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ANNE-CHRISTINE POUJOULAT/AFP/Getty Images

ANNE-CHRISTINE POUJOULAT/AFP/Getty Images

Problemas cardíacos, infertilidade ou outro cancro. Como a ciência contorna os riscos dos tratamentos oncológicos

Os tratamentos contra o cancro são cada vez mais eficazes, mas não basta tentar curar, é preciso que o doente não "morra" da cura. São os efeitos secundários que a ciência tenta contornar.

A quimioterapia começou a ser usada contra o cancro nos anos 1970. Na altura, como agora, a vantagem em relação à ausência de tratamento era clara: o tempo de sobrevivência dos doentes aumentava significativamente. O problema era que os tratamentos também eram tóxicos, o que obrigou médicos e investigadores a preocuparem-se desde cedo com o impacto dos efeitos secundários na saúde e vida dos doentes. As limitações a esse objetivo eram o desenvolvimento da investigação científica, da tecnologia e dos cuidados de suporte aos doentes, mas também isso mudou, para melhor. Atualmente, os doentes sofrem menos com vómitos e náuseas, conhecem-se melhor os efeitos nocivos dos tratamentos e já existem (ou estão em estudo) soluções para os evitar e combater.

“Quando se usa um medicamento é porque o benefício é superior aos efeitos nocivos. E o benefício de salvar vidas [como na quimioterapia] supera os riscos do tratamento”, diz ao Observador Fátima Cardoso. A médica oncologista reforça que “não existe nenhum medicamento, por muito simples que pareça, que esteja livre de efeitos secundários”. Sabendo isto, os doentes terão mais ou menos facilidade em aceitar a toxicidade de um tratamento consoante a gravidade da doença. “Para tratar uma dor de cabeça, os doentes não estão dispostos a usar tratamentos com muita toxicidade.” Mas se a doença for grave e se houver confiança na eficácia do tratamento, os doentes estarão mais disponíveis para enfrentar os efeitos nocivos, diz a médica.

Isso não impede que a investigação científica e clínica trabalhe no sentido de melhorar a qualidade de vida dos doentes. Por um lado, estudam-se novos fármacos e novas formas de dar os medicamentos com a mesma eficácia, mas com menos toxicidade. Por outro, procuram-se formas de controlar os efeitos secundários, quer prevenindo que aconteçam, quer tratando os que se manifestam. “A preocupação com a prevenção sempre existiu, mas não havia tecnologia, não existiam os medicamentos ou a forma de os fazer”, diz Fátima Cardoso. A diminuição das defesas causada pela quimioterapia, que ataca os glóbulos brancos, é um bom exemplo disso. “Atualmente existem medicamentos que estimulam a produção de glóbulos brancos, mas a produção é muito complexa.” Foram as limitações técnicas que não permitiram que surgissem mais cedo.

"Quando se usa um medicamento é porque o benefício é superior aos efeitos nocivos. E o benefício de salvar vidas supera os riscos do tratamento."
Fátima Cardoso, diretora da Unidade da Mama do Centro de Cancro Champalimaud

O cabelo volta a crescer, mas as dores podem ficar mais tempo

As náuseas e vómitos estão entre os efeitos secundários mais relatados pelos doentes que estão a fazer quimioterapia. “São incomodativos, mas não deixam consequências a longo prazo”, lembra Fátima Cardoso, diretora da Unidade da Mama do Centro de Cancro Champalimaud. Estes sintomas podem estar presentes durante o tratamento e nos primeiros dias depois de o tratamento acabar, mas passam completamente. Desde a década de 1990 que os doentes têm acesso a medicamentos que previnem estes sintomas, tornando o tratamento de quimioterapia muito mais suportável do que nas primeiras décadas (a partir dos anos 1970).

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Outra das consequências conhecidas é a queda do queda do cabelo que, mesmo caindo completamente, volta a crescer. Às vezes, até fica mais forte, como frisa a médica. Há casos raros — muito raros — em que o cabelo não volta a crescer, o que pode ter um grande impacto, sobretudo para as mulheres. “Não dá para prevenir e não se sabe porque é que acontece”, diz a médica. Mas é tão raro que em 18 anos de carreira como oncologista só viu dois destes casos.

Rapar o cabelo não foi um problema para Inês Alves, que aos 33 anos teve cancro da mama. A peruca que comprou, e que por vezes ainda usa, ajudou-a a ultrapassar a situação. Mas o tempo que o cabelo demorou a crescer fê-la recear que nunca mais voltasse. Por enquanto, ainda está curto, mas é um pormenor que só a preocupa quando se olha de manhã ao espelho, de cara ensonada e sem maquilhagem. Preocupa-se mais com o facto de ainda não ter recuperado as sobrancelhas. “Pinto-as com um lápis. Era uma moda que odiava, mas admito que agora me dá jeito.”

Os vómitos e náuseas, a queda do cabelo e a fragilidade do sistema imunitário são consequências do mecanismo de atuação da quimioterapia que ataca as células que estão em divisão, como as do revestimento interno do sistema digestivo, da pele ou da medula. Mas é exatamente esse mecanismo que faz com que a quimioterapia seja tão eficaz a combater o cancro, porque ataca as células tumorais conhecidas por se dividirem a um ritmo acelerado.

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Inês Alves não sofreu com vómitos, enjoos ou aftas, mas perdeu a sensibilidade na ponta dos dedos e o resto da pele tornou-se muito mais sensível, como se tivesse uma queimadura. “Sentia como se cada célula do meu corpo doesse.” A sensação de formigueiro nos dedos ou membros, a perda de força ou os espasmos musculares são sintomas que aparecem associados a alguns tratamentos de quimioterapia. “Os objetos caíam-me das mãos e não conseguia cozinhar”, conta.

Estes sintomas são causados pela lesão das terminações nervosas, chamada neuropatia, quer sejam causadas pela quimioterapia ou por qualquer outro motivo — a zona (infeção com o vírus da varicela) também provoca neuropatia. Este problema pode afetar os doentes durante o tratamento, mas também pode persistir durante vários meses ou anos, porque as terminações nervosas têm uma regeneração lenta, ou seja, é preciso mais tempo para substituir as células danificadas.

Esta perda de sensibilidade, de força e de capacidade para realizar gestos de pormenor, como abotoar botões, pode tornar-se incapacitante e fazer com que o doente tenha dificuldade em retomar o trabalho ou uma vida diária normal após terminar o tratamento. Inês Alves só recuperou a sensibilidade nos dedos cerca de quatro meses depois de terminar a quimioterapia. “Foi uma felicidade incrível quando senti que podia manejar uma faca, pegar num copo ou abrir uma lata outra vez.”

“Sentia como se cada célula do meu corpo doesse.”
Inês Alves, teve cancro da mama aos 33 anos

A neuropatia é um efeito secundário muito comum dentro de um grupo de medicamentos chamados “inibidores de microtúbulos”, usados no tratamento do cancro da mama e do pulmão. Cerca de 30% dos doentes tratados com esse tipo de quimioterapia pode desenvolver neuropatia, que pode regredir completamente (mesmo que demore alguns anos) ou regredir a um ponto que deixa de incomodar o doente. Ainda assim, para 10% dos doentes o problema pode não ficar resolvido. “Têm sido feitos trabalhos para perceber o mecanismo [como é que a quimioterapia afeta as terminações nervosas], mas não tem sido fácil encontrar uma resposta”, diz Fátimo Cardoso. Quando esse mecanismo for conhecido, pode tornar-se mais fácil prevenir ou tratar o problema.

Há alguns medicamentos que aliviam a dor neuropática, mas também eles têm efeitos secundários. Por outro lado, assim que os sintomas aparecem, pode diminuir-se a dose dos fármacos para não agravar a situação. Então porque se continua a usar este tipo de quimioterapia? Porque se mostra eficaz, responde a médica. Os inibidores de micrótubulos aumentam a esperança de vida do doente e o tempo de vida sem reincidência do cancro — como interferem na divisão celular, fazem com que as células tumorais não se dividam e têm também um papel na morte celular.

O coração é sensível aos tratamentos, mas recupera

A investigação tem permitido tornar alguns medicamentos menos tóxicos para o organismo, mas outros continuam a afetar órgãos que não são o alvo do tratamento. O coração, por exemplo, é particularmente sensível aos tratamentos contra o cancro da mama.

Medicamentos como as antraciclinas ou um tipo específico de anticorpos monoclonais podem provocar efeitos nefastos. Para as antraciclinas, o risco de problemas cardíacos severos é de apenas 0,5%. No entanto, assim que o doente apresente sinais de doença cardíaca, tem de deixar de usar esse tipo de medicamentos. Depois, ou se opta por medicamentos menos tóxicos para o coração ou por formulações diferentes do medicamento. Neste caso, podem ser dadas antraciclinas lipossómicas, ou seja, o medicamento chega ao tumor transportado por pequenas vesículas (um mecanismo que o organismo já usa naturalmente para fazer transporte de moléculas entre células). Só não se usa com todos os doentes porque é cerca de 10 vezes mais cara do que as antraciclinas normais. Com o avanço da investigação, espera-se que surjam outras soluções menos tóxicas e a preços mais fáceis de suportar pelos sistemas de saúde.

Os anticorpos monoclonais anti-HER2 bloqueiam o recetor HER2, impedindo a divisão das células, ao mesmo tempo que sinalizam a célula tumoral para poder ser eliminada pelo sistema imunitário.

Os efeitos nefastos dos anticorpos monoclonais que bloqueiam uma proteína chamada “HER2” são mais comuns — cerca de 3% —, mas normalmente desaparecem depois de se interromper o tratamento. Aquela proteína fica aumentada num tipo de cancro da mama, o que faz com que o tratamento seja dirigido e eficaz. Mas a mesma proteína também existe nas células do coração, o que justifica que também sejam atacadas. Interromper o tratamento permite que as células cardíacas recuperem. Depois disso, o tratamento pode ser retomado sem prejuízo para o doente.

Por atacarem as células do músculo do coração (miocárdio), há medicamentos que podem provocar insuficiência cardíaca, que leva a cansaço extremo e falta de ar. Quando se deixa avançar a doença, a insuficiência cardíaca (falta de força para bombear o sangue) pode tornar-se irreversível e obrigar à toma de medicamentos para o resto da vida. Não existe forma de prevenir o aparecimento desta complicação, por isso é tão importante identificar os doentes que já têm um risco de problemas cardíacos à partida e detetar precocemente os sinais para poder interromper o tratamento.

Tentar detetar os efeitos negativos no sistema cardiovascular tão cedo quanto possível é o objetivo das consultas de cardio-oncologia, onde se procura detetar os problemas ainda antes de o doente sentir qualquer sintoma. No Hospital de São João, no Porto, a consulta para deteção precoce dos problemas cardiovasculares ainda se destina sobretudo a mulheres com cancro da mama, mas o objetivo é alargá-la a outros tipos de cancro, como leucemias e linfomas, conta ao Observador Carla Sousa, coordenadora da consulta neste hospital.

“Todos os medicamentos têm efeitos colaterais. Só faz sentido dar um cardioprotetor quando o risco é menor que o benefício.”
Carla Sousa, coordenadora da consulta de Cardio-oncologia no Hospital de São João, Porto

No âmbito da consulta, todas as mulheres com cancro da mama (e no futuro todos os doentes que sejam integrados neste programa) são sujeitas a uma avaliação inicial do risco de desenvolverem problemas cardiovasculares. As doentes com hipertensão, colesterol alto e diabetes têm mais riscos de desenvolverem estas complicações, mesmo antes de começarem os tratamentos oncológicos tóxicos para o sistema cardiovascular. É por isso que estas mulheres são seguidas em consulta com mais frequência. Quando os primeiros sinais de problemas cardiovasculares forem detetados, pode optar-se por tentar contorná-los com fármacos que protejam o coração ou interromper o tratamento oncológico (para, eventualmente, ser substituído por outro menos tóxico), conta a cardiologista.

E porque não dar medicamentos cardioprotetores a todos os doentes que sejam sujeitos a este tipo de tratamentos oncológicos? “Porque todos os medicamentos têm efeitos colaterais”, lembra Carla Sousa. Neste caso, hipotensão e batimento cardíaco lento (bradicardia). “Só faz sentido dar um cardioprotetor quando o risco é menor que o benefício.”

Além das mulheres com cancro da mama, há outro grupo de doentes que pode beneficiar, neste momento, da existência das consultas de cardio-oncologia: os doentes com outros tipos de cancro que apresentam problemas cardíacos, como arritmias, hipertensão ou angina de peito. Com o projeto implementado no Hospital de São João, Carla Sousa diz que os doentes em vez de esperarem um mês pela consulta de cardiologia, podem ser vistos na própria semana. A consulta com uma equipa multidisciplinar vai determinar se o cansaço é próprio do tratamento com quimioterapia ou se se trata de insuficiência cardíaca e, depois, aconselhar sobre a melhor solução para o problema, que pode mesmo implicar o recurso a uma cirurgia.

Há um benefício clínico claro, tanto na escolha da melhor intervenção contra os problemas cardíacos como para assegurar a melhor estratégia terapêutica contra o cancro. “Os oncologistas ficam mais tranquilos quando usam doses mais altas [porque sabem que há uma vigilância apertada] e os doentes ficam mais tranquilos quando é uma cardiologista a assegurar que o cansaço é uma situação normal do tratamento, refere a coordenadora da consulta de cardio-oncologia.

Na consulta de cardio-oncologia é feito um exame ecocardiográfico exaustivo, com recurso a técnicas de deformação do miocárdo, que permitem detetar de forma mais precoce a toxicidade para o coração — Asbjorn Stoylen/Wikimedia Commons

Exercitar o cérebro para recuperar do tratamento contra o cancro

Há consequências dos tratamentos mais difíceis de avaliar do que outras. Talvez por isso, só nos últimos cinco anos se tenha estudado mais e compreendido melhor os impactos que os tratamentos oncológicos têm no cérebro. “As pessoas queixavam-se, mas não era dada a devida importância”, admite Fátima Cardoso. Em parte porque não são sintomas que aparecem durante o tratamento: só surgem depois de o tratamento terminar e, às vezes, vários meses depois.

Foi o que aconteceu com Inês Alves. As falhas na memória de curto prazo e a dificuldade de concentração atingiram-na depois de terminar os tratamentos de quimioterapia e sente que podem estar a ficar piores. “Às vezes tenho uma caixa de comprimidos na mão e fico com dúvidas se já os tomei ou não. Tenho de contar os que ainda estão na caixa para ter a certeza.”

Os sintomas são muito precisos — dificuldade de concentração, perda de memória recente ou dificuldade em realizar várias tarefas ao mesmo tempo — e afetam cerca de 40% dos doentes, com níveis de severidade muito variáveis. Até ao momento, ainda não foi possível perceber quais os mecanismos que provocam este tipo de sintomas, o que quer dizer, por exemplo, que ainda não se descobriu como é que a quimioterapia afeta o cérebro, especialmente sabendo que a maior parte destes medicamentos não consegue passar a barreira hematoencefálica (uma espécie de filtro que envolve o cérebro e impede a passagem de muitas moléculas e microorganismos).

Se o mecanismos fossem conhecidos, talvez fosse mais fácil encontrar um tratamento eficaz, já que também não existe forma de prevenir estes sintomas, que se podem manter por vários anos. Em alguns casos não chegam a desaparecer completamente, o que faz com que as pessoas tenham mais dificuldade em retomar as tarefas profissionais que desempenhavam antes de iniciarem os tratamentos. “Ainda não descobrimos tudo o que precisamos para compreender os mecanismos e tentar minimizar os prevenir ou minimizar os sintomas”, diz Fátima Cardoso. “Há imensa investigação a ser feita na área da qualidade de vida dos doentes e no controlo dos sintomas”, garante a médica. “Mas fazer investigação demora tempo.”

“As pessoas queixavam-se, mas não era dada a devida importância.”
Fátima Cardoso, diretora da Unidade da Mama do Centro de Cancro Champalimaud

Jornalista e tradutora freelancer, Inês Alves não deixou de trabalhar — exceto quando fez a mastectomia e não podia estar sentada –, mas admite que a dificuldade que agora tem em concentrar-se faz com que demore mais tempo a acabar os trabalhos que lhe foram atribuídos. Noutros tempos ficaria muito nervosa se se atrasasse nos trabalhos, mas ter um cancro ajudou-a a relativizar as questões. “Ter tido cancro e estar viva é ter uma nova oportunidade”, conta. “Ganhei uma maior vontade de viver e isso ajuda-me a não stressar quando tenho falhas de memória.”

Para os doentes que têm de enfrentar estes sintomas, Fátima Cardoso aponta duas soluções: ajustar as funções ou as formas de trabalho no regresso à atividade profissional e exercitar o cérebro. Neste área, a médica diz que estão a ser feitos ensaios clínicos com técnicas de estimulação da atividade cerebral para tentar solucionar os problemas destes doentes.

Quando o tratamento contra um cancro provoca outro

Os tratamentos de quimio e radioterapia são realmente eficazes a interferir com o funcionamento das células. É por isso que matam as células cancerígenas (pelo menos parte delas), mas também é por isso que podem provocar modificações a nível celular e genético que, num futuro mais ou menos distante, poderão originar outro tipo de cancro. O tipo de cancro que com mais frequência é causado pelos tratamentos oncológicos são as leucemias, mas, ainda assim, o risco é baixo para a maior parte dos tratamentos — no máximo 1% depois do tratamento contra o cancro da mama —, assegura Fátima Cardoso.

O risco é conhecido, mas não há forma de prevenir que este segundo cancro apareça. Na verdade, para a maior dos cancros (mesmo dos que acontecem pela primeira vez) também não existe forma de prevenir, lembra a médica. Certo é que, os benefícios obtidos com o tratamento do primeiro tumor compensam largamente os riscos de ter um segundo cancro (com origem no tratamento), caso contrário não seria feito. O melhor que a medicina pode fazer por estes doentes (a curto prazo) é aumentar a vigilância, especialmente em grupos de risco, como doentes com linfoma que fizeram radioterapia na região do tórax e doentes que foram tratados com quimioterapia. As zonas irradiadas com radioterapia também podem desenvolver sarcomas agressivos e difíceis de tratar.

“As novas tecnologias de radioterapia [com máquinas a funcionar em três dimensões] permitem fazer tratamentos com mais segurança e afetando menos os tecidos normais”, refere a médica. Os avanços da tecnologia permitem, por exemplo, que os raios usados se baseiem em eletrões — em vez do cobalto usado anteriormente —, provocando menos danos nos tecidos saudáveis. “Temos agora muito menos problemas resultantes da radioterapia do que tínhamos há 30 anos.”

Também na quimioterapia a solução passa por ter tratamentos mais eficazes, menos tóxicos e, sobretudo, mais dirigidos. Uma destas estratégias está a ser avaliada por investigadores do Cancer Research UK, no Reino Unido, que querem criar um método alternativo para dar a quimioterapia e matar as células tumorais que não conseguem remover com a cirurgia, tendo o mínimo de efeitos secundários possível.

Tratar o cancro sem perder a possibilidade de ter filhos

Não há solução para impedir que os tratamentos oncológicos afetem as células reprodutoras (óvulos e espermatozoides) e os órgãos que as produzem, mas há soluções para preservar a fertilidade de mulheres e homens que desejem ter filhos depois de terminados os tratamentos contra o cancro.

O processo de destruição ou de perturbação dos ovários pela quimioterapia é irreversível, por isso a melhor solução é criopreservar partes dos ovários enquanto ainda são saudáveis, assim como estimular e colher ovócitos. Nos homens, a opção é a recolha e preservação de sémen antes do início dos tratamentos.

Inês Alves ainda não foi mãe e gostava de um dia vir a ser. Depois de saber que tinha cancro da mama e que teria de fazer tratamentos de quimioterapia, teve de decidir se queria preservar os ovócitos (precursores dos óvulos) para os usar mais tarde. Teve a sorte de ter um cancro bem localizado, que lhe permitia esperar uns dias enquanto fazia a estimulação dos ovários e a recolha dos ovócitos. “Na altura a minha preocupação era sobreviver e ter a certeza que o podia fazer sem comprometer a minha saúde”, conta. Depois percebeu que congelar os ovócitos lhe permitia sentir que poderia sobreviver e ser mãe.

“Durante os tratamentos tinha muitos afrontamentos. Acordava toda encharcada de manhã e era capaz de os ter mais cinco vezes seguidas depois de tomar banho.”
Inês Alves

Além da fertilidade, a vida sexual também pode ser afetada pelos tratamentos contra o cancro. Fátima Cardoso diz que a cirurgia e radioterapia para tratar o cancro da próstata afetam a fertilidade e a função sexual, mas têm sido feitos trabalhos de investigação para melhorar a vida sexual dos doentes depois do tratamento.

Viver sem o cancro e sem uma parte do corpo

Quando a quimioterapia é muito agressiva para um doente, pode interromper-se o tratamento temporariamente, mudar-se o esquema da terapia ou usar-se outros medicamentos que reduzam os efeitos secundários dos tratamentos oncológicos. Mas há tratamentos contra o cancro em que as opções são mais limitadas, como retirar ou não retirar um tumor e os tecidos envolventes. E não retirar o tumor pode significar reduzir e muito a esperança de sobrevivência do doente.

A cirurgia é uma das possibilidades no tratamento dos cancros da cabeça e pescoço, que podem atingir o nariz e cavidade nasal, laringe, ouvidos e boca, incluindo as gengivas e palato. À cirurgia segue-se a reconstrução da área removida, mas o impacto na vida do doente pode manter-se, mesmo que o tumor tenha sido completamente eliminado, lembra ao Observador Ana Ferreira Castro, presidente do Grupo de Estudos de Cancro de Cabeça e Pescoço. “Na cara é difícil disfarçar. Mesmo com a reconstrução, as pessoas ficam diferentes.” Especialmente porque as áreas a remover são, por vezes, muito extensas.

A extensão da cirurgia será tanto maior quanto mais tarde as pessoas demorarem a ir ao médico. Além disso, quanto mais tarde forem tratadas, mais avançado estará o cancro e menor a taxa de sobrevivência a cinco anos. “Mais de 50% dos casos de cancro da cabeça e do pescoço em Portugal têm uma sobrevivência de 20% ao fim de cinco anos. Se os doentes fossem vistos durante o estadio I ou II do cancro, a sobrevivência a cinco anos seria de 90%”, diz Ana Ferreira Castro, presidente do Grupo de Estudos de Cancro de Cabeça e Pescoço. A médica aconselha a não desvalorizar os sinais que, muitas vezes, se assemelham a aftas ou feridas.

Feridas, aftas e outras lesões na boca são sinais de alerta para cancro da cabeça e pescoço. Outros são rouquidão, ouvido tapado ou obstrução nasal de um dos lados — Peter Macdiarmid/Getty Images

Peter Macdiarmid/Getty Images

As lesões na língua podem obrigar a retirar toda a língua, o que vai fazer com que as pessoas tenham dificuldade em falar e comer. A reconstrução da língua com músculos de outra parte do corpo, seguida de terapia da fala, pode devolver a capacidade de comer e de falar de forma aceitável, ainda que seja um processo moroso. “É possível reaprender tudo, mas requer um ou dois anos”, diz a médica oncologista. Só as papilas gustativas é que ainda não há forma de recuperar.

Quando o tumor está localizado na laringe, a fala e alimentação podem ficar comprometidas. Se for usada radioterapia, pode provocar fibrose na laringe e esta deixar de funcionar. Se o órgão for removido, os doentes perdem a voz (ainda que possam usar uma prótese para falar) e deixam de conseguir comer pela boca (são alimentados por sondas no estômago). “O estigma social vem porque já não conseguem comer, não conseguem conviver à mesa”, diz Ana Ferreira Castro. E é aí que passa a estar o foco do acompanhamento destes doentes.

Fatores de risco para o cancro da cabeça e pescoço

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O consumo de álcool e tabaco são as principais causas de cancro da laringe.
A falta de higiene oral pode levar ao aparecimento de cancro na cavidade oral.
Uma infeção com HPV (papilomavírus humano) também pode ser responsável pelo aparecimento de cancro na boca e orofaringe (que inclui a base da língua, palato mole, amígdalas e a parte lateral e posterior da garganta).

O impacto emocional, psicológico e social é um fator muito importante no tratamento dos cancros da cabeça e pescoço, até porque grande parte dos doentes já vêm de meios ou condições desfavorecidas, lembra a médica. É por isso que Ana Ferreira Castro valoriza as equipas multidisciplinares, que além dos especialistas em cirurgia maxilofacial ou radioterapia, têm também psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e nutricionistas.

Ainda não é possível fazer uma reconstrução da laringe ou criar uma ligação funcional que a substitua, mas há outra área de reconstrução em que Ana Ferreira Castro acredita que se deve apostar: a reabilitação oral. “Há cerca de ano e meio foi aprovada uma portaria [Despacho n. 15135/2016] que permite que os hospitais que tratam os doentes contra o cancro possam também tratar das próteses dentárias para os doentes precisam para serem capazes de comer”, conta a oncologista. “Dinheiro há, só falta vencer as questões administrativas, perceber como se vai implementar.” É que não dá para fazer concursos públicos para as próteses dentárias, porque são específicas de cada doente, mas também não se podei adjudicar este serviço diretamente. “A ACSS [Administração Central do Sistema de Saúde] vai ter de criar um procedimento específico para os hospitais.”

A reconstrução é importante para os doentes e deve ser feita, tanto quanto possível, logo após a cirurgia. No mesmo momento em que retirou o tumor e a mama, Inês Alves fez a reconstrução da mama com parte do músculo dorsal (nas costas). A jornalista confessa que chegou a pensar que nunca mais se ia conseguir sentar no sofá como uma pessoa normal. Sentia-se deficiente com o braço direito bloqueado. “Sentia-me um Frankenstein por causa da cicatriz.” Mas isso passou. Neste momento, tudo o que quer é poder operar a outra mama também, seja por motivos estéticos ou de prevenção. “Mexe muito comigo ter uma mama operada e outra não. Quero fazer a outra igual para me sentir mais feminina. É que eu só tenho 34 anos, sabe?”

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