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Susan Sontag (1933-2004), American Writer
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Susan Sontag fotografada em 1972

Jean-Regis Rouston/Roger Viollet via Getty Images

Susan Sontag fotografada em 1972

Jean-Regis Rouston/Roger Viollet via Getty Images

Pré-publicação. Susan Sontag e a capacidade de um astro literário "fazer reféns" na intimidade

Está a chegar agora a Portugal a biografia "Sontag - Vida e Obra", já vencedora de um Pullitzer. O Observador pré-publica em exclusivo um capítulo sobre a relação da escritora com Annie Leibovitz.

Benjamin Moser descreve-a como “o último astro literário dos Estados Unidos”, alguém que fez a literatura americana regressar brevemente a “uma época em que os escritores, mais do que meramente respeitados ou conceituados, poderiam ser famosos”. Mas quem foi exatamente a ensaísta, crítica e escritora Susan Rosenblatt (1933-2004), que o mundo ficou a conhecer como Susan Sontag?

Foi com o intuito de responder a esta pergunta — ou de pelo menos aproximar-se de uma resposta tanto quanto possível — que Moser, escritor e tradutor norte-americano, decidiu avançar para a escrita de “Sontag: Her Life and Work”, já depois de ter sido o autor de “Why This World”, uma biografia sobre a autora brasileira Clarispe Lispector traduzida para português com o título “Porquê Este Mundo”.

Publicado originalmente em 2019, “Sontag: Her Life and Work” chega agora a Portugal com o título “Sontag — Vida e Obra” (ed. Objetiva), já depois de, nos Estados Unidos, a obra ter sido distinguida em 2020 com um prémio Pullitzer, na categoria “Biografia ou Autobiografia”.

A capa do livro, que chega às livrarias portuguesas na próxima segunda-feira, 7 de março

Antes da chegada às livrarias portuguesas de “Sontag — Vida e Obra” — apontada para segunda-feira, 7 de março —, o Observador pré-publica um capítulo do livro, escrito depois de Moser ter tido acesso ao arquivo mais restrito e privado da escritora e depois de “centenas de entrevistas” com a família, amigos e adversários da biografada.

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Intitulado “Fazer reféns”, este capítulo centra-se na relação de Susan Sontag com a fotógrafa Annie Leibovitz e na forma como a escritora vivia as suas relações mais próximas e amorosas. Como escreve a dada altura o biógrafo, Susan “era ótima com intimidade casual, sussurrando uma confissão a um jovem escritor deslumbrado, visitando um museu com um amigo que via uma vez por ano” mas “quando novos amigos cruzavam a fronteira, passando de conhecidos a íntimos, muitas vezes viam-se sujeitos à tirania”.

“Fazer reféns”

Susan passou o outono de 1989 em Berlim, onde começou a escrever O amante do vulcão, romance com que andava a sonhar havia muito tempo, o primeiro que completaria desde Death Kit. No entanto, o trabalho foi engolido pelos eventos mundiais. A 9 de novembro, depois de uma sessão no cinema do seu amigo Alf Bold, ela, Karla e Alf saíram para a rua, onde olhos lhes começaram a arder por causa do gás lacrimogéneo. Enquanto assistiam ao filme, as autoridades da Alemanha Oriental tinham anunciado que o Muro de Berlim seria demolido. Ao cabo de vinte e oito anos a reforçar a fronteira com minas terrestres e metralhadoras, a Polícia da Alemanha Oriental ainda estava confusa. «Algumas pessoas pareciam demasiado satisfeitas; portanto, lançaram gás lacrimogéneo por cima do muro», diz Karla. «A Susan achou aquilo muito divertido.» Para quem sonhava com um mundo sem muros, aquela noite pareceu um triunfo.

Susan em breve desfrutaria de um triunfo particular numa área onde até então nunca havia tido sucesso: o dinheiro. A sorte inesperada teve três origens: a primeira era o contrato de 800 mil dólares com a FSG; a segunda prendia-se com uma bolsa da Fundação MacArthur, de 250 mil dólares, e um seguro de saúde, a serem pagos durante cinco anos, a partir de 1990. As bolsas não tinham qualquer restrição ou contrapartida, já que os seus beneficiários não precisavam de fazer o que quer que fosse pelo dinheiro. O mesmo não pode ser dito da terceira e mais opulenta fonte de todas: Annie Leibovitz

O dinheiro permitiu a Susan comprar, pela primeira vez na vida, um apartamento. Essa fora uma prioridade desde o incêndio, e mesmo antes da bolsa da MacArthur, já tinha decidido comprar alguma coisa. Mantivera por muito tempo a esperança de ser selecionada para a bolsa e falava amiúde disso — especialmente porque em várias ocasiões ouvira dizer que havia sido considerada, mas preterida na escolha final. Mais tarde soube o motivo: fora vetada por um membro do conselho, Saul Bellow, que a detestava e tinha um longo histórico de oposição a subvencionar mulheres e «militantes negros».

Depois de visitar vários apartamentos com Peter Perrone, Susan ficou enfastiada. «É como ir comprar natas azedas», disse a Karla. Peter continuou a procura sozinho e ajudou-a a reduzir a escolha a dois imóveis. Um deles era um loft gigantesco no SoHo, o bairro onde ela já morava, de quase quinhentos metros quadrados, que lhe proporcionariam um bom espaço para a biblioteca. O outro era uma penthouse no London Terrace, um prédio que ocupava um quarteirão inteiro em Chelsea, com uma vista ampla para o Hudson e o Empire State Building, além de lareiras de mármore em divisões de pé-alto. A escolha entre esses dois apartamentos era menos entre casas do que entre sensibilidades, entre vidas, conforme Susan compreendeu imediatamente.

«Não sei qual deles escolher», disse a Perrone, «porque o loft no SoHo é literalmente escolher a vida de um monge ou de um erudito, e o apartamento no London Terrace é completamente diferente.» O loft não era especialmente elegante. «Tinha apenas muito espaço», explica Perrone. «Teria que ver com os livros dela, com o seu trabalho, a sua vida interior, a sua dedicação. O London Terrace era de facto muito glamoroso e evocava uma persona diferente.»

Ela passaria o resto da vida no London Terrace. Alguns meses mais tarde, outra penthouse no mesmo complexo ficou disponível e Annie ocupou-a. O London Terrace não era só glamour. Chelsea ainda se estava a aburguesar, e os prédios encontravam-se muito próximos de alguns bairros populares bastante precários. Os edifícios eram velhos, com mato a crescer nos terraços e fendas nos ladrilhos do chão. No entanto, a chegada de Sontag e Leibovitz apontava a direção para onde o bairro caminhava. «Estou a ler Contra a interpretação — e dou comigo a sorrir — por te poder carregar comigo — posso ler-te e sentir-te — és tão especial», escreveu Annie num avião em junho de 1989. «Como é que posso amar-te mais. Como é que eu posso amar-te melhor…»

«Nunca fui criança!», exclamara Susan nos seus diários, décadas antes. Agora, com Annie, parecia estar a retroceder a uma infância que nunca tivera. Em tantas das suas relações «feudais», havia procurado mais um pai ou uma mãe do que um ou uma amante. «Interiormente, ela era apenas aquela criança encantadora, linda», disse Annie. «Tinha tanto prazer com a vida.» A palavra «criança» aparece em muitas descrições de Susan na época. Quando Karla Eoff se ausentou por um fim de semana em que ela ficou em casa a trabalhar, ao regressar na segunda-feira, espantou-se com a sua incapacidade de cuidar de si no que respeitava ao mais básico. «Estava com as mesmas roupas, não tinha tomado banho nem escovado os dentes, nem nada, como uma criança.»

Annie não só era rica, como era generosa de uma maneira arrebatadora. E queria cuidar de Susan. «Eu queria possibilitar-lhe tudo, quaisquer que fossem as suas necessidades. Sentia-me como uma pessoa a cuidar de um monumento importante. Amava a Susan.»

Annie parecia a mãe perfeita. No final dos anos 1980, abastecida com os milhões da Vanity Fair e de uma série de ostentosas campanhas publicitárias, podia oferecer-lhe uma vida impensável poucos anos antes, quando Susan tivera de se encolher debaixo de uma lona plástica na King Street. Annie não só era rica, como era generosa de uma maneira arrebatadora. E queria cuidar de Susan. «Eu queria possibilitar-lhe tudo, quaisquer que fossem as suas necessidades. Sentia-me como uma pessoa a cuidar de um monumento importante.»

Annie queria comprar a Susan o tempo necessário para ela trabalhar. «Amava a Susan», diz. «Achava-a uma grande artista, e fazer essas coisas deixava-me mesmo feliz.» Oferecia-lhe confortos que ela possivelmente nunca teria condições de custear. À medida que as flores dadas no começo se transformaram no pagamento de todos os aspetos da vida de Susan, a generosidade de Annie tornou-se tema de comentários perplexos. Havia os táxis de luxo, as passagens em primeira classe, o chef particular que Annie mandava ao apartamento de Susan, a empregada que se encarregava de o limpar — e o apartamento em si, pelo qual em breve pagaria: primeiro «apenas» a manutenção, 3500 dólares por mês, e depois também a hipoteca, bem como o estúdio que lhe alugou no majestoso Police Building, na Centre Street, um apartamento com uma entrada privativa e elevador, onde Susan podia trabalhar no seu romance — «Ela de facto começou a trabalhar em ficção quando contou com alguma ajuda e apoio», diz Annie, «o que era empolgante» — e, por fim, o escritório no prédio na Vandam Street, onde Annie tinha o seu estúdio. Esses retiros estender-se-iam, ao longo dos anos, para outros lugares que Annie possuía, mas que estavam disponíveis para Susan: uma casa no Hudson Valley e o sonho de Susan: um esplêndido apartamento à beira do Sena, sem esquecer férias magníficas, um guarda-roupa inteiramente novo, presentes infindos.

E Annie não estava apenas a sustentar Susan. De maneira direta ou, com mais frequência, indireta, sustentava toda a gente em seu redor. Pagava-lhe todos os assistentes. E, por intermédio de Susan, muito do dinheiro acabava por chegar a David, «a ponto de ser ela a comprar todos os anos as pulseiras Navajo que Susan oferecia ao filho pelo Natal». Também passou a sustentar Nicole, empobrecida depois da morte do pai esbanjador em 1984: «Limitava-me a ligar à Annie e dizer: ‘A Nicole está a precisar de dinheiro’, e ela enviava-o», diz Karla. Uma das tarefas do assistente seguinte de Susan, Greg Chandler, era depositar cheques de Annie. Depois de a bolsa MacArthur ter acabado, os cheques ascendiam a 15 mil dólares por semana. O contabilista estima que, ao longo do seu relacionamento, Annie tenha dado a Susan pelo menos oito milhões de dólares.

Se é fácil compreender o atrativo de tamanha generosidade, o relacionamento amoroso entre as duas — o mais longo da vida de Susan — expressar-se-ia numa linguagem que, vista de fora, muitos considerariam difícil de decifrar. Desde muito cedo, Susan dava a impressão de querer escapar da relação, e o seu desconforto saltava à vista de todos. Começou a disparar uma saraivada de invetivas contra Annie, diz Richmond Burton, «como uma pequena metralhadora».

«Era aquela voz intimidadora, paternalista, levemente indignada, superior», diz Stephen Koch. Richard Howard recorda uma constante litania de ataques a Annie — «És tão burra, tão burra» — que o levou a quase pôr termo a uma amizade de décadas. Da primeira vez que Karla ouviu Susan usar a palavra «estúpida» — a sua acusação central —, «lágrimas começaram a marejar-lhe os olhos quase imediatamente. Era como uma criança e a mãe abusiva». Joan Acocella, que escreveu um perfil de Susan para a New Yorker em 2000, nunca tinha visto coisa parecida.

As pessoas não suportavam estar num jantar quando a Susan ia com a Annie, porque ela era tão sádica, tão ofensiva, tão cruel. Evidentemente, quem ficava mal na fotografia não era a Annie. A Susan dizia alguma coisa sobre Artaud e virava-se para a Annie e dizia: «Bem, não vais entender de quem se trata.» Era simplesmente inacreditável. Um comportamento absolutamente inacreditável e que se repetia sempre que as víamos juntas.

«Eram o pior casal que conheci, em termos de indelicadeza, incapacidade de ser gentil, ressentimentos guardados», diz David, que estava longe de ser amigo de Annie. «Eu disse [à Susan] mais de uma vez: ‘Sê mais amável com ela ou deixa-a’.» Contou a Michael Silverblatt, amigo próximo de Susan nos anos 1990: «Essa mulher que tanto admiras, estimas e adoras — toleras a conduta dela com a Annie — é capaz de ser muito malvada, barulhenta, violenta, vulgar.»

Annie estava sentada a seu lado quando Susan disse a Marilù Eustachio, apontando para ela com um gesto de desprezo: «Esta aqui não entende coisa nenhuma.» Noutra ocasião, com Annie por perto, comentou, animada, a outro fotógrafo: «És o único fotógrafo interessante dos Estados Unidos.»

No dia em que Silverblatt conheceu Annie, Susan disse-lhe que «se sentia obrigada a explicar-lhe que ela seria a pessoa mais estúpida que eu já conhecera na vida». Com a mesma frequência, chamava-a imprestável na sua presença. Annie estava sentada a seu lado quando Susan disse a Marilù Eustachio, apontando para ela com um gesto de desprezo: «Esta aqui não entende coisa nenhuma.» Noutra ocasião, com Annie por perto, comentou, animada, a outro fotógrafo: «És o único fotógrafo interessante dos Estados Unidos.»

«Poderíamos estar no L’Ami Louis a celebrar o aniversário de Susan», diz Burton, referindo-se a um restaurante parisiense famoso pelos preços exorbitantes. «Os insultos dela estragavam qualquer clima festivo. Era difícil não ficar com a experiência arruinada.» No primeiro Natal no London Terrace, Annie providenciou um jantar sumptuoso no novo apartamento. Compareceram Roger e Dorothea Straus, Peter Perrone, David e a namorada, Karla Eoff e talvez mais meia dúzia de pessoas. Quando os empregados trouxeram as entradas, Susan viu que elas tinham camarão, levantou-se de repente, atirou o guardanapo e gritou a Annie: «Como é que podes ser tão estúpida? O David é alérgico a marisco! Como podes ser tão burra?»

Annie saiu disparada. Karla encontrou-a a soluçar na cama de Susan. «Mas o que é que preciso de fazer?», perguntou ela. «Mas é suposto que saiba ler a mente dos outros? Não sabia que o David era alérgico a marisco.» Depois de alguns minutos, recompôs-se: «Vou ligar para outro restaurante e vou lá eu buscar uma bosta de uma entrada para o David, alguma coisa que não o mate.» Pediu para lhe trazerem o carro e voltou com um recipiente, que colocou diante de David. «Mil desculpas por quase te ter matado», disse. «Não era a minha intenção.»

Quando tinha as rédeas, a própria Annie conseguia ser tirânica. À medida que a sua notoriedade aumentava, também a equipa crescia e com ela a sua má fama. «Tinha uma reputação péssima entre assistentes, atirava-lhes revistas, gritava, constrangia-os em público, durante as sessões de fotografia», diz um assistente, Christian Witkin. «A intimidação, os sinais que ela emitia: ia direita à jugular, atacava os pontos fracos.» Ainda assim, pagava bem aos empregados, que tinham funções bem definidas e podiam ir embora quando quisessem.

A distinção entre amabilidade e subserviência, entre generosidade e contemporização, entre seguir em frente e masoquismo era uma distinção que a própria Susan tinha dificuldade em respeitar.

Segundo todos os relatos, Annie era amável com amigos, familiares — e com Susan. Susan era o oposto. Era ótima com «intimidade casual», sussurrando uma confissão a um jovem escritor deslumbrado, visitando um museu com um amigo que via uma vez por ano. No entanto, quando novos amigos cruzavam a fronteira, passando de conhecidos a íntimos, muitas vezes viam-se sujeitos à tirania. A própria Annie amava Susan o bastante para suportar os golpes. «Eu teria feito qualquer coisa», diz.

Annie comportava-se em relação a Susan exatamente como Susan se comportava em relação a qualquer mulher — Harriet, Irene, Carlotta — que não lhe retribuía o amor em igual medida. A distinção entre amabilidade e subserviência, entre generosidade e contemporização, entre seguir em frente e masoquismo era uma distinção que a própria Susan tinha dificuldade em respeitar. Um amigo, Vincent Virga, cujo companheiro era um alcoólico em reabilitação, vê a reação de Annie como clássica:

A Annie tinha aquele comportamento quase pueril — não infantil, pueril — que têm os viciados. E era refém da Susan. Lembrava-me uma frase dos Al-Anon: «Nós não temos amantes. Nós fazemos reféns.»

Pouco depois de começar a trabalhar para Susan, Greg Chandler estava num carro, a regressar de uma exposição de Richmond Burton, quando, no meio de uma conversa inócua sobre a noitada, Annie cometeu um pequeno erro gramatical, e Susan explodiu: «Sabes, se tivesses ido para a faculdade, saberias que o que disseste te faz parecer uma idiota chapada!»

Alguns dias depois, fui ao estúdio da Annie e vi como ela era no trabalho: exatamente como a Susan, muito mandona, muito controladora, muito exigente, muito irritadiça. Todas aquelas pessoas à sua disposição — e, no entanto, com a Susan, uma criança.

«Tu és boa, mas podias ser melhor», disse Susan a Annie quando se conheceram. O conselho caiu em ouvidos atentos: «Queria fazer coisas melhores, tirar fotografias que tivessem importância.» Assim como o sucesso de Susan, o seu também advinha da insegurança transfigurada em perfecionismo. Ambas eram tirânicas com os outros e mais ainda consigo. Muito do seu sucesso devia-se ao facto de terem encontrado os professores — os mestres — certos para as ajudarem a progredir. Quando Annie foi para a Vanity Fair, tendo transcendido o sexo, as drogas e o rock‘n’roll da Rolling Stone, jurou que iria «acabar com aquela reputação de miúda que faz com que as pessoas se dispam». Depois de conhecer Susan, teve a esperança de dar o passo seguinte — com a ajuda da grande crítica de fotografia —, deslocando-se da banca de revistas para a parede do museu.

Queria que Susan lhe ensinasse a tirar «fotografias que importam». Susan ajudou-a, assim como fazia com tantos outros que entravam na sua vida naquela altura. Para muitos, era um guru: a professora que insistia para que lessem mais, a irmã mais velha que os arrastava para ver filmes estrangeiros, a sofisticada gourmet que lhes apresentava pratos exóticos. O seu entusiasmo pela cultura e o seu anseio por partilhá-la eram genuínos, mas ela nem sempre conseguia distinguir a relação entre professor e aluno da relação entre senhor e escravo.

Quando se conheceram, Annie expressou ânsia por assumir a posição de submissão. Disse a Susan que ela era a mulher mais inteligente que conhecia e que se sentia intimidada pela sua capacidade intelectual. De início, assim como tinha instigado Mildred a ler Henry James, Susan insistia para que Annie lesse. «Queria que a Annie lesse todos aqueles livros», diz Virga. «Estava a tentar instruí-la.» Não precisou de muito para que ficasse frustrada com o ritmo de Annie e passasse a assumir uma postura superior em relação àquela mulher tão formidável noutros aspetos: o facto de ela não conhecer a obra de Balzac era mencionado com frequência, em voz alta e em público. Se Susan admirava a inteligência indisciplinada de Irene Fornés e Paul Thek, não conseguia sentir a mesma admiração pela de Annie.

Continuava a tentar modelar a companheira ideal por que ansiara desde a infância e comportava-se com Annie como havia feito com a irmã: «Achava que eu não estava à altura do meu potencial», lembra Judith, «e fazia questão de mo mostrar constantemente.» Também fazia questão de o mostrar a Annie. Embora os amigos de ambas ficassem, por vezes, mortificados com o comportamento de Susan, a única pessoa que importava — a própria Annie — não ficava. «Eu precisava de ser mais séria, ponto», diz.

Michael Silverblatt perguntou-lhe certa vez porque permanecia ela com uma pessoa que criticava constantemente. «Tens de entender», respondeu-lhe Susan. «A Annie foi para a cama com o Mick Jagger. Foi para a cama com praticamente todos os homens que fotografou quando trabalhava para a Rolling Stone.»

Susan julgava que estava a ser útil, inclusive na área dos sentimentos e das emoções. Michael Silverblatt perguntou-lhe certa vez porque permanecia ela com uma pessoa que criticava constantemente. «Tens de entender», respondeu-lhe Susan. «A Annie foi para a cama com o Mick Jagger. Foi para a cama com praticamente todos os homens que fotografou quando trabalhava para a Rolling Stone.» Perguntou a Silverblatt se ele conhecia a expressão «amigos coloridos», que ela aprendera com Annie. Ele ficou surpreendido por ela nunca ter ouvido uma expressão tão comum.

«Tive de ensinar à Annie o que são emoções. Não somos amigas coloridas, e isso, tanto quanto sei, é algo que a Annie deixou de praticar, mas eu não conseguiria estar com alguém que tem amigos coloridos.» A Susan via como tarefa sua ensinar à Annie o que ela, Susan, julgava serem emoções, as emoções humanas.

Jamaica Kincaid tinha dito que Susan desejava ser uma boa mãe do mesmo modo que alguém poderia desejar ser uma boa atriz; a própria Susan confessava que não tinha talento para o amor; Steve Wasserman detetou «uma pequena guerra entre as muitas que se desenrolavam de forma simultânea dentro dela», uma guerra entre dois conceitos de amor. Havia um no qual ela acreditava intelectualmente e outro em que acreditava emocionalmente:

De um lado havia um desejo de ser uma pessoa amável e generosa, e de outro uma pessoa que tinha uma visão do amor muito sufocante, limitadora, o oposto da conceção de John Lennon, que assenta na ideia de que se recebe o amor que se dá. O amor é a arte da expansão. Não é como se a pessoa tivesse uma quantidade finita de amor e, de cada vez que o desse, ficasse com menos para si. Não é assim que funciona. Acho que ela julgava que a coisa funcionava assim. Algo como: se eu lhe der amor, fico com menos para mim.

Em The Mind of the Moralist, Susan descreveu a sexualidade que a terapia freudiana se esforçava por dominar. «O poder é o pai do amor» num contexto que inclui «o facto parental da dominação». Para as crianças, a autoridade dos pais é essencial. No entanto, se não for sublimada na idade adulta, essa forma de amor pode resvalar para o sadomasoquismo. A pessoa madura deve, portanto, evoluir para além da «conceção sádica do coito» para alcançar «um amor ideal expurgado de influências parentais, uma troca entre iguais». Em jovem, enunciou claramente esse objetivo. Todavia, ao entrar na última fase da vida, ainda não o havia alcançado.

Susan era tão perspicaz em tantos aspetos que a incapacidade de compreender o seu efeito sobre os outros desconcertava as pessoas que a rodeavam. Pelo menos desde a faculdade, amigos discutiram perplexos a hipótese de ela ser ou não intencionalmente malévola, e muitos concluíram que era apenas incapaz de perceber o seu efeito sobre os outros. «Não é que ela quisesse magoar as pessoas», disse a velha amiga Martie Edelheit, que meditou sobre o fenómeno desde a época de Chicago. «Era apenas aérea, distraída.»

A fama protegia-a de uma parte das consequências do seu comportamento. Nunca lhe faltaram bajuladores. E havia sempre gente — assistentes, editores, agentes, amigos — para consertar o estrago causado por ela.

Trinta anos antes, Alfred Chester disse que ela era «extraordinariamente desprovida de tato». Susan replicava que era «burra, insensível» — embora também recordasse a discordância de Irene: «Ela acha que eu sei o que estou a fazer, mas que sou cruel.» Porém, os seus escritos sobre «X» revelam uma autoconsciência — um desejo de compreender as suas falhas e expurgá-las — que se dissipou. A fama protegia-a de uma parte das consequências do seu comportamento. Nunca lhe faltaram bajuladores. E havia sempre gente — assistentes, editores, agentes, amigos — para consertar o estrago causado por ela. Cada vez mais, quando falava de incertezas ou vulnerabilidades, situava-as sempre no passado, atribuídas à juventude ou à inexperiência; e, se Annie era refém, Susan também o era — de uma força irracional que a condenava a repetir, uma e outra vez, o mesmo guião; a lutar, uma e outra vez, nas mesmas «pequenas guerras». Apesar da distância que estabeleceu entre si e Freud, as suas ações afirmam o argumento central dele: a assimetria entre o consciente e o inconsciente.

Nos seus últimos anos, perdeu imensos amigos. Mas algumas das pessoas que sentiam não ter outra escolha que não afastar-se amavam-na pelo mesmo motivo que se sentiam magoadas por ela. Tal como uma criança está isenta das regras dos adultos, também Susan estava.

O seu alheamento em relação a tantas coisas, desde escovar os dentes a pagar as contas, era comovente. A exemplo de Mildred, não sabia ao certo onde ficava o interruptor da luz, e o desequilíbrio entre o seu talento para as ideias e a sua incapacidade para a vida quotidiana afigurava-se excruciante, para si e para os outros. Havia gente que via o seu problema melhor do que ela própria e desejava protegê-la. «Observá-la, estar perto da sua inteligência e do seu conhecimento, ouvir as suas opiniões, isso tudo era um banquete delicioso», disse Kasia Gorska, uma jovem estudante polaca que trabalhou primeiro para Susan e depois para Annie. «De certo modo, era como uma criança.»

Infelizmente, ela odiava a criança que os outros adoravam. Décadas antes, Harriet Sohmers via a pose máscula de Susan como uma carapaça para proteger uma natureza vulnerável: «Tudo o que veio depois foi o assassinato dessa criança que ela era.» Foi um assassinato necessário. O eu metafórico — «Susan Sontag» — ajudou a criança — «Chamem-na Sue» — a sobreviver, mas a determinação de ser outra que não ela própria teve um preço alto. Aqueles que tentavam amar ou proteger a criança eram muitas vezes mutilados pela metáfora. «Por trás de toda aquela personalidade monstruosa havia uma pessoa realmente aterrorizada e doce», explicou Karla Eoff. «Quando conseguíamos estar com essa pessoa, era realmente maravilhoso.»

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