Bataglia e
José Sócrates. É…
A dada altura, Salgado deixa de tomar notas do que o procurador vai dizendo. Parece exausto. Põe os cotovelos em cima da mesa e entrelaça as mãos, encobrindo a zona da boca e do nariz. Até que Rosário termina e chega a sua hora de falar. Inspira, expira e, claramente envolto numa nebulosa emocional, inicia um depoimento histórico.
– Sr. procurador, devo dizer que estou profundamente chocado, profundissimamente chocado com tudo isto. Nunca vi tanta mentira junta. Peço desculpa por o estar a afirmar, mas julgo que o sr. procurador já me conhece há algum tempo e sabe que nunca deixei de responder às questões, mesmo quando estava com a faculdade de o poder fazer. Eu vou argumentar na medida do meu conhecimento, uma vez que se trata de operações que já vêm de longa data. Acredito que estou em condições de reverter a totalidade das acusações que estão aqui implícitas.
Confirma-se: Salgado não se refugiará no silêncio. Mas não consegue prosseguir sem uma condição prévia…
– O que lhe ia pedir era um copinho de água porque de facto este choque que sofri merece…
Os trabalhos são interrompidos por alguns minutos, para que, juntamente com os seus advogados Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squilacce, o ex-banqueiro analise a indiciação com mais detalhe. Ao regressar, pede para fazer um statement inicial, como já fizera na comissão de inquérito ao BES.
– Posso ter cometido erros de julgamento, mas não erros de princípios. Não são verdadeiras as afirmações de qualquer tipo de relação de influência no primeiro‑ministro da altura, Eng. José Sócrates, em relação a qualquer operação que fosse. Nunca falei com o José Sócrates sobre a história da PT, sequer. E muito menos procurar entregar valores a um primeiro‑ministro, portanto, subornos, direta ou indiretamente, por qualquer outra forma. Também gostava de referir que ilícitos praticados em relação a administradores da PT por mim ou pelo grupo não foram cometidos.
Não é essa a convicção de Rosário Teixeira, claro. O procurador do MP conhece Ricardo Salgado há muito. Já o apanhou a fugir aos impostos. Já lhe ordenou buscas a casa e ao escritório. Já o interrogou noutros processos. E em todos encontrou respostas feitas de múltiplas incoerências. Não quer protagonizar uma crucificação masoquista de Salgado, até porque não é esse o seu estilo. Mas leva algumas certezas gravadas no
disco rígido do seu portátil.
A OPA falhada da Sonae à PT
Rosário Teixeira acredita que o ex -líder do BES esteve no centro de todas as conspirações para frustrar o sonho já pouco secreto de Belmiro de Azevedo, líder da Sonae: adquirir a PT. A Ricardo não faltavam motivos: o BES era o terceiro maior acionista e controlava a sua administração. Sabia -se que era Salgado quem escolhia as lideranças da empresa. Era o dono sem que o fosse. Miguel Horta e Costa, o CEO entre abril de 2002 e abril de 2006, era seu amigo. Henrique Granadeiro, que viria igualmente a liderar a operadora, também. Na mente de Rosário, a estratégia de Salgado para deitar Belmiro ao tapete assentava em quatro linhas centrais:
– Apoiar a administração da PT na oposição à OPA;
– Persuadir os restantes acionistas a votarem contra a ofensiva da Sonae e financiar acionistas contrários à OPA para que reforçassem a sua participação;
– Financiar novos acionistas com o objetivo de reforçar o voto contra (aconteceu com Joe Berardo e com a Ongoing).
– Se tudo isto falhasse, garantir que José Sócrates bloquearia, através da golden share estatal ou a partir das ações da CGD (que detinha 5,1% da empresa) uma eventual vitória da Sonae. Tudo em nome do interesse nacional que alegadamente representaria manter os centros de decisão em mãos portuguesas.
Na realidade, o medo de Salgado era simples: sabia que a probabilidade de Belmiro de Azevedo vender aos espanhóis da Telefónica os 50% que a PT detinha na operadora brasileira Vivo por cerca de 2 mil milhões de euros era forte. E o GES queria continuar a crescer no Brasil.
Terá sido então que, de acordo com o MP, Ricardo Salgado e José Sócrates combinaram o pagamento de uma quantia através de Hélder Bataglia a dois alegados testa-de-ferro de José Sócrates: o seu primo José Paulo Pinto de Sousa e o seu amigo de sempre, Carlos Santos Silva.
O primeiro alegado pagamento terá acontecido em maio de 2006, apenas três meses depois do fracasso da operação. O valor? Seis milhões de euros. Rosário crê que possui indícios fortes, mas quer dar a oportunidade a Salgado para se explicar.
– Em primeiro lugar ia‑lhe pedir para nos falar dessa questão da OPA sobre a PT. Como é que teve conhecimento dela?
– Senhor procurador, posso‑lhe dizer que este aspeto da OPA à PT é o mais fácil para mim de explicar. Não era necessária nenhuma intervenção política (…) se quisermos fazer um esforço de memória é muito fácil relembrar as informações que saíram na época logo que foi conhecida a OPA, em fevereiro de 2006, em que imediatamente saíram duas afirmações que explicam muita coisa. A primeira é que a OPA não passa e isso era opinião dos média de economia. A segunda é do Paulo Azevedo, que vem referir que a participação da PT no Brasil não é estratégica e diz de caras que a operação no Brasil é para ser cedida.
– Em nenhum momento foi visualizada a possibilidade de a OPA ter sucesso?
– Não. Os acionistas portugueses privados representavam no total cerca de 14% do capital da PT. Os acionistas alinhados, vamos assim dizer. Era o BES, que tinha 8,6%, era a Ongoing, que tinha 3%, era o Berardo, que tinha 2%, eram os minoritários representados por um advogado, que tinham 1%. Portanto estavam ali 14%.
A força de Salgado não se esgotava nos alinhados. Carlos Slim, magnata mexicano das telecomunicações com grandes interesses no Brasil, estava longe de desejar a entrada em força da armada espanhola no mercado brasileiro. Na antecâmara da OPA, veio a Portugal e almoçou com Salgado no hotel Tivoli. Terá sido nesse momento que comunicou ao então líder do BES que os cerca de 4% de capital que representava na PT estavam com ele para o que desse e viesse.
– Com Carlos Slim o grupo alinhado dos portugueses ia a 18%. Nós sabíamos que as assembleias gerais da PT normalmente tinham dificuldade em ter 50% do capital representado. Isto mostra que o grosso dos acionistas da PT estavam no exterior. Portanto, dizer que o BES manipulou essa operação toda em seu benefício é esquecerem‑se que os grandes investidores institucionais sempre estiveram a acompanhar muito de perto a PT e logo por acaso alguns desses investidores também eram investidores no BES.
Rosário não está satisfeito com a explicação ensaiada. Quer mais.
– Mas [junto] desses investidores internacionais, é ou não verdade que foi feita quase uma espécie de roadshow pela administração da PT?
– Mas ó senhor procurador, isso faz parte das regras do jogo… Isso era o papel do Zeinal Bava, que tinha uma excelente relação com os investidores institucionais internacionais.
– E a posição da administração da PT contra a OPA não foi uma decisão que o senhor tivesse apoiado?
– Senhor procurador, eu gostava de tentar… eu hoje em dia não sei se consigo convencer as pessoas da bondade do meu comportamento e do comportamento do Grupo. Nós defendíamos os centros de decisão em Portugal. Eu tinha tido a oportunidade de vender o controlo do BES quando o Santander comprou o grupo do António Champalimaud. E eu disse que não podia vender o controlo de uma instituição a outro banco espanhol. O nosso princípio era de defesa dos centros de decisão em Portugal. Portanto estava contra a OPA porque sabíamos que a Telefónica ia comprar a Vivo.
Na assembleia geral apareceu 66% do capital, bem mais do que o costume. Para chumbar a OPA bastavam 22,2%. Resultado final: 46% dos acionistas presentes chumbaram a operação. Salgado venceu Belmiro por knockout, mas agora, mais de uma década depois, Rosário Teixeira não se intimida com a aparente blindagem argumentativa do ex-banqueiro. Exige mais minúcia.
– É ou não verdade que com investidores como o Berardo, a Visabeira, a Ongoing…
– …A Visabeira julgo que nessa altura ainda não tinha uma participação. Julgo, não tenho a certeza.
– Entrou durante o ano de 2006. Quando chega à assembleia geral já está no capital.
É esse o ponto de Rosário: está no capital, sim, mas financiada pelo BES – e o mesmo aconteceu com Berardo e Nuno Vasconcellos, líder da Ongoing. Salgado tenta desconstruir a narrativa do MP.
– A Ongoing tinha 3% (…) O Nuno Vasconcellos pertence a uma família… para já, o pai do Nuno Vasconcellos, o Luís Vasconcellos, era o braço direito do Francisco Balsemão no grupo Impresa. E o Vasconcellos é Rocha dos Santos do lado da mãe. Eram os antigos donos da Sociedade Nacional de Sabões e portanto tinham capitais e foram investir os capitais (…) Isto para dizer que tinham recursos próprios que lhe permitiam estar nesse posicionamento em relação à PT. Em relação ao Berardo, ele era nosso cliente muito antes disso e o principal financiamento do Berardo foi orientado para as ações do BCP, que na altura tinham bastante valor. Peço‑lhe que acredite: nós tínhamos a certeza que a OPA ia ser chumbada. Nunca falei com o José Sócrates a pedir o que quer que fosse.
Paulo Silva e Rosário Teixeira insistem no tema PT, mas Salgado parece mais interessado em começar a falar de Hélder Bataglia. Sabe o que lhe fez o ex -amigo. Quer deixar bem claro que, à denúncia dos seus supostos pecados, não acrescentará uma confissão – e que substituirá a sua morte anunciada por uma ressurreição laboriosamente arquitetada. Mas, por enquanto, Ricardo Salgado tem de guardar na gaveta a ira contra Bataglia – quem manda no curso do interrogatório é Rosário. E o procurador quer ir por outro caminho.
– Nunca houve o risco de a OPA poder ter sucesso?
– Também não posso fazer essa afirmação categoricamente (…) Se a entidade que lançou a OPA tivesse aumentado o preço eu não poderia responder pelos outros que iriam subscrever ou não.
Para mostrar como os espanhóis eram duros quando iam à guerra, Salgado revela que Miguel Horta e Costa terá mesmo sido aliciado com um convite para administrador da Telefónica caso conseguisse convencer o BES e a PT a passar as ações da Vivo para um veículo que seria posteriormente dominado pela operadora espanhola. Assim que a alegada conspiração chegou ao conhecimento de Salgado, o destino de Horta e Costa ficou traçado.
– O Miguel Horta e Costa, que é uma pessoa que, além de vestir muito bem e ter umas gravatas muito bonitas e umas relações sociais alargadas, estava com a sua imagem de alguma forma denegrida dentro da PT por causa das viagens que fazia para o Brasil, das despesas sumptuárias que tinha no Brasil em festas e outras coisas semelhantes. Não era capaz de pegar um avião da TAP para ir para São Paulo, mas ia apanhar a Air France a Paris e a British a Londres para ir deitado naquelas cadeiras‑cama. E portanto foi convidado a ceder o lugar ao Henrique Granadeiro, que é um administrador extremamente controlado nas despesas.
Com a débâcle da Sonae no bolso, Ricardo Salgado ganhou uma nova força na luta contra a Telefónica. O seu killer instinct dizia -lhe que aquele era o momento de virar a mesa. As parcerias entre a PT e a Telefónica tinham de acabar. O que, a acontecer, significava um par de coisas: a venda da participação da PT na Vivo e a saída da Telefónica da estrutura acionista da PT. Chacun à sa place.
Com a decisão de alienar a Vivo tomada, Salgado terá diligenciado para que a PT contratasse o BES Investimento e a Caixa Banco Investimento para estudarem a viabilidade de a operadora nacional comprar uma participação noutra empresa brasileira de telecomunicações. Depois de muito estudo, os dois bancos concluíram que a única hipótese minimamente viável era a Oi/Telemar. Uma alternativa que viria a revelar -se catastrófica
O sucesso de Salgado rendeu muitos milhões de euros ao BES. Na sequência do spin‑off da PT Multimédia, o Grupo lucrou 165 milhões de euros. Uma fortuna que fez levantar as antenas dos procuradores do MP.
Os investigadores também acharam curioso que as operações financeiras que marcam o início dos supostos pagamentos a Sócrates, Granadeiro e Bava tenham ocorrido no mesmo dia: 9 de julho de 2007, a data em que a ES Enterprises, por alegada ordem de Ricardo Salgado, fez duas transferências complicadas de explicar: uma no valor de 6 milhões de euros para a conta de Henrique Granadeiro no Banco Pictet, na Suíça; outra de 7 milhões de euros para a Markwell, de Hélder Bataglia, que teria como destinatário final Carlos Santos Silva, o alegado testa-de-ferro de José Sócrates
Uma obsessão chamada Hélder
Ricardo Salgado está impaciente. Quer começar a falar sobre Bataglia. Faz uma terceira tentativa. Será desta? Aparentemente, sim.
– Houve dois grandes culpados da catástrofe do GES em Angola. Um foi o sr. Álvaro Sobrinho, o outro foi o sr. Hélder Bataglia. Mas no início o sr. Hélder Bataglia era um homem genial, genial.
Fora Bataglia quem, em nome do GES, coordenara a operação internacional de financiamento da economia angolana depois da guerra civil que dizimou o país. Depois disso, o empresário tornou-se um príncipe em Luanda.
– O prestígio do Hélder Bataglia subiu vertiginosamente: era praticamente o one man show. O seu prestígio era tal que conseguiu com toda a facilidade obter a licença bancária para o BESA.
A partir do momento em que começou a operar em Angola, o BESA não parou de crescer. E Bataglia achava que tinha de ser premiado por isso. Paralelamente, exigia cada vez mais dinheiro a Salgado, alegadamente para expandir os negócios da ESCOM na exploração de petróleo em Angola.
– Os pagamentos ao Hélder Bataglia eram feitos com esta finalidade: obtenção de poços de petróleo. De repente, eu devo dizer‑lhe que descobrir depois do colapso que por trás das nossas costas estava a passar‑se um filme de terror em que os recursos eram desviados para outras finalidades… Eu nunca na minha vida pensei que isso pudesse acontecer!
Rosário Teixeira não acredita na aparente fragilidade do seu interlocutor. No momento em que falam, Salgado é pouco mais que um náufrago de braço esticado, mas à data dos acontecimentos era ele o comandante do navio. Conhecia todas as rotas, todos os mapas, todos os destinos. Não será, pois, o procurador quem, num exercício de inspiração apostólica, dará a mão ao ex-Dono Disto Tudo.
– Porque é que pagaram sem verificar se isso [os negócios do petróleo] tinha ido avante ou não?
Salgado solta uma gargalhada tímida.
– Porque é que pagámos? A sua questão é perfeitamente correta. Nós estávamos convencidos de que as coisas estavam a acontecer. Só em 2009 comecei a ter um cheirinho de que a coisa estava a complicar‑se. Só um cheirinho. Para nós, esses fundos estavam a ser orientados para essas operações concretas.
Em 2005 Ricardo Salgado acordou com Bataglia o pagamento de vários milhões de euros de compensação até 2010. Deixou -o cinco anos de mão estendida, adiando consecutivamente as transferências repetidamente solicitadas. No interrogatório a que fora sujeito alguns dias antes, Bataglia acusou o ex-líder do BES de protelar deliberadamente o pagamento para o ter permanentemente na mão. Agora, Paulo Silva quer conhecer melhor a história, uma vez que esta é fulcral no afastamento gradual entre as duas figuras.
– Em novembro de 2010, quando cumprem com o pagamento deste contrato de 2005, quem é que deu ordem para pagar ao sr. Hélder Bataglia?
– A ordem foi através da Entreprises. Deve ter sido o responsável pela Entreprises.
– O sr. Hélder Bataglia foi tentar fazer executar o contrato. A entidade que assina isto é o sr. Hélder Bataglia e quem recebe é uma tal Green Emerald, que eu não sei se o sr. Dr. conhece…
– Olhe, minha é que não é! É do Hélder Bataglia.
– Como é que o sr. Hélder conseguiu fazer cumprir este contrato? Com quem é que ele teve este compromisso inicial em 2005 para receber isto, quem é que lhe fixou estas condições em 2005 e quem é que lhe deu as condições em 2010 para ele fazer o pagamento?
– A proposta veio do Hélder Bataglia e é normal que o pagamento só fosse feito ao fim de um tempo para dar tempo ao tempo para se verificar se ele estava a atingir os objetivos do contrato.
– Por aquilo que percebo, se foi pago quase junto à verba máxima a que tinha direito, foi um cumprimento quase total.
– Estávamos convencidos disso. Nós não tínhamos condições de verificar o terreno mas há uma coisa que nós verificávamos: é que o grupo em Angola estava a ter uma expansão brutal na área financeira e não financeira. Ó senhor procurador, os maiores imóveis de Angola foram construídos pela ESCOM! Depois se foram roubados ou não são outros 500, mas estavam lá fisicamente. Ele desenvolveu projetos imobiliários em Talatona, no Soio, em Brazaville. O homem não parava e portanto não se podia imputar ao Hélder Bataglia a responsabilidade de não ter cumprido com aquilo que estava assinado.
Paulo Silva insiste. Quer que Salgado reconheça que foi ele o responsável direto pelo contrato…
– Assinado com quem? Quem é que lhe estabeleceu estas condições?
– Foi a Enterprises. Foram propostas pelo Hélder e eu dei‑lhe o agreement.
Rosário reentra na conversa.
– É na sequência desse agreement que vem a ser feito esse contrato?
– Exatamente. Agora, era preciso ter‑se verificado… não se verificou nada. O conceito era este: concessões que se estavam a verificar umas melhores do que outras mas que estavam a ser verificadas. Só aquelas que nós não conseguimos ter a certeza, que muito mais tarde é que soubemos, os poços de petróleo afinal não tinham sido…
Paulo Silva, de novo…
– Em 2010, quando há o pagamento, como é que ele é efetuado? É porque o sr. Hélder veio bater‑lhe à porta e disse: «Dr. Ricardo, há um contrato assinado há cinco anos que já se venceu e eu quero a minha parte» e o sotor teve de cumprir? Assinou um contrato a dizer que tinha de pagar 2,5 milhões de euros como valor fixo e o outro valor era variável. Foi o sotor que avaliou o outro valor variável em 7,5 milhões?
Salgado pressente o cerco…
– Não fui eu. Foi uma decisão da área administrativa [na Suíça] em função do contrato. Eu depois não tive, não tinha tempo para olhar para…
– Sotor, estamos a olhar para entre 2,5 milhões e 10 milhões. Se o Schneider [gestor financeiro do GES na Suíça] estivesse a olhar pelos interesses do grupo dizia 2,5 milhões… digo eu. Ou o sr. Schneider conhece a realidade do que estava a acontecer em Angola? Se o senhor diz que não tinha, acha que ele tinha?
– Julgo que não… Mas acreditava no Hélder Bataglia.
– Então acha que foi o sr. Hélder Bataglia que chegou à beira dele e dizer que o valor variável seriam 7,5 milhões?
– Disse que queria ver cumprido o contrato…
– E pode ter sido ele a sugerir que isto ficasse nos 15 milhões?
– Pode ser que ele tenha dado essa sugestão, que o Schneider me tenha perguntado o que eu achava mas já não me recordo.
– Mas já acha mais plausível que possa ter acontecido.
– Ó senhor inspetor, o BES tinha 80 biliões de ativos, tinha 50 biliões de crédito, tinha 40 e tal biliões de depósitos. Eu não tinha tempo para tratar administrativamente desse assunto. Há falhas? Há. Não tenho dúvida. Agora, pode ter a certeza de que esses recursos para nós deviam ter sido investidos em Angola pelo esforço que o Hélder Bataglia estava a desenvolver, que nos parecia que estava a acontecer e não subrepticiamente passar‑nos por detrás das costas e estarem a ser passados para não sei quem.
Paulo Silva ainda não está satisfeito. Quer que Salgado assuma por completo a operação.
– Acredito [que a parte administrativa] tivesse essa disponibilidade de fazer os pagamentos. Paga lá os 15 milhões, sete e meio mais sete e meio. Mas a parte de fixar entre 2,5 e 10, fixar 7,5 não é administrativa, é de administração.
– Senhor inspetor, pode‑me dar as lições de administração que quiser…
– Não quero, sotor.
– O que lhe posso dizer é que pura e simplesmente não tinha tempo para acompanhar…
Rosário impacienta-se. Têm de seguir em frente e Ricardo Salgado parece estar a chocar contra um muro.
– Quem negociava consigo era o senhor Hélder Bataglia. Admite que o Jean-Luc [Schneider] lhe tenha dito: «O cavalheiro quer 7,5 desta parte variável, e o senhor [disse] “paga lá os 7,5, vá”» e estabeleceram assim um acordo para lhe pagar os tais 15 milhões?
– Estava dentro do contrato e portanto certamente que houve uma decisão que foi tomada e eu acredito que o Jean-Luc Schneider, que era um homem ponderado, me tivesse consultado sobre essa matéria e que eu lhe tenha dito «Olhe veja lá, se está ao abrigo do contrato»…
– Acreditando que os tais investimentos na área da concessão dos blocos de petróleo, da exploração mineira e dos imóveis estavam desenvolvidos…
– Alguma coisa estava desenvolvida. Agora, eu gostava de lhe recordar, porque estou a ver muitas dúvidas do senhor procurador e do senhor inspetor sobre a ESCOM…
– Já lá vamos…
Não. Ricardo Salgado quer falar já sobre as alegadas mentiras que Bataglia terá contado a Rosário, sobre a forma como terá sido enganado, sobre os esquemas da dupla Bataglia -Sobrinho, que juntos formam, no seu entender, uma serpente cuja mordidela tem resistido estoicamente ao soro da verdade. Da sua verdade, pelo menos.
– Deixe‑me só falar de 2010. Em 2010 foi feita uma avaliação da ESCOM que não foi ordenada por mim, foi ordenada pela área não financeira do grupo…
Paulo Silva está familiarizado com o assunto.
– Aí teve oportunidade de ver o que foi feito e não foi feito.
– Exatamente. Eu tenho aqui a avaliação, posso‑lhes dar. A nossa parte foi avaliada em 518 milhões de dólares. Podem dizer: o avaliador era o BESI, não conta. O avaliador era aprovado pelo Banco de Portugal e pelos auditores. Portanto utilizavam regras estritas de avaliação.
A ideia era vender a empresa aos angolanos. Mas quando estes tomaram conhecimento da avaliação financeira – que Bataglia qualificou, ironicamente, no seu interrogatório, de salgada – acabaram por recuar. Não aceitavam aquele valor. Isto apesar de já terem pago um sinal. Resultado: nova avaliação e o preço desce radicalmente para 300 milhões de euros. Mas os angolanos continuavam a resistir. E Bataglia – que tinha 33% da empresa, mas nada recebera… – não explicava porquê. Quer na comissão de inquérito ao BES, quer no interrogatório a Rosário, afirmou que Salgado o manteve à distância no negócio – e que não gostou nada que isso tivesse acontecido. Rosário Teixeira quer confirmar a acusação do luso -angolano…
– Então o sr. Hélder Bataglia não participou nestas negociações de venda da ESCOM?
– Participou! Também achei inusitado que ele tivesse dito à Comissão Parlamentar de Inquérito que quem tinha negociado era eu. Mentira! Eu não negociei nada. Nunca fui a Angola para negociar com os angolanos sobre isto. Eu só tratava da área financeira.
– Até constou que o senhor teria ido posteriormente a Angola falar com o Presidente sobre este contrato…
Apanhado em falso, Salgado tenta recuperar fôlego. Lança -se a Álvaro Sobrinho…
– Exatamente… Mas já estamos a falar em outubro de 2013… Em outubro de 2013, quando fui lá depois de ter sido detetado o buracão no banco provocado pelo Álvaro Sobrinho (e hoje não tenho dúvida de acrescentar o nome do Hélder Bataglia). Eu peço desculpa por aquilo que lhes vou dizer, é uma frase inglesa: «Birds of the same feather fly together» [pássaros com as mesmas penas voam juntos]. Eu não tenho dúvida nenhuma de que nós fomos completamente enganados em relação às duas coisas, ao BESA e à ESCOM. E que o Hélder Bataglia foi determinante nisso. Portanto, quando me falam agora de acusações ou suposições de que mandei pagar através do Hélder Bataglia ao José [Paulo] Pinto de Sousa… O Hélder Bataglia falou‑me uma vez neste José Pinto de Sousa, que estava em Angola, porque havia lá terrenos destes familiares do Sócrates e tinham umas salinas. Foi a única coisa que eu soube.
O primo de José Sócrates é um tema que interessa ao MP. Rosário acredita que José Paulo – também conhecido por Gordo devido ao seu generosíssimo perímetro abdominal – terá sido o primeiro testa-de-ferro de José Sócrates. Isto porque, ao seguirem o rumo do dinheiro, identificaram um conjunto de transferências no total de 5,4 milhões de euros, feitas para as contas de Carlos Santos Silva na Suíça por parte do familiar de José Sócrates.
Em interrogatório, Santos Silva justificou o dinheiro com um pretenso negócio imobiliário realizado na cidade angolana de Benguela – a urbanização Salinas de Chamune –, mas não convenceu Rosário Teixeira, que terá provas de que a Gunter – a sociedade offshore de onde partiram as transferências e que pertence a José Paulo Pinto de Sousa – terá sido alimentada por outra offshore. E quem controlava esta segunda? Hélder Bataglia. O procurador tenta esmiuçar a questão.
– É capaz de nos dizer em que circunstâncias ocorreu essa conversa [com Hélder Bataglia]?
– Foi uma conversa de ocasião, uma coisa qualquer em que me diz: «Ah, tenho aqui o Pinto de Sousa, que é primo do Sócrates…» Eu não sabia que o Hélder Bataglia tinha relações familiares tão estreitas com José Sócrates, não fazia a mais pequena ideia!
– Só soube disso recentemente?
Salgado não evita um sorriso pérfido.
– Só! Já depois do colapso. O que vos quero dizer é que em relação a este filme de terror que ocorreu em Angola, o do banco julgo que já sabem, nós conseguimos que o Presidente da República, pela consideração que tinha pelo BES, por aquilo que fizemos ao longo destes anos todos, nos desse a garantia. Aquilo estava tudo resolvido se não fosse o Dr. Carlos Costa [governador do Banco de Portugal] ter deitado a garantia para o lixo. Em relação à ESCOM, acho que o principal responsável disto tudo foi o senhor Hélder Bataglia.
Bataglia, sempre Bataglia. O empresário luso-angolano está omnipresente no discurso de Salgado. Mas não está sozinho. Álvaro Sobrinho está sempre a aparecer.
– É verdade que aquando da constituição do BESA o senhor disse a Hélder Bataglia que a ESCOM podia entrar como acionista do BESA?
– Isso é mentira, não faz sentido nenhum porque nós tínhamos a área financeira separada da não financeira. A ESCOM não tinha capitais para entrar no BESA, pelo contrário, o Hélder Bataglia pedia constantemente financiamento ao BESA para apoiar o desenvolvimento imobiliário e foi por isso que a partir de uma certa altura eu disse ao Hélder Bataglia que ele estava em conflito de interesses e que tinha de sair do conselho de administração do BESA.
Bataglia não gostou, uma vez mais. Mas saiu. E vendeu a Álvaro Sobrinho a sua posição de 2,5% no banco por uma quantia astronómica: 60 milhões de euros. Salgado ainda se indigna com o ocorrido.
– 60 milhões! 60 milhões!!! O Álvaro Sobrinho não tinha dinheiro para comprar aquilo por 60 milhões! O BESA esteve ao serviço do Álvaro Sobrinho e família! Viemos a saber depois que pôs a cunhada à frente da área do crédito. Quem dava o crédito era a cunhada! Não havia atas! Quando lá fomos em outubro e nos deparámos com aquele programa de terror que eu aliás publicamente manifestei, ele foi chamado à pedra pelo general Kopelipa e pelo Dino [Leopoldino Fragoso do Nascimento, figura próxima de José Eduardo dos Santos que a revista americana Foreign Policy chegou a apelidar de «homem dos 750 milhões», numa referência aos seus activos no estrangeiro] Era uma coisa absolutamente inconcebível o que se tinha passado dentro do BESA!
– Está convencido de que o financiamento do Álvaro Sobrinho para comprar a Hélder Bataglia a posição no BESA foi financiado pelo próprio BESA?
– Ai, tenho quase a certeza! Mas o Álvaro Sobrinho já se tinha servido muito bem. Ninguém sabe até hoje como é que ele saiu com os recursos. Diziam que saíam de mala… mas também o dinheiro em malas de Angola para fora é complicado…
Salgado está em modo de vingança. Católico praticante e temente a Deus, é um confesso seguidor dos preceitos de Santo Agostinho, o bispo teólogo que legitimou o conceito de guerra justa, segundo o qual às vezes é preciso pegar nas armas para garantir a paz. Terá o alegado corruptor de Sócrates passado os olhos pela Cidade de Deus esta manhã, antes de sair da sua moradia de Cascais para se deslocar ao Campus de Justiça? A ofensiva prossegue…
– Álvaro Sobrinho ainda é o maior acionista da SAD do Sporting e ninguém lhe vai à unha! O Álvaro Sobrinho comprou à ESCOM com o acordo do Hélder Bataglia uma das torres por 400 milhões. Foi financiada pelo BESA, e depois vendeu a torre ESCOM por 800 milhões a uma outra entidade financiada pelo BESA…
Paulo Silva espreita uma oportunidade para passar a outro assunto nuclear…
– …Que por acaso se chama Socidesa…
– Ah, é a Socidesa… Portanto, eu não me recordava do nome mas é uma dessas. É uma história escandalosa!
– E não foi com o seu conhecimento que isso aconteceu?
– Com certeza que não! Eles dizem com certeza que eu conhecia tudo, mas está a ver, é espantoso… Aliás, a assembleia geral começou no dia 3 de outubro de 2013, foi prolongada com outra em 21, em que o Álvaro Sobrinho se tinha comprometido a trazer todos os elementos justificativos das operações que tinham sido feitas e não trouxe um! Um! E ninguém o chama à ordem lá em Angola?! Ninguém lhe pega! Eu, para que isto tenha acontecido, só posso concluir que houve mais pessoas em Angola que beneficiaram do prejuízo do banco.
– Então como é que me pode explicar que a ES Enterprises receba verbas da Socidesa, uma sociedade que pelo que estamos aqui a ver fará parte do buraco do BESA?
– Não faço ideia, senhor inspetor, não faço a mais pequena ideia e muito me surpreende. Mas vou tomar nota dessa informação a ver se consigo perceber, porque não faz sentido nenhum.
Ao falar -se da ES Enterprises, o interrogatório entra numa fase decisiva. O MP acredita que terá sido a partir desta offshore secreta – de tal modo que nem constava do organograma oficial do GES – que terão sido pagos milhões de euros em subornos a políticos e empresários ao longo dos anos. Paulo Silva começa pelo início…
– O que é esta ES Enterprises?
Salgado compreende de imediato a importância e o alcance da questão. Sente a necessidade de fazer uma longa contextualização.
– O GES refundou‑se a partir do Brasil e foi aumentando a sua dimensão na área financeira através do grupo Interatlântico e num banco em Miami que começou por ser o Biscayne, depois o BES Miami, depois em Paris, um no Panamá e outro no Dubai. Quando voltamos para Portugal, em 91/92, entramos no banco e encontramos uma organização estruturada e que se foi desenvolvendo de forma significativa. O Banco de Portugal estabeleceu um sistema de controlo interno em que obrigou a que todas essas plataformas lá fora tivessem controlo interno. Eram organizações pequenas que se nos tivéssemos de organizar devidamente era um peso administrativo significativo que afetava a sua rendibilidade. Então pediu‑se autorização para que as equipas do BES fossem lá fora desenvolver e contribuir para que essas instituições desenvolvessem sistemas de controlo interno. O Banco de Portugal conhecia isto.
Traduzindo: para não ser obrigado a ter equipas de controlo interno em todas as suas estruturas no exterior, o GES enviava, a partir de Portugal, uma equipa de técnicos com a missão de fazer esse trabalho um pouco por todo o mundo. E pagava -lhes os serviços prestados através de uma sociedade offshore, o que criava problemas fiscais que, de acordo com Salgado, «tinham de ser eles a resolver».
Rosário ouve o ex-líder do BES em silêncio. Sabe que não lhe está a contar toda a história.
– A ES Enterprises foi criada para pagar esse tipo de serviços?
– A Enterprises já existia, foi o sistema de pagamentos que pusemos em marcha para remunerar colaboradores do grupo que prestavam serviço a nível internacional, não há nenhum subterfúgio. Já ouvi por aí dizer que tínhamos corrompido colaboradores do grupo, uma coisa inconcebível! Tínhamos uma complexidade de serviços e procedimentos que tinham de ser pagos por uma entidade externa.
– E como era alimentada essa entidade externa?
– Pela Espírito Santo Internacional [a casa -mãe, sediada no Luxembrugo], pela ESI BVI [uma sociedade offshore sediada nas ilhas virgens britânicas] e por aplicações que vinham de outras origens, julgo eu. De facto, a Enterprises alargou a sua esfera de influência para operações especiais e é por isso que aparecem estas operações com o Hélder Bataglia, aparecem com o Zeinal [Bava] e algumas que já me referiu. Agora, quando me diz que eu beneficiei em causa própria dos financiamentos, eu sempre que pedi financiamentos intercalares à Enterprises reembolsei‑os! Num último momento – que julgo que lhe declarei numa intervenção que o senhor procurador teve comigo em 2011 –, eu tinha pedido um financiamento de 4 milhões de euros, reembolsei 50% e ficaram 50% por reembolsar com um prazo, só que entretanto aconteceu o colapso e as minhas contas na Suíça estão bloqueadas. Portanto eu fiquei para trás com 2 milhões para reembolsar à Enterprises mas não peguei de uma forma irregular num centavo daquela empresa.
Paulo Silva quer entender o funcionamento da ES Enterprises ao longo dos tempos – e o papel de Salgado nas inúmeras movimentações de capitais verificadas.
– Em 2004 o senhor deixa de ser chairman dessa sociedade e entra como diretor o senhor José Castela [e com ele] Francisco Machado da Cruz e Jorge Amaral Penedo. Sabe explicar porque houve esta alteração?
– Porque era necessário estruturar melhor a empresa…
– Não era para facilitar os pagamentos a colaboradores?
– Certamente. E eu quero‑lhe dizer que não era o único que dava indicações para a Enterprises. Os senhores, através das cartas rogatórias, tiveram certamente acesso a movimentos da Enterprises que não eram decididos por mim, mas por outros administradores do grupo.
– Tais como?
– José Manuel Espírito Santo, Mário Mosqueira do Amaral, António Ricciardi…
– Em 2006, 2007?
– Sotor, a minha memória não me permite…
Rosário sublinha a memória seletiva do interrogado.
– Pois, mas é pelos vistos a memória mais recente, porque a partir do momento em que a ES Enterprises passa a servir para estas operações especiais, a autorização de qualquer movimentação passa pelo sotor…
– Nas operações especiais reconheço que tive intervenção maior, sim. Mas também não posso garantir que outros não tenham tido noutras circunstâncias.
São 13h36. O interrogatório já vai longo, mas os investigadores estão longe da satisfação total. Paulo Silva prossegue com o tema ES Enterprises.
– O que posso concluir é que na ES Enterprises a partir de 5 de março de 2004 José Castela, Francisco Machado da Cruz e Jorge Amaral Penedo é que tinham poderes para movimentar esta conta, esta entidade? E administrativamente era o senhor Jean-Luc Schneider que a punha em movimento. Posso concluir isso?
– Sim.
Assim sendo, Rosário volta a Bataglia e aos pagamentos que lhe terão sido feitos a partir da ES Enterprises.
– Esta operação de 2006 que leva a que o senhor Hélder Bataglia receba na sua conta 7 milhões de euros e que é feita com o financiamento contraído pela ESCOM, lembra‑se a que é que isto se reporta?
– Não. Sei que nesse período deveria ter sido concretizada a atribuição dos blocos de petróleo. E portanto lá está: as remunerações ao Hélder Bataglia… Agora, nunca me passou pela cabeça que isso tivesse sido feito através de um financiamento da ESCOM.
– Em 2006 recorda‑se se houve algum pagamento de sucess fee ao Hélder Bataglia? Ele reclamou algum pagamento relacionado com a sua intervenção na administração da ESCOM?
– Não me recordo. Sei que os pagamentos eram pela obtenção das licenças dos blocos de petróleo.
– E eventualmente do BESA, que ele também reivindica…
– … e do BESA. Acho que aí foram 3 milhões. Mas isso é a tal exigência que ele fazia porque não estando diretamente a seu cargo o BESA, estando mais na área não financeira, o Hélder, devido ao desenvolvimento extraordinário do BESA, achava que tinha direito de receber isso e como tinha sido ele a obter a licença e contribuído para o desenvolvimento da atividade em Angola, considerou‑se por isso que se devia pagar. Claro que se soubesse o que sei hoje não lhe tinha pago, não é?
Paulo Silva quer passar da retórica às provas…
– Para isso foi feito algum contrato?
… mas a memória do ex -banqueiro continua a fraquejar.
– Não sei. O senhor inspetor é uma pessoa muito cuidadosa e meticulosa mas peço‑lhe que acredite que não tinha tempo para a parte administrativa.
– Não tenho dúvidas, mas há situações marcantes. Por exemplo uma entidade chamada Pinsong.
– Sabe onde vi esse nome pela primeira vez? No Expresso, nos Panama Papers. Eu não sabia, depois soube que era um veículo criado pela Enterprises. E não sabia da Markwell e da Monkway.
Não tinha de saber. Eram offshores de Hélder Bataglia. Paulo Silva continua…
– Esses tais pagamentos foram estabelecidos nos contratos entre a Pinsong e a Markwell precisamente para cobrar esses valores.
– Valores que estavam relacionados com a concessão dos poços de petróleo. Mal sabíamos nós que esses capitais estavam a circular por outro lado, porque os capitais foram desviados. Vim a saber mais tarde que parece que os senhores me imputam a responsabilidade de ter feito chegar dinheiro ao ex‑PM Sócrates mas isto só pode ter sido feito pelo Hélder Bataglia, não eu!! Ele estava era a desviar recursos que deviam estar alocados àquela entidade.
Rosário tenta recentrar o interrogatório. Prepara novo cerco a Salgado.
– Vamos por partes. O senhor está‑nos a dizer que não conhece a Pinsong.
– Conheci no Expresso, nos Panama Papers.
– Tem conhecimento da existência desses contratos entre a Pinsong e o senhor Hélder Bataglia?
– Além desse da Entreprises depois havia os contratos dos poços de petróleo. Mas eu não lhe posso garantir que sejam esses da Pinsong.
É evidente para todos os presentes que Salgado caminha em cima de uma linha fina que separa absolutos opostos. De um lado, a verdade, a moral, a justiça; do outro, a mentira, o despudor, o dislate e a ignomínia. A qualquer momento pode desequilibrar -se. Este é um desses momentos.
– Parece haver aqui uma contradição. O senhor diz que não sabe o que é a Pinsong mas sabe que há uns contratos. Ora, esses contratos são em nome da Pinsong. Se não sabe o que é a Pinsong como sabe que há contratos?
Salgado ensaia uma fuga em frente.
– Eu soube dos contratos porque tive a informação da transferência dos recursos e [estes] só poderiam ter sido transferidos à luz disso, dos acordos feitos com o Bataglia.
– Mas esses acordos são feitos com uma entidade offshore que é a Pinsong, que por sua vez é uma filha da ES Enterprises.
Paulo Silva não dá tempo a Salgado para reagir à observação de Rosário Teixeira…
– Essa questão administrativa de elaborar os contratos e até escolher a entidade foi instruções que deu ao Jean-Luc Schneider? «Trata disto que é preciso para Hélder Bataglia.»
– Não sei se foi nesses termos. Sei que houve as concessões dos poços de petróleo que viríamos a descobrir ter sido só uma, mas na altura era isso que estava acordado e o que foi pago.
– Acordado entre quem?
– Entre o grupo e o Hélder Bataglia.
O grupo. Não chega. Pelo menos para Rosário Teixeira.
– Sotor, o grupo tem caras. Isto foi entre si e o senhor Hélder Bataglia.
– Provavelmente sim.
– Portanto, o que quer dizer é que esse acordo entre si e o senhor Hélder Bataglia terá levado à assinatura desses contratos embora não tenham sido elaborados por si. Alguém dentro da Enterprises arranjava a justificação contabilística aos pagamentos ao sr. Hélder. É isso?
Salgado está cansado. Declara derrota.
– Sim…
– Um dos factos que lhe são imputados [é a realização de] 3 operações de 5 milhões de euros cada, entre 2008 e 2009. Duas para a conta da Markwell e uma para a conta da Monkway, ambas de Hélder Bataglia. Se bem percebi, o sotor diz‑me que esses 15 milhões estarão relacionados com os contratos dos poços de petróleo. Os 3 milhões de sucess fee estão incluídos neste bolo?
– Parece‑me que sim…
Paulo Silva, conhecedor profundo de todos os circuitos financeiros da Operação Marquês, junta mais um dado à equação.
– Antes destas de 5 milhões há uma outra, em julho de 2007, de 7 milhões da ES Enterprises para a Markwell.
O advogado de Salgado confirma. Paulo Silva prossegue…
– … depois disso vieram 3 de 5, que perfazem 15 milhões.
Adriano Squilacce pergunta ao seu cliente se tem memória disso, se terá sido ele ou a parte operacional que tratou dessas operações. E Salgado dá a resposta que Squilacce queria ouvir.
– Era a parte operacional, claro. Tenho de fazer um esforço de memória, não quero deixar de responder mas nesta altura…
– Se me permite ajudá‑lo, aqui estamos a falar do primeiro pagamento feito ao senhor Hélder Bataglia. Do primeiro contrato de 2005 não foi nada pago, só foi pago em 2010. Aqui estamos a ir ao momento em que efetivamente o senhor Hélder Bataglia lhe surge e estão a ser‑lhe pagas verbas. Dentro desse raciocínio consegue saber qual é a primeira verba que está a ser paga, a que título e porquê? Se é essa história dos 3 milhões ou se já foi os poços de petróleo.
– A ordenação dos montantes não sei, não me recordo.
Rosário começa a perder a paciência para a falta de memória de Salgado…
– Aqui não é a ordenação do montantes, é da realidade.
– O que estava combinado era pagar os poços de petróleo e esse montante de 3 milhões é pago num determinado momento. Se foi antes ou depois não sei.
Rosário olha para os seus apontamentos.
– A ordem que aqui está é que em 2007 há uma transferência da ES Enterprises para a Markwell de 7 milhões. Desses sete, ele [Bataglia] agarra em três e põe na sociedade Gunter, que é do senhor José Paulo, primo do José Sócrates.
O vínculo está criado: na ressaca da OPA falhada da Sonae à PT, Salgado dá a Hélder, que por sua vez dá a José Paulo, que por sua vez dá a Santos Silva – ou seja, a Sócrates, no entender do MP. Salgado não contém uma gargalhada.
– É o filme que passa atrás das nossas costas e que só agora é que eu estou a realizar!
– A seguir a estes 7 milhões, em 2008, há mais três transferências de 5 milhões de euros (a última já em 2009), que perfazem 15 milhões de euros. Portanto, temos 2008/2009, uma transferência de 7 e três transferências de 5, o que perfaz… 15+7… 22 milhões. Pronto. Estes 22 milhões entregues ao senhor Hélder Bataglia são o quê? Estamos a falar de tudo relacionado com poços de petróleo mais os 3 milhões da compensação da licença BESA?
Sim, são muitos milhões. Sim, são tantas coincidências. Sim. Mas não, Ricardo Salgado não fugirá ao guião previamente estudado com os seus advogados.
– Exatamente. Desenvolvimento dos projetos. O Hélder Bataglia tinha o compromisso de desenvolver os projetos e estava constantemente a pedir recursos para efeitos não sei de quê para contribuir para o desenvolvimento dos projetos.
É inevitável: sempre que o nome de Bataglia aparece em cima da mesa, o ex -DDT revela uma espécie de misantropia seletiva que até agora lhe era desconhecida. Talvez isso explique a ligeireza com que insinua que o seu ex -amigo andaria alegremente a distribuir comissões pelo continente africano.
– Se ele depois pegava no dinheiro e [para desenvolver os projetos] entregava a alguém lá no Congo Brazaville ou em Angola eu não faço ideia. O compromisso dele era trazer os poços de petróleo.
– Então este dinheiro que aqui está não é apenas uma remuneração do sucesso e do trabalho…
– Com certeza que não.
– Era também para ele próprio contribuir para esse desenvolvimento dos projetos.
– Exatamente.
– Então porque é que eram o BESA e a ES Enterprises a financiar?
– Porque ele pedia, que não tinha recursos em Angola para esse efeito. O Hélder Bataglia estava constantemente a solicitar recursos e no fundo no relacionamentos que ele desenvolvia com essas entidades que deviam viabilizar o desenvolvimento de poços de petróleo, autorizações de licenças de construção, autorizações mineiras no Congo, ele provavelmente tinha… ele provavelmente… tinha a confiança da nossa parte…
***
Está na hora de cumprir mais uma etapa na escalada em direção ao verdadeiro alvo. Carlos Santos Silva é ponto de passagem obrigatório. Rosário vai direto ao assunto.
– Conhece o Eng. Carlos Santos Silva?
Ricardo Salgado recupera a expressão de ingenuidade já exibida anteriormente.
– Nunca o vi. É uma situação para mim de uma enorme perplexidade porque, pelo que percebi, os recursos foram parar a Carlos Santos Silva.
– Certo.
– Ó senhor procurador, eu não me recordo de ter falado ao Carlos Santos Silva!
À expressão de ingenuidade de Salgado, Rosário responde com a ironia fina por que é conhecido.
– Era seu cliente com alguns recursos, que até recebia alguns dinheiros no BESI que não são para toda a gente e que até trouxe alguns dinheiros lá de fora ao abrigo do RERT…
O interrogado não desarma…
– Para mim foi uma enorme surpresa que ele tivesse feito o RERT no BES. Nunca me passou pela cabeça que isto pudesse acontecer, esta conjugação de relações entre o Eng. Sócrates, o grupo Lena e o Carlos Santos Silva. Não fazia ideia!
– E muito menos tem conhecimento de que tenha pedido a alguém para fazer transferências para este Carlos Santos Silva?
Rosário refere -se obviamente a Hélder Bataglia. Quer que Ricardo Salgado confirme o que o luso -angolano dissera ao MP: que o ex-líder do BES lhe pediu para fazer chegar vários milhões a Carlos Santos Silva. Salgado sabe que assumi -lo seria um exercício de infantilismo processual que lhe seria potencialmente fatal. Não tem vocação para kamikaze.
– Claro que não! Claro que não! Isso é tudo iniciativas do senhor Bataglia, que quando tinha um programa para desenvolver em Angola, para o qual estava a ser remunerado e pago com avanços, fazia circular os recursos pelas nossas costas desta forma. Foi uma total surpresa!
Paulo Silva vai à réplica…
– Mas tem algum conhecimento de que o senhor Hélder tenha relações com Carlos Santos Silva?
– Não faço ideia! O Hélder nem sequer desenvolvia o relacionamento que tinha com o Eng. José Sócrates. A única coisa que me disse sobre a família do Eng. Sócrates foi este senhor [José Paulo] Pinto de Sousa que estava lá em Angola e que tratava lá das salinas e de uns terrenos que eles tinham. Portanto não se surpreendam por eu ter ficado em estado de choque. Se não tivesse uma boa preparação física provavelmente tinha caído para o lado com estas acusações!
Quem está prestes a cair para o lado é Rosário Teixeira. Não acredita em quase nada do que escuta. Esperaria o magistrado uma inequívoca prova de arrependimento, uma demonstração de inquietação moral, uma confissão de falibilidade da parte do homem que durante décadas terá sido o maior símbolo de infalibilidade da sociedade portuguesa? Provavelmente não. Insiste.
– Mas algumas das interpretações destes factos não saem da nossa lavra, saem de pessoas que afirmaram e que dizem que foi o senhor que pediu para haver contas que serviam de passagem para dinheiros que vieram da ES Enterprises.
Salgado levanta o indicador em direção aos olhos azuis de Rosário Teixeira.
– Nunca fiz isso na minha vida!
– Nunca utilizou contas de passagem nem nunca pediu a ninguém «Olhe, deixe lá passar esse dinheiro e depois transfere para a conta tal»?
– Não. Não.
– Aquilo que aqui está em causa são duas versões sobre a existência destes pagamentos, destas operações. O senhor está‑nos a dizer que deu estes dinheiros todos ao senhor Hélder Bataglia, que só nestes anos de 2008, 2009, somam os tais 22 milhões de euros, pura e simplesmente para ele desenvolver negócios e para remunerações do sucesso que ele pudesse ter, incluindo a tal licença bancária do BESA que terá sido paga algum tempo depois. Outra coisa é dizer que parte deste dinheiro foi entregue por si ao senhor Hélder Bataglia, mas depois para o reencaminhar para umas contas que o senhor Carlos Santos Silva lhe deveria indicar.
Salgado não recua.
– Nunca ouvi falar no Carlos Santos Silva antes! Nunca! O Hélder Bataglia nunca me falou num Carlos Santos Silva, nunca me falou de nada! Ele fazia o que queria! Ele fazia o que queria!
(…)
De volta a 18 de janeiro de 2017 e a Salgado
Paulo Silva introduz um novo nome: Henrique Granadeiro, que, à imagem de Zeinal Bava, também encaixou vários milhões na sua conta do banco Pictet, na Suíça. Há um detalhe que espantou a investigação: o facto de terem sido feitos pagamentos a Zeinal Bava e a Granadeiro no mesmo dia. Em 7 de dezembro de 2007, o primeiro recebeu 6,7 milhões de euros e o segundo 467 900 €. Meses antes, a 9 de julho de 2007, Granadeiro já recebera 6 milhões na mesma conta do banco Pictet. Outra curiosidade: no mesmo dia foram também transferidos 7 milhões de euros para a Markwell, de Hélder Bataglia. Rosário Teixeira não acredita na bondade de tantas coincidências e fá -lo sentir a Ricardo Salgado. Asfixiado pela força dos factos, o ex-banqueiro socorre -se do infinito poder do divino.
– O que eu gostava de lhes dizer era o seguinte: já ouvi falar várias vezes do Diabo. A coincidência destas operações com aquelas datas do Hélder Bataglia é o Diabo. Foi o Diabo!
E ri -se, perante a aparente incredulidade de Rosário Teixeira.
– Mas não sendo o Diabo elemento processual, requer uma interpretação humana. Esse é o problema.
– Isso é o que vos quero dizer. Reparem que o dinheiro voltou, como estava combinado com o Zeinal Bava.
Paulo Silva interessa -se agora pela conta de Granadeiro no banco Pictet. Questiona o ex -empresário sobre as transferências realizadas. E a primeira explicação que recebe é, no mínimo, surpreendente.
– Tem a ver com uma colaboração que o Granadeiro deu ao grupo, muito importante, em anos anteriores, antes de ir para a PT, na reorganização da área agrícola do grupo, relacionado com a Comporta. Só para referir que o Granadeiro é reconhecido em Portugal como um dos maiores sábios da área agrícola e produz sempre uns vinhos magníficos, e tal.
Para além disso – e esta é a segunda explicação –, Granadeiro terá ajudado a resolver aquilo que Salgado classifica como um berbicacho na área industrial.
– Os meus primos Espírito Santo, da família do José Manuel Espírito Santo, irmãos e sobrinhos, quando receberam as indemnizações do Estado das nacionalizações, foram investir em cerâmicas e espalharam‑se completamente ao comprido. Foram comprar uma cerâmica Aleluia, foram comprar a Secla, comprar isto e aquilo, e foi o cabo dos diabos. E o Henrique Granadeiro, que é amigo íntimo do Dr. José Manuel Espírito Santo, ajudou a resolver essas situações. Mas ajudou de uma forma muito pragmática e válida.
Falta o terceiro motivo para os pagamentos…
– … Além disso, nós decidimos uma aquisição de uma participação na sua [de Granadeiro] exploração agrícola. A Enterprises comprou, deve lá estar na massa falida, parte de uma exploração do Henrique Granadeiro. Ele comprou o Vale do Rico Homem [uma marca de vinhos], que pertencia à família Herédia, e valorizou aquilo n vezes. O tipo de facto é um génio. Ah!, e no apoio que deu à fábrica de descasque de arroz, na Comporta, também foi importante.
– E esses pagamentos que foram feitos em 2010, na mesma data que foi feito ao Zeinal Bava?
– Não sei se é na mesma data.
– No mesmo mês, quase ia jurar que alguns são do mesmo dia…
– É outra vez o Diabo…
Paulo Silva sente de novo a necessidade de sistematizar no que respeita a Granadeiro.
– Estamos aqui a falar de dois momentos distintos: em 2007, um pagamento. E depois 2011. Estamos a falar de três anos de diferença ao Pictet. O Dr. diz que são os pagamentos do Dr. Henrique Granadeiro. As justificações do apoio à área agrícola e a compra da participação numa das herdades dele, isso ocorreu quando? Em 2007 ou 2010?
Pela enésima vez nesta quarta -feira gelada, a memória trai Salgado.
– Senhor inspetor, não lhe posso garantir agora. Não tenho de cabeça isso.
– Mas foi o senhor que tratou desses assuntos com o Dr. Henrique Granadeiro ou houve mais alguém que tratou? Ele resolveu o problema dos seus familiares e a contrapartida foi o Dr. que entendeu que tinha de fazer isso? Por sua iniciativa fixou um valor para lhe ser pago, independentemente de não saber qual é? Foi o senhor que tratou com o Dr. Henrique Granadeiro?
– Sim, fui.
– E para entrar na quinta?
– Julgo que também fui eu, convicto de que os outros membros do grupo estavam de acordo.
– Independentemente de o Dr. precisar agora quais pagamentos são de uma coisa ou de outra, uma parte deles teria que ver com uma promessa da participação da Enterprises numa sociedade de exploração agrícola do Dr. Henrique Granadeiro…
– Sim, senhor.
– … que não chegou a ser contratualizada.
– Eu não me recordo, mas deve haver um contrato, sim.
– Mas essas condições, continuo a insistir, foi o Dr. Henrique Granadeiro [que combinou] consigo?
Salgado finalmente concede.
– Sim, aí não posso dizer que não tenha sido. Mas os detalhes não fui eu que tratei.
Rosário Teixeira continua a achar tudo aquilo um exercício de alguma transcendentalidade, um desfiar de verdades alternativas que teriam lugar na nova Casa Branca, mas claramente desajustadas para aquele cenário. Sem perder a fleuma, continua.
– Mas o sr. Dr. até nem sabe de qual das herdades foi… Fixa um valor, tem muito mais capacidade de avaliação de propriedades do que eu, mas tem esse conhecimento específico para conseguir fixar os valores?
– Julgo que no dossier está uma avaliação técnica que foi feita.
– O dossier da compra? Mas onde é que está esse dossier?
– Não sei. Deve estar… Ó sr. procurador, a Enterprises desapareceu…
– Mas os pagamentos foram feitos cá. O sr. Dr. nem me sabe precisar qual sociedade é que é. Ia comprar uma sociedade onde estava o Dr. Henrique Granadeiro. Era uma participação maioritária ou minoritária?
É oficial: Ricardo Salgado está a viver o momento mais crítico do interrogatório. Está encolhido, tenso, autojustificativo, bem distante dos momentos pontuais de algum fulgor que protagonizou nas últimas horas.
– Eu só lhe posso dizer: a Tapada do Barão, onde faz os seus vinhos mais conhecidos, é em Reguengo. A outra, o Vale do Rico Homem, julgo que é no Alentejo, mas também não é muito longe dali. Lá para os lados, zona que tinha grande influência comunista (risos) por isso é que foi ocupado.
Francisco Proença de Carvalho sai em seu auxílio.
– É em Redondo.
Salgado confirma. Mas continua sem conseguir dizer qual é o valor da percentagem do capital que adquiriu. Não vale a pena continuar, o assunto Granadeiro está praticamente esgotado. Mas sobre o papel de Zeinal Bava, Rosário Teixeira sente que ainda há muito por esclarecer.
– Voltando ao sr. Dr., peço desculpa, Eng. Zeinal Bava. Porque é que tem de ser o GES a pagar isso [o dinheiro para que supostamente Bava desse estabilidade à sua equipa], se o GES só tinha 9 ou 10% da empresa?
– Tinha 8,63%. Pagar o quê?
– A tal garantia fiduciária.
– Aquilo não havia possibilidade de haver prejuízo. O prejuízo resultou do colapso. O que acontece é que o dinheiro era devolvido, assim como foi, se não se verificasse.
– Mas vamos imaginar que tinha de ser pago.
– Já percebi o alcance da sua observação. E é válida. Já entendi. Se tivesse de ser pago, quando as coisas estivessem completamente… a fusão feita, os colaboradores em Angola, o Zeinal Bava montado em cima do cavalo, o que acontecia é que isso era colocado na PT, a PT a assumir isso. Mas nessa altura já estaria tudo feito.
Rosário avança com outra inquietação: por que motivo Zeinal Bava recebeu em 2007 uma transferência de 6,7 milhões de euros?
Definitivamente, os milhares de milhões de conexões cerebrais de Salgado, de 72 anos, não se encontram na sua melhor forma de sempre.
– Não me recordo, senhor inspetor…
– Precisamente no mesmo dia daquelas operações do Pictet que foram, diz o senhor, do Dr. Henrique Granadeiro. Mais uma coincidência do diabo, senhor doutor?
– Essa operação não me recordo…
Agora sim, Rosário Teixeira e Paulo Silva estão mesmo a terminar. Chegaram ao topo da escadaria: José Sócrates. É Paulo Silva quem inicia as hostilidades.
– Só queria fazer mais uma questão: a sua relação com o Eng. José Sócrates. Conhecia‑o antes das suas funções como primeiro‑ministro?
– Não. Julgo que terei tido, eventualmente, um encontro quando ele foi do Ambiente, por causa de uma situação na Beira Baixa, onde tínhamos propriedades. Fora isso, as minhas relações com o Eng. José Sócrates foramsempre institucionais. Nada de intimidades. Aliás, nunca tive relações íntimas com nenhum primeiro‑ministro ou presidente. No outro dia dei o meu testemunho em relação ao Dr. Mário Soares, foi uma cosia muito especial. Foi ele que nos chamou para voltarmos para Portugal, infelizmente, e nós aceitámos.
– E também para trazer o Crédit Agricole para Portugal?
– Exatamente. O Dr. Mário Soares teve um papel relevantíssimo na vinda do grupo e na associação com o Crédit Agricole. E o Dr. Mário Soares ficou chocadíssimo com tudo aquilo que aconteceu, mas foi um amigo fantástico e visitava‑me quando estava detido em casa. Ele e a senhora Maria de Jesus Barroso. Jantávamos, depois quando deixei de estar detido passei a ir visitá‑los e a estar em casa deles. Foi um homem notável no nosso país.
– E com o sr. Eng. José Sócrates?
– Com o Eng. José Sócrates nunca tive relações de intimidade, quaisquer que fossem. Nunca falei com ele sobre esta história [bate com as duas mãos na mesa].
– Já agora: qual foi a última vez que esteve com ele?
Salgado vai responder, claro. Mas antes disso solta um suspiro profundo.
– Ora, estamos em abril, é a história da troika, que vai entrar em Portugal a seguir, e o Eng. José Sócrates sai logo a seguir, não é? Abril de 2011. Nunca mais estive com ele. E acredito que ele tenha ficado torcido comigo e com os outros banqueiros que foram à televisão dizer…
– O engenheiro nunca foi à sua residência em Cascais?
Mais um lapso de memória…
– Não me recordo.
Adriano Squillacce, sempre atento, recorda ao seu constituinte uma notícia do CM a noticiar o facto.
– Não me lembro…
– De José Sócrates ter jantado na sua casa?
– Não, não me lembro… (pausa) Pode ter ido quando ele escreveu um livro, quando regressou de Paris. Foi lá a casa entregar‑me um livro.
– Tanto quanto é público, foi o Correio da Manhã que referiu que esse jantar ocorreu em março/abril de 2014.
– Não me recordo do jantar, recordo‑me do tal livro, que eu nunca li. E nunca tive intimidade nenhuma com o Eng. José Sócrates. Tive algumas reuniões oficiais, ao nível da APB, com o primeiro‑ministro, do IEB – o Instituto Europeus dos Bancos, do qual eu fazia parte –, que vieram cá a Portugal, com o Eng. Jardim Gonçalves e depois com o Carlos Santos Ferreira e depois com o Nuno Amado. E vieram cá duas vezes a Portugal e julgo que o Eng. José Sócrates foi convidado para fazer uma preleção aos banqueiros europeus. Uma vez foi no Museu dos Coches, isso recordo‑me.
São 15h00. Há cerca de 180 minutos que o interrogatório dura. Ricardo Salgado parece exausto. O olhar é triste e carregado. Os gestos já não revelam a energia dos primeiros instantes – o que não é surpreendente, uma vez que o combate foi feroz. De olhar fixo na mesa onde agora repousam os apontamentos que há muito deixou de usar, parece implorar para que tudo aquilo acabe – e Rosário faz -lhe a vontade, mesmo sem que lhe tenha sido endereçado qualquer pedido nesse sentido. A luta termina – por agora.