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“Há mais de 1 semana que te pedi 500€. Se fosse o Rui já terias resolvido o problema. Tu sempre vais cumprido com ele.”
Este pedido — ou, melhor, esta exigência — surge num e-mail de agosto de 2012 que Fátima Galante terá enviado ao advogado José Santos Martins. Nele, a ex-juíza desembargadora argumenta que “só assim pode ser possível estar de férias com dinheiro para dois” e fala em obras que fez em casa. Referindo-se ao juiz, insiste: “Imagina que sou o Rui e trata do meu assunto”.
O e-mail serve, oito anos depois de ter sido enviado, como prova para o Ministério Público (MP) para colocar a Galante, Rangel e o destinatário do e-mail na lista dos 17 acusados no âmbito da Operação Lex. Mas por que razão uma juíza desembargadora, a precisar “urgentemente” de 500 euros, pede dinheiro a um advogado por e-mail? O MP responde a esta pergunta, resumidamente, na acusação de mais de 800 páginas a que o Observador teve acesso: durante “duas décadas”, José Santos Martins assumiu “verdadeiramente, o papel de testa de ferro do casal”.
Rui Rangel e Luís Filipe Vieira acusados do crime de recebimento de indevido de vantagem
É preciso recuar aos anos 80 para perceber a alegada ligação do advogado a Rui Rangel — e, posteriormente, a Galante, com quem o ex-juiz continua casado, mas separado. Foi nessa década que Rangel e Santos Martins se conheceram na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde ambos estudaram e se licenciaram, relata o MP. Depois seguiram caminhos diferentes: Rangel ingressou os quadros da magistratura judicial e o colega de curso tornou-se um advogado que acabaria por trabalhar para empresas com ligações ao ramo do turismo e hotelaria — de onde viria a obter “avultados rendimentos”, segundo o MP.
O reencontro ter-se-á dado na década seguinte. Rangel e Santos Martins “tornaram-se próximos”, a partir do ano de 1995, nas palavras dos procuradores que assinam o despacho de acusação. E o advogado passou a representar o juiz e a mulher em negócios do casal igualmente ligados ao turismo, hotelaria e compra e venda de imóveis — atividade que “mantiveram oculta” do Conselho Superior da Magistratura e da Autoridade Tributária, não declarando os rendimentos.
Só que além das tarefas próprias de um advogado, Santos Martins terá concordado em “alocar valores obtidos” com os negócios do casal amigo “em contas bancárias” dele próprio. Segundo o MP, anos mais tarde, passou “a disponibilizar não apenas as suas contas bancárias, mas também contas bancárias do seu filho”, Bernardo Santos Martins, e até do enteado. O objetivo? “Ocultar valores auferidos” por estas empresas com a “emissão de faturação justificativa de negócios que não ocorreram”.
Em jeito de resumo: na tese do MP, Rui Rangel e Fátima Galante “desenvolveram uma verdadeira atividade empresarial paralela ao exercício de funções na Magistratura Judicial” e proibida pelo Estatuto dos Magistrados. Teriam várias empresas cujos rendimentos terão sido ocultados. Esta tarefa de ocultação pertencia, segundo o MP, a Santos Martins, que utilizava contas bancárias dele e de outros para o fazer. E esta será a razão pela qual Fátima Galante lhe pediu, por e-mail, os 500 euros de que precisava “urgentemente”.
“Vê se dizes a esses estúpidos que o homem não é fiel depositário”. A empresa administrada pelo pai de Galante
Foi a Alfa Investimentos Turísticos, Lda., uma empresa de construção, exploração, compra e venda de hotéis, terrenos ou bungalows que começou a representar em 1999, que permitiu ao advogado “iniciar uma atividade empresarial por conta própria”. Apesar dos “processos de insolvência e de execução por incumprimento de dívidas de elevadíssimo valor” que a empresa tinha, José Santos Martins conseguiu “elevados rendimentos” de forma ilícita, segundo o MP, que lhe permitiram “também colaborar” na atividade que Rui Rangel e Maria de Fátima Galante desenvolviam, através de familiares.
Mais propriamente com a Clavinvest, uma sociedade de compra e venda de imóveis, constituída em 2011 e administrada pelo pai da juíza, José Pinto Galante. Santos Martins tornou-se advogado da empresa em 2004 e foi o intermediário do casal de juízes para “ocultar a atividade de compra e venda de imóveis”, escreve o MP, que detalha que a atividade comercial da Clavinvest foi iniciada com capital oriundo de Galante e de uma “offshore, representada por um sobrinho de Rui Rangel”.
De 2001 a 2012, a empresa adquiriu e vendeu dezenas de propriedades por milhares de euros. Depois de os primeiros anos terem sido passados a comprar imóveis, os primeiros dois foram vendidos em 2004 — ano em que Santos Martins “colocou ao dispor de Rui Rangel uma conta bancária que titulou” no Bankinter. Um deles, em Sintra, foi vendido por 250 mil euros. A escritura foi celebrada no dia 17 de dezembro e três dias depois foram creditados 135 mil euros, na conta do Bankinter, escreve o MP — um valor que Rui Rangel reclamou como sendo seu. O MP estima que tenham sido depositados naquela conta mais de meio milhão de euros.
Também nesse ano, segundo o MP, foram depositados mais de 132 mil euros nessa mesma conta que Santos Martins usou para adquirir títulos no Barclays Bank. Apesar de o advogado ter sido “sempre o único titular da conta”, os títulos seriam, afinal, do juiz desembargador. Os lucros eram “entregues mensalmente aos magistrados” pelo advogado, fosse pela entrega de um valor todos os meses ou pelo pagamento de despesas, segundo a acusação.
A empresa continuou a vender os imóveis que foi adquirindo até 2018 — ano em que vendeu o último. Foi na sequência da venda de um deles, em 2012, que Galante enviou o tal e-mail Santos Martins. Isto porque o seu pai tinha sido notificado da data e hora para a realização da venda judicial, na qualidade de presidente da Clavinvest, que, segundo Galante, por estar perto de fazer 84 anos, “não tem idade para ser chateado com estes assuntos”. “Vê se dizes a esses estúpidos que o homem não é fiel depositário”, lê-se no e-mail onde Galante acaba por pedir 500 euros “urgentemente”. A empresa acabou por vender todos os seus imóveis — chegou a ser proprietária de 11 ao mesmo tempo — e cessou atividade em 2018, por insolvência. Ainda assim, mantém dívidas à AT de mais de 205 mil euros, segundo o MP.
Depois da insolvência da empresa, escreve o MP, o advogado e Rangel “mantiveram a mesma parceria negocial”, utilizando contas bancárias tituladas por Santos Martins, mas, sobretudo, pelo seu filho, Bernardo Santos Martins.
Rangel dava “ordens” ao amigo Santos Martins e angariava-lhe “clientela”
O advogado terá atuado ainda como “testa de ferro” do casal de juízes em mais empresas que tinham como sócios seus familiares, na tese da investigação. Era, segundo o MP, Rangel quem dava as ordens e instruções a Santos Martins, que as cumpria pontualmente. Uma das empresas, por exemplo, a Seme, tinha como representantes legais o irmão de Rangel, José Rangel, e o seu sobrinho. Era a empresa dona de um dos imóveis comprados pela empresa Clavinvest. Entre 1989 e 1999, nunca adquiriu património — apenas dois carros — e declarou sempre prejuízo fiscal. Tem, atualmente, mais de 39 mil euros de dívidas à AT.
Segundo o MP, o que Santos Martins fazia era recorrer a “contas caucionadas por empréstimos bancários” pertencentes às empresas para depois aplicar os “valores assim obtidos na aquisição dos títulos do Barclays Bank”. Esses títulos eram, afinal, de Rui Rangel, “o real beneficiário económico de tais importâncias”, lê-se na acusação.
Segundo a acusação, “a distribuição de lucros/rendimentos obtidos através desta parceria negocial abrangeu a atividade desenvolvida no escritório de advocacia de José Santos Martins”. Isto porque “a clientela” era “angariada, muitas vezes, através de contactos e conhecimentos de Rui Rangel”. Alguns dos clientes conheciam a “ligação próxima entre Rui Rangel e José Santos Martins”, lê-se na acusação.
“Eu não sou um banco”. Galante emprestou dinheiro ao advogado e avisou-o do seu “poder”: “Basta um call”
A acusação entende que Fátima Galante tinha “perfeito conhecimento” dos “rendimentos auferidos” pelo marido, “tendo aderido ao plano”. Como prova disso servem as dezenas de e-mails trocados entre o casal de juízes e o advogado em que falavam da “alocação de valores em contas bancárias, sobre o destino desses mesmos valores e sobre as declarações de impostos de Rui Rangel”, lê-se no despacho.
Num deles, datado de maio de 2012, Galante — que o MP define como a “gestora de rendimentos” — pedia 4.500 mil euros ao advogado, dizendo que ainda não pagou “o cartão do Rui”, que cai na sua conta. Segundo o MP, a ex-desembargadora “foi, continuadamente, enviando e-mails e dirigindo mensagens a José Santos Martins”, nos quais exigia receber dinheiro ou que fossem feitos determinados pagamentos.
Mas, no âmbito da “parceria económica” que mantiveram, Galante também “emprestou dinheiro a José Santos Martins, valores que não se confundem com os rendimentos de Rui Rangel”. Trata-se de um “valor de uma indemnização que esta recebeu por conta do furto de um veículo”. Segundo o MP, eram valores cujo pagamento Galante “vem exigindo a José Santos Martins há largos anos” — e não é claro se ele alguma vez lhe pagou a dívida.
Por exemplo, num e-mail de 2013, lembrava-lhe: “Eu não sou um banco e privei-me do que era meu para te ajudar e atravesso agora sérias dificuldades económicas”. Por fim, deixava “um aviso”: dizia-lhe que tinha “muita força” e “muito poder”. “Basta um call”, dizia, acrescentando: “PAGA e não demores muito porque a minha paciência chegou ao fim“.
Estas são apenas algumas das dezenas e dezenas de comunicações a que o MP acedeu e que agora utiliza para acusar o ex-desembargador Rui Rangel de 20 crimes, Fátima Galante de nove e o advogado José Santos Martins por dois crimes de corrupção, um crime de abuso de poder, quatro crimes de falsificação de documento, seis crimes de fraude fiscal e um de branqueamento. O filho de Santos Martins também vai responder por seis crimes de fraude fiscal e um de branqueamento de capitais.
No processo crime — tal como no processo disciplinar que os viria a afastar da magistratura —, Fátima Garante e Rui Rangel sempre negaram a tese do Ministério Público, atribuindo as transferências de José Santos Martins a dívidas antigas que o advogado tinha por lhes pagar.