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A prematuridade ensinou-lhe a dar valor à vida. E ao amor. Carla Almeida tem dois filhos que nasceram prematuros. Duas histórias distintas, mas ambas marcantes. A filha mais velha, Inês, hoje com nove anos, nasceu após rompimento de bolsa, às 35 semanas. “Estava a dormir e acordei com o rompimento da bolsa. Dirigi-me ao hospital e a minha filha nasceu passadas cerca de quatro horas. Foi um parto relativamente fácil, ela era pequena e passado pouco tempo vieram trazê-la para o meu colo. Como tinha 35 semanas e mais de dois quilos, tudo parecia bem. Infelizmente acabou por ter que ir para a neonatologia, porque não tinha um bom reflexo de sucção e portanto, não era possível alimentá-la a não ser através de uma sonda”, explica.
Na segunda gravidez, chegou-se à conclusão que tinha uma “incompetência do colo do útero, o que terá provavelmente originado a prematuridade da primeira filha”. Carla foi internada com quase 22 semanas com um risco muito elevado de aborto. “Fiquei em repouso quase absoluto, a tentar aguentar aquele bebé dentro de mim, o maior tempo possível. Infelizmente, às 24 semanas, a bolsa rompeu e o bebé nasceu. Foi um parto complicado, porque eu não tinha qualquer contração e quando ele nasceu foi imediatamente levado de mim. Não o vi, não o toquei, não o senti…”, lembra.
O Pedro, hoje com 19 meses, tem contrariado as poucas probabilidades que uma das médicas obstetras daria para a sua viabilidade ainda durante a gestação de Carla. Foi durante a realização de uma ecografia que comentou com a mãe que aquele bebé não teria chances de sobreviver. Mas Carla acreditou e insistiu em manter a gravidez.
Após o nascimento prematuro, seguiram-se 110 dias de internamento no serviço de neonatologia da Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa. Uma experiência completamente diferente da irmã Inês, que esteve “apenas” dez dias internada. Ainda assim, Carla considera que “a experiência de neonatologia não é menos dolorosa por ser menos tempo. No caso da Inês, apesar de ter sido pouco prematura, durante o internamento descobriu-se que tinha tido um enfarte hemorrágico, tendo ficado com uma lesão extensa no lobo frontal esquerdo. O prognóstico era muito reservado quanto às eventuais sequelas. Era a minha primeira filha e chegar a casa sem ela é das recordações mais dolorosas que guardo”, diz-nos. Em relação ao internamento do Pedro, os dias passaram a ser vividos em torno dele, dos médicos e dos enfermeiros. “Foi uma vivência de extrema dor, pois sabíamos que a vida dele era muito frágil”.
Também Isabel Oliveira tem vivido tempos de algumas incertezas. É mãe de Luísa, hoje com dois anos e meio, 8,5 quilos e 80 cm de altura, uma menina que considera “sorridente, enérgica, com vontade de ser autónoma e um espírito de luta inigualável”. A mãe sentiu-se sempre bem durante a gravidez, mas desde a primeira ecografia que algo fazia prever diagnósticos pouco favoráveis.
Luísa nasceu às 30 semanas, mas desde a 25ª que os pais sabiam que o seu desenvolvimento ponderal e ósseo “estava muito aquém do esperado”. Foi preciso fazer nascer a bebé antes do tempo para tentar ajudá-la a crescer “cá fora” de forma a não comprometer mais o seu crescimento. Seguiram-se 99 dias de internamento no serviço de neonatologia do Hospital Pedro Hispano, em Senhora da Hora, tendo sido posteriormente transferidos para a pediatria do mesmo hospital. Mais tarde, foi necessária a transferência para a Maternidade Júlio Dinis, no Porto, quinze dias antes da alta.
Ao regressar a casa, Luísa tinha 1,910 kg e 42 centímetros, e uma série de complicações que levaram ao seu isolamento. Mãe e filha ficaram isoladas em casa durante treze longos meses. “Mantive-me em exclusivo a tratar da minha filha devido a um quadro de supressão imunológica”, refere Isabel. Dito por outras palavras, qualquer contacto com o exterior, com outras pessoas ou crianças poderia ditar uma infeção, pois Luísa não tinha quaisquer defesas. Devido a uma “neutropenia autoimune”, a criança acaba por ser um alvo apetecível a bactérias, vírus ou agentes infecciosos. Mesmo as visitas de familiares e amigos tiveram de ser muito limitadas.
A mãe regressou ao trabalho, para uma nova empresa (acabou por ser dispensada no anterior emprego), aos 16 meses da menina, ficando a mesma entregue aos cuidados da avó. “Ao final de 13 meses de assistência à Luísa, quando notifiquei que iria voltar ao meu local de trabalho, fui informada que o meu lugar já não estaria disponível”, conta Isabel. Esta é também uma das consequências que a prematuridade traz: o impacto social e familiar e as possíveis alterações a nível laboral dos pais. O estudo PACO, da responsabilidade do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), procura avaliar as perspetivas e experiências destes pais na vivência da prematuridade e os principais resultados indicam, entre outros aspetos, que seja concedido “um subsídio a 100% durante o período de internamento hospitalar e que o cálculo do abono de família inclua a prematuridade, bem como seja aumentado o número de dias do subsídio para a assistência de um filho que nasce prematuro”.
Começar a socializar
A situação de Luísa manteve-se até junho deste ano com cuidados de isolamento e sem contactos frequentes com outras crianças, afastada de locais públicos fechados, creches e todas as possibilidades conhecidas de socialização.
“Neste verão, e perante um quadro estável que nos fez pensar e decidir o que seria o melhor para a nossa filha, decidimos que o risco benefício deste isolamento teria de ser pesado com consciência, isto porque cada vez se tornava mais evidente o seu atraso de desenvolvimento, a sua estranheza e desinteresse pelas outras crianças, o fechamento cada vez maior no seu ‘mundinho’ de brincadeira”, afirma a mãe.
Aos dois anos e meio, Luísa pouco fala, tem dificuldade em compreender pedidos simples e “precisa de viver, conhecer novas caras, aprender a brincar com outras crianças e experienciar o mundo lá fora”. Foi então que Isabel e o marido Tiago Sousa decidiram ouvir a opinião dos pediatras e hematologistas que seguem Luísa, e iniciar um período de praia, ininterrupto, durante três meses, em que todos os dias a criança pôde viver novas sensações. “Curioso foi receber as primeiras análises da Luísa após iniciarmos esta experiência: os valores dos neutrófilos (tipo mais comum de glóbulos brancos responsável pela defesa do organismo) triplicaram. E este foi o incentivo de que precisávamos para perceber que tínhamos tomado a opção correta”.
No mês de julho, Luísa foi encaminhada para avaliação cognitiva e mental no Centro Hospitalar do Porto, onde foi avaliada por uma equipa multidisciplinar. “O diagnóstico não foi ainda concluído, sendo que a opinião geral é de que não seria adequado rotularmos a Luísa com uma patologia específica antes de lhe serem dadas as mesmas oportunidades de outras crianças: a vivência com os pares, a escolinha, uma rotina fora de casa, novos sítios, novas pessoas e novos estímulos”. Luísa foi então incluída num grupo de crianças deste Centro Hospitalar, inseridas numa ‘escolinha fictícia’, em que a tal equipa, em conjunto com uma educadora de ensino especial e duas enfermeiras, vão recriando vários momentos de aprendizagem, socialização e estimulação, de forma a exponenciar a sua reação e adaptabilidade.
Os pais sentiam-se apreensivos com esta decisão mas acabaram por ser surpreendidos: “No primeiro dia, ficou tranquila e sorridente, entrou pelo seu próprio pé, e seguiu o seu caminho para o Hospital de Dia. Quando a fomos buscar, o rosto transmitia alegria e satisfação, percebendo-se claramente que a sua sede de aprender, a curiosidade de experimentar mundos novos, explorar sítios e relações diferentes iria ser muito mais importante do que o nosso receio de separação”. Em simultâneo, a Luísa começou, a título privado, a frequentar a terapia da fala e ocupacional, muito importante para “a aquisição das competências da linguagem e para a estimulação da compreensão e competências / reações protetivas”.
Com todo o quadro positivo envolvente, estava dado o mote para o passo seguinte: a inclusão da Luísa numa creche dita normal, durante duas horas matinais, depois das terapias. “Com a concordância da educadora perspetivámos quinze dias de experiência, para perceber de que forma se adaptaria. Ao primeiro dia, parecia perdida numa sala tão ‘grande’ mas sempre ávida de explorar tudo o que a rodeava. Ao segundo, continuou a não demonstrar dificuldade em deixar-nos para trás e seguir. Ao terceiro dia, após largar a nossa mão prontamente e correr sozinha para sua sala, segura e curiosa, a educadora abordou-nos dizendo que, na sua opinião, não precisávamos aguardar mais, pois a Luísa dava todos os sinais de que a sua adaptação correria muito bem e que já podíamos pensar em deixá-la todo o dia”.
Aguentar a gravidez
Era a primeira gravidez de Marina Faria, fruto de um tratamento de fertilidade. Após várias tentativas de engravidar de forma natural, Marina e o marido Filipe Miranda avançaram para o tratamento que viria a dar a notícia que sempre esperavam: estavam à espera de um filho.
A gravidez decorreu de forma normal até à noite em que Marina começou a perder líquido amniótico e teve de ir de urgência para o hospital. A gravidez ia apenas nas 21 semanas de gestação. “Pensámos o pior. Sabíamos que com este tempo de gestação, não havia viabilidade de a bebé sobreviver. Foi-nos dito para refletirmos bem, pois a melhor opção era interromper a gravidez”. Mas esta não seria a decisão do casal. Marina decidiu esperar e insistir na gravidez. “Esteve seis semanas internada e a Matilde nasceu às 27 semanas e três dias de gestação, no Hospital Senhora da Oliveira Guimarães, com 1,020 kg e 30 centímetros, num dia muito atribulado e de fortes emoções. Nunca tinha sentido nada semelhante na vida”, explica Filipe.
Seguiram-se dias de dúvidas e de habituação a uma nova realidade. “Fomos sempre pais muito ativos na unidade de neonatologia, ajudando sempre em todas as tarefas, conforme ia sendo permitido. Queríamos sentir-nos úteis na recuperação da Matilde”. A bebé contraiu duas sépsis, ao sétimo e ao décimo quinto dia após o nascimento, tendo passado por momentos críticos. “Foi uma verdadeira guerreira, recuperou de dia para dia e, ao final de 65 dias, foi possível levá-la para casa”. E como viveu o casal durante este tempo? “Com um aperto no coração, a viver um dia de cada vez, mas sem nunca perder a força. Sempre acreditámos que tudo iria correr bem”.
Em casa, as rotinas seguiam de forma semelhante ao internamento: sem visitas de amigos e familiares nos primeiros tempos. As mesmas só aconteceram cinco meses depois e começaram por estar cingidas aos avós. “No primeiro dia, foi uma sensação estranha. Agora não havia enfermeiros. Estávamos ali sozinhos e tínhamos receio que algo acontecesse. Rapidamente ganhámos as nossas rotinas e acabou por ser mais fácil do que prevíamos”, explica o casal.
Reunimos três histórias distintas mas com um denominador comum: a ansiedade. “Nenhum casal se prepara para isto. É uma realidade para a qual nunca se está preparado. Chora-se muito. Há momentos em que desejamos falar com toda a gente e muitos outros em que não queremos nem conseguimos falar com ninguém. Aprende-se a viver todos os dias com o peso dessas emoções, porque nada está nas nossas mãos. Há sentimentos constantes de impotência, de esperança, de medo, de dor, de felicidade (em cada vitória). É preciso ter passado por uma neonatologia para se perceber a dimensão do que ali se vive”, explica Carla Almeida.
A vida, essa, passa a girar em torno dos filhos. Do que precisam, dos passos que dão, das vitórias e das necessidades. “Sempre me aconselharam a ser a mãe dos meus filhos, e não a sua terapeuta. No entanto, após estas duas experiências, os papéis vão-se entrelaçando muitas vezes”, adianta.
Desde o primeiro momento da prematuridade que os desafios passam a ser constantes. “O primeiro deles é a mudança de planos. Nada se desenrola como sonhámos. Em vez de sermos pais que pensam em fraldas, cremes ou outros detalhes, focamo-nos em valores de oxigénio, frequência cardíaca, retenção de dióxido de carbono, hemoglobina… Em vez de segurarmos, beijarmos, cheirarmos o nosso bebé, temos que amá-lo à distância… tocando-lhe nas mãos e pouco mais”, afirma Carla, que só segurou no filho Pedro pela primeira vez, 49 dias depois do seu nascimento. “E com ele vieram tubos e fios e apitos das máquinas. Descobrimos que o amor de mãe e de pai se constrói mesmo nas maiores adversidades e valorizamos cada momento como jamais imaginaríamos”, diz.
Estes pais têm consciência de que o caminho é longo e até imprevisível. “Tudo faremos para correr atrás do tempo que já passou, seguros de que a Luísa é obstinada e determinada. Há tanto para viver e não há tempo a perder. É isso que nos move e nos faz continuar a ter forças para correr todos os dias, de um lado para o outro, entre hospital de dia, creche, terapias diversas e consultas várias”, afirma Isabel Oliveira.
A prematuridade em números
O nascimento pré-termo é aquele que ocorre antes das 37 semanas de idade gestacional. Este pode ser classificado como extremo pré-termo (menos de 28 semanas), muito pré-termo (entre 28 e 31 semanas), pré-termo moderado (entre 32 e 33 semanas) ou pré-termo tardio (entre 34 e 36 semanas).
Existem atualmente 15 milhões de recém-nascidos pré-termo em todo o mundo. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), “a prevalência de parto pré-termo tem aumentado em muitos países nas últimas duas décadas. Um em cada dez bebés nasce prematuro em todo o mundo, adianta a OMS. Esta tendência deve-se ao aumento da gravidez múltipla, associado a tratamentos de fertilidade, e a alterações em fatores de risco populacionais, como a idade materna avançada e o elevado índice de massa corporal”.
Em Portugal, no ano de 2014, registaram-se 82.613 nascimentos, dos quais 6.393 (7,7%) foram pré-termo e 816 (0,99%) muito pré-termo. Anualmente, a percentagem de recém-nascidos com menos de 32 semanas de idade gestacional tem-se mantido estável, correspondendo a cerca de 1% do total de nascimentos.
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A percentagem de recém-nascidos com menos de 32 semanas de idade gestacional tem-se mantido estável, correspondendo a cerca de 1% do total de nascimentos.
O ISPUP desenvolve várias investigações ligadas à prematuridade em parceria com instituições europeias no sentido de perceber de que forma é que se tem respondido às questões de saúde levantadas por estas crianças. Para Henrique Barros, “Portugal pertence ao pelotão dos 15 ou 20 melhores países do mundo no que respeita às taxas de prematuridade. Claro que há aspetos a melhorar, mas dentro do nível da grande qualidade”. Apesar dos enormes avanços verificados nos últimos anos, o estudo europeu EPICE, do qual Portugal é um dos onze países participantes, através do ISPUP, revela que “é entre os muito pré-termo que se observa cerca de 60% da mortalidade neonatal e se verifica maior risco de sequelas a curto e a médio prazo (distúrbios do desenvolvimento como atrasos cognitivos, perturbações da linguagem, paralisia cerebral, dificuldades de coordenação e equilíbrio, défices visuais e auditivos)”.
Apesar dos grandes avanços da Obstetrícia e da Neonatologia, as causas de “um número considerável de casos de prematuridade são ainda desconhecidas”, explica Joana Saldanha, médica neonatologista da unidade de cuidados intensivos neonatais (UCIN) do Centro Hospitalar Lisboa Norte – Hospital de Santa Maria (CHLN-HSM). Muitos casos são multifatoriais: “Gravidezes gemelares, antecedentes maternos, como por exemplo, patologia ginecológica/obstétrica (malformações uterinas, fibromiomas ou história de insuficiência/cirurgia cervical), antecedentes de partos pré-termo anteriores, antecedentes de aborto/s no segundo trimestre, idade materna extremas (<18 ou >40 anos), raça afro-americana, história de familiares com parto pré termo e/ou própria grávida prematura e extremos de peso materno”.
Por outro lado, algumas patologias e estilos de vida também podem causar nascimentos prematuros: “Doença crónica (principalmente autoimune), doença periodontal, estilos de vida desfavoráveis (consumo de tabaco, álcool ou drogas, má nutrição materna, violência doméstica, acidente por impacto, classes sócio-económicas baixas, ansiedade), baixo nível de escolaridade e condições de trabalho difíceis”. Outras causas relacionam-se diretamente com a próprias gravidez, assinalando-se “o intervalo curto desde a última gravidez (menos de seis meses entre a data do último parto e data da última menstruação), técnicas de reprodução medicamente assistida em que se assiste frequentemente a gestações gemelares, hemorragias vaginais, diabetes, entre outros”, acrescenta a médica.
Henrique Barros alerta para as causas de prematuridade que podem ser evitáveis, como o tabagismo. “Uma mulher que deseja engravidar deve ter uma boa noção do risco e partir para a viagem devidamente preparada”. Por outro lado, no que respeita às causas de prematuridade não evitáveis, o presidente do ISPUP, refere o facto de as mulheres “serem mães cada vez mais tarde, terem cada vez mais filhos por técnicas de procriação medicamente assistidas e num ambiente de patologias crónicas que dão origem a gestações mais complicadas”.
Num estudo realizado pela UCIN do Hospital de Santa Maria, ainda a aguardar publicação, numa amostra de 65 prematuros com 32 ou menos semanas de gestação, concluiu-se que “25,4% das gestações foram fruto de reprodução medicamente assistida, sendo que em 61,5% destes casos, o procedimento resultou em gestação gemelar, o que implica de imediato uma gravidez de risco e maior probabilidade de prematuridade. Verificámos que num elevado número de casos as grávidas apresentavam uma doença congénita ou crónica (49%) prévia a esta gestação, e 23,5% tinham excesso de peso antes de engravidar, sendo o nível sócio-económico considerado bastante favorável. 60,8% das grávidas necessitaram de internamento hospitalar durante a gravidez e num número considerável de casos (45,1%) o parto foi desencadeado por causa materna, fetal ou ambas”, explica Joana Saldanha.
O bebé que não se idealizou
Uma vida em suspenso. Um turbilhão de sensações. Alguns pais desconhecem a realidade vivida numa unidade de neonatologia até passarem pela prematuridade. Depois do choque, começam a lidar com a realidade. “A entrada dos pais (muito frequentemente pela primeira vez, o pai, sozinho) numa UCIN é frequentemente um choque imenso. Já é um lugar comum dizer-se que os pais não estão preparados para a diferença entre o seu recém-nascido idealizado e o que se depara na incubadora. Mas de facto, o novo bebé é quase uma ‘desilusão’: frequentemente muito pequeno, magro, com uma pele vermelha escura e quase transparente, e cheio de tubos e sensores. Pode estar ligado a máquinas cheias de luzes e a apitar a todo o instante e geralmente anda muita gente mal identificada à roda do bebé, com tarefas ‘misteriosas’ e, na altura do internamento, com pouco tempo para muitas conversas”, explica a médica neonatologista.
Depois da fase inicial, surge então um período de aprendizagem. Os pais aprendem muito facilmente tudo o que se passa em roda do seu bebé. Ao fim de uns dias, já sabem interpretar os monitores, os níveis de oxigénio, as posições mais confortáveis do seu filho, o nível de distensão da barriga, se está ‘vivaço’ ou se quer dormir, quais as enfermeiras que o bebé ‘gosta mais’ para ser manipulado e quem são os médicos responsáveis a quem têm de fazer perguntas. Conseguem mesmo identificar pequenas mudanças do estado geral do seu filho que podem ser um sinal de alerta de que qualquer coisa não está bem”.
Os pais começam então a fazer parte da equipa, sendo fundamental o método canguru (colocação do bebé em posição ventral no peito da mãe ou do pai, fomentando o contacto pele com pele). “Conheço mães que chegam de manhã e só se vão embora à noite. São elas as verdadeiras prestadoras de muitos cuidados ao seu bebé. Tenho a certeza que, nestes casos, a transição para casa se faz de maneira o mais natural possível, sem sobressaltos. Outros pais consideram que pouco podem fazer e entregam os filhos à equipa à espera do dia de os levarem para casa. A todas as famílias, tentamos incentivar a prestação de cuidados cada vez mais ativa e semelhante à que vão ter de fazer quando estiverem fora do hospital”, explica Joana Saldanha.
Os enfermeiros destas unidades ocupam um papel fundamental, pois são eles que mais tempo passam com estes pais. Graça Roldão é enfermeira da UCIN do CHLN-HSM e vive diariamente esta realidade. “Em grande parte das unidades do país, existem já equipas multidisciplinares que acompanham o desenvolvimento do bebé e apoiam os pais. Saliento, para além dos enfermeiros e médicos, os fisioterapeutas, psicólogos, terapeutas da fala, assistentes sociais, entre outros”.
Vivem-se nestas unidades situações muito complexas, não raras vezes, “no limiar da vida”. Um dos enormes desafios que estes profissionais enfrentam são as perguntas sem resposta. “Os pais questionam, querem ter certezas e nós não as podemos dar. A vivência de situações de grande complexidade, coloca-nos também grandes dificuldades e dilemas do ponto de vista ético sobre as questões da sobrevivência e da qualidade de vida destes bebés e a responsabilidade de refletirmos sobre elas. Algumas vezes, porventura, o nosso cuidado pode ser o de proporcionar conforto, minimizar a dor ao bebé, apoiar os pais em momentos de crise (e também no luto)”, acrescenta Graça Roldão.
Uma das frases que estes pais e a própria equipa que cuida de bebés prematuros costuma utilizar é “uma hora de cada vez” pois vivem-se, não raras vezes, situações inesperadas e complexas. “De repente, quando parece que a unidade acalmou, ‘entra-nos’ pela porta dentro, um prematuro de 24 semanas, com 500 e poucos gramas, na incubadora de transporte e ventilado e cuja mãe tinha entrado repentinamente na urgência, já em trabalho de parto (e nós sem vagas), ou então, aquele bebé que até já estava nos cuidados intermédios, a crescer e a aprender a alimentar-se, faz uma apneia, tem que ser reanimado e vai para os cuidados intensivos para ser ventilado. Ou seja, a incerteza, a imprevisibilidade, as situações inesperadas, fazem parte do nosso quotidiano e temos que estar preparados para elas, convivendo num ambiente frequentemente muito stressante”, sublinha a enfermeira.
Passar a defender uma causa
Os pais entrevistados neste artigo sentiram grande apoio por parte dos profissionais que os acompanharam e trataram dos seus filhos. “Senti que o Pedro estava nas mãos de uma equipa formidável. Ficámos eternamente gratos aos médicos, e muito especialmente aos enfermeiros com quem dividimos tanto tempo e tantas experiências inesquecíveis. Nunca sentimos falta de apoio durante o internamento. Na minha opinião, as lacunas sentem-se mais quando se vem para casa. Tenho sentido que as respostas em termos de terapias nem sempre são suficientes. Felizmente, como sou terapeuta, acabo por trabalhar com o meu filho, mas sei que muitos prematuros não têm as respostas terapêuticas que necessitam e merecem, uma vez que o risco de sequelas é elevado”, defende Carla Almeida.
Marina e Filipe não têm razões de queixa. “Temos sido muito bem acompanhados. A UCIN o Hospital Senhora da Oliveira Guimarães tem sido distinguida como uma das que apresenta melhores resultados e é pioneira nas políticas de proximidade entre bebés e pais, ao disponibilizar quartos dentro da unidade para que a mãe possa permanecer na unidade durante 24 horas por dia, se assim entender”. Após a alta, a Matilde tem vindo a ser acompanhada em várias consultas no hospital e assim será até completar sete anos.
A experiência de um longo internamento pode levar a que os pais se mobilizem posteriormente nesta causa. Carla está neste momento envolvida na organização do primeiro Congresso Nacional da Prematuridade, a acontecer dia 19 de novembro, na Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais. Criou ainda um blogue onde partilha os desafios e exigências da vivência da prematuridade.
Filipe ficou ligado à associação Pais Prematuros, sediada no Porto, por considerar que poderia ser “uma mais valia para outros pais a passarem pela mesma situação”. O convite surgiu por parte de um responsável da associação que, em visita à unidade onde a Matilde estava internada, o convidou a criar um núcleo da associação em Guimarães, convite que aceitou de imediato. “Organizamos as iniciativas de comemorações do Dia Mundial da Prematuridade, fazemos visitas regulares ao serviço de neonatologia e conversamos regularmente com os pais de bebés prematuros, no sentido de lhes passar uma mensagem de força e de esperança. Depois de tudo o que vivi em relação à prematuridade, senti que poderia ser uma mais valia no apoio a esta causa”.
Existem duas associações que defendem a causa da prematuridade em Portugal: a associação Pais Prematuros, no Porto, e a XXS – Associação Portuguesa de Apoio ao Bebé Prematuro, com sede em Lisboa e núcleos que dão apoio, a nível nacional. Ambas surgiram da atitude altruísta de pais de bebés prematuros. Para continuar a ajudar casais que estejam a passar pela prematuridade, precisam de alguns apoios. A saber: “A Associação Pais Prematuros necessita com relativa urgência de uma pequena sede física, no Porto, onde reside a maioria da Direção, e de outra no Funchal, onde se reúne a maior secção regional, e de alguns meios financeiros que permitam desenvolver a estrutura e as atividades planeadas em todo o país. São apoios que as respetivas Câmaras Municipais e Misericórdias locais facilmente nos podem facultar”, defende Sílvia Grade, presidente da Direção. Na estratégia de ação, está prevista a abertura de outros hospitais à associação, à semelhança do que já acontece em Guimarães, Gaia, Funchal e Hospital de São João. “Queremos também assegurar a presença nos hospitais do sul do país, onde, por motivos vários, tem sido mais difícil entrar. É também importante que os pais prematuros se inscrevam e formalizem a sua ligação”.
A prematuridade não é hoje “uma fatalidade” e são conhecidas muitas histórias de sucesso. “Temos equipas médicas e de enfermagem de excelência, ao nível das melhores do mundo. Os resultados dos cuidados prestados nos hospitais nacionais falam por si. Importa que se perceba que, apesar de todos os riscos e incertezas, há exemplos positivos que se multiplicam – prematuros de 26 semanas que são crianças felizes em toda a sua plenitude e que em jovens adultos se revelam artistas, desportistas de alta competição, estudantes universitários brilhantes e profissionais de alta competência”, defende a responsável.
Também a XXS necessita de maior apoio, no que respeita à existência de recursos humanos e financeiros que garantam a sustentabilidade de um trabalho que é integralmente realizado por colaboradores voluntários. “A XXS necessita atualmente de ter um quadro de efetivos e aumentar o número de voluntários, garantindo no seu grupo uma maior diversidade de competências que possam dar uma resposta imediata a todos os pedidos que nos chegam. São cada vez mais as solicitações, e o que acontece é que há uma sobrecarga sobre os poucos voluntários que temos”, explica Paula Guerra, membro da Direção da associação.
Ambas as associações são ativas nas redes sociais, sendo possível aos pais acederem às suas páginas do Facebook e aos sites genéricos onde podem recolher informações úteis e eventualmente esclarecerem algumas dúvidas. “A nossa missāo é precisamente ajudar os bebés prematuros e as suas famílias a ultrapassarem aqueles que poderão ser os momentos mais difíceis das suas vidas. É muito frequente um isolamento dos pais de tudo o que os rodeia após o nascimento de um filho prematuro e na fase de todo o internamento. Às vezes, este isolamento prolonga-se após a alta hospitalar, normalmente nos casos dos nascimentos de extremos prematuros”, acrescenta Paula Guerra.
Não desistir
Lutar é a palavra de ordem para estes pais. Serão imensos os desafios a enfrentar ao longo da vida. “No nosso país, e embora com melhorias recentes e casos que correm muito bem, ainda há muitas dificuldades e os pais precisam muitas vezes de fazer um esforço financeiro e de disponibilidade de tempo e de entrega às múltiplas consultas e terapias para ultrapassar as necessidades dos filhos. É evidente que é muito importante haver uma equipa multidisciplinar a fazer o acompanhamento e o ideal seria a sincronização de consultas, terapias, entre outros, para centralizar tudo no espaço e no tempo. Mais tarde, a intervenção ao nível das escolas é também fundamental”, explica Joana Saldanha.
Alguns casos acompanhados nas UCIN’s do país deixam os próprios profissionais admirados. É o caso de Graça Roldão que chega a ficar “perplexa com a imensa força com que alguns bebés se agarram à vida. Isso faz deles uns meninos especiais pois lutaram para conseguir sobreviver. É evidente que atualmente os cuidados neonatais altamente sofisticados, permitem que bebés muito prematuros sobrevivam mas também é verdade que a vertente humana (seja por parte dos pais ou dos técnicos de saúde) é fundamental para um final feliz”.
Relativamente aos pais, aqueles que vivem diariamente momentos de grande incerteza e de “muitas dificuldades” mesmo após a alta dos seus filhos, a enfermeira considera-os como “guerreiros” pois, não raras vezes, a luta não termina com a alta hospitalar.
Não será pois de estranhar que a ligação entre os profissionais de saúde, os pais e os bebés prematuros fique para a vida. “Acabamos por ter uma ligação especial com alguns pais e bebés que nos tocaram particularmente. Vamos acompanhando o seu crescimento, os seus novos desafios e também as suas dificuldades. Os pais acabam por nos fazer sentir como alguém que faz também parte da história daquela família. Ainda hoje, mantenho ligações com algumas famílias e crianças (alguns já adolescentes) e gosto imenso de saber dos seus percursos de vida”, avança Graça Roldão. As paredes das unidades de neonatologia, um pouco por todo o país, estão ocupadas com centenas de fotografias de bebés que passaram pelos serviços.
Como mensagem a outros pais que estejam a passar pela mesma situação, Filipe Miranda é perentório: “nunca deixem de acreditar que tudo vai correr bem mesmo quando parece que o chão vos está a fugir debaixo dos pés”. Aconselha ainda afastarem-se dos maus exemplos ou casos de insucesso veiculados pela internet. “Se surgir alguma complicação, devem procurar respostas para as mesmas. Por mais que seja difícil aceitar a realidade, há que viver um dia de cada vez”.