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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Profissão: tanatopractor. "As pessoas não sabem a dignidade com que um morto é tratado por nós"

AVISO

Este artigo contém linguagem e descrições que podem ferir a sensibilidade dos leitores

Vive entre urnas, sangue, frigoríficos e frascos de formol. Ricardo Morais é tanatopractor, o homem a quem os vivos confiam os mortos para que os seus corpos possam partir serenos. Nem sempre é fácil.

"La mort n'a peut-être pas plus de secrets à nous révéler que la vie?”
Gustave Flaubert (1821-1880)

Campolide. Chove intensamente em Lisboa. Vindo da Linha de Sintra, no pára-arranca do trânsito, Ricardo avisa que chegará “um pouco atrasado”. Não tarda muito. E quando por fim chega, já ao final da tarde, desaperta o nó da gravata, cor escura, despe apressadamente o fato, também escuro, ali mesmo, ainda no parque de estacionamento interior de uma agência funerária da capital, despe-se e veste-se de pronto, de uniforme “cirúrgico”, um par de luvas de látex, despe-se e veste-se, intrépido, mesmo que à sua volta tenha uma longa fila de carros fúnebres, caixões empilhados, dezenas e dezenas de caixões, e adereços para velórios, cruzes, muitas cruzes, lápides ainda sem epitáfio de morte. Para muitos, o cenário seria de evitar, de quase pavor. Para ele, a morte em volta é mais um dia na vida. Tem 36 anos.

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Há cerca de 13 anos, conta, recebeu por “acaso” um convite para trabalhar numa funerária, a Servilusa, e aceitou. “Nunca tinha trabalhado com mortos antes. A única coisa que fazia antes de ser tanatopractor era vestir, fazer um pouco de maquilhagem no morto, higienizar o corpo. Agora não, agora é um trabalho mais profundo.” O curso, tirou-o em Barcelona, em 2009. Três anos volvidos, resolveu trabalhar sozinho, deixando a Servilusa e criando a própria empresa: a Tananubis.

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Mas o que é a tanatopraxia? Apesar desta técnica já existir desde meados de 1861 e da Guerra Civil dos Estados Unidos, em Portugal é ainda quase desconhecida. “Houve um médico [Thomas H. Holmes] que desenvolveu esta técnica para que os soldados mortos pudessem regressar às famílias conservados – porque às vezes a viagem podia demorar alguns dias. A técnica, em si, consiste na substituição do sangue por uma solução conservante. Essa solução é sempre à base de formol. E varia consoante o que se pretender. Se quisermos que o corpo se conserve durante dois, três dias, a solução é menos forte. Se quisermos que o corpo se conserve durante uma semana, duas, três, a solução vai ter que ser muito mais forte”, explica Ricardo Morais.

Sempre acompanhado por Raquel, também tanatopractora, embora mais nova que Morais, vai descarregando o material a utilizar – garrafões de formol, outros para depositar o sangue, ainda uma bomba de aspiração e outra de irrigação – e deposita-o numa sala vazia, fria e ampla, que serve de local para preparar os corpos dos mortos para os velórios, ao fundo, num recanto logo atrás dos carros fúnebres. Da arca frigorífica da funerária Ricardo retirará um corpo. O corpo de baixo. Outro ficou lá, em espera. Descobre-o no saco em que vem envolvido. Ricardo não sabia ainda a causa da morte. A mulher, sexagenária, corpo nu, veste apenas uma fralda, não tem cabelo. Não sabia ainda a causa da morte mas atira: “Isto é cancro…” E prossegue: “Somos informados sobre as causa da morte através da certidão de óbito. Às vezes, como faço isto há tanto tempo, quase que sei mesmo sem ver. Dizer que não? Às vezes, sim. Sim, sim. Em corpos com tuberculose não há tanatopraxia. O risco é muito, muito alto. Mas se for sida já é possível: o vírus morre pouco depois do óbito. No caso da tuberculose é que não, a bactéria pode sobreviver até dez anos, segundo sei. Mas há uma coisa que nós sabemos, com ou sem certidão: todo o corpo é risco.”

Outros casos houve em que se negou, e tem que negar ainda, a avançar para o trabalho. E explica: “Nos corpos de quem morreu carbonizado em incêndios é complicado. Não há muito que possa fazer. Ou corpos que já estão com um estado de decomposição muito, muito avançado, às vezes semanas. Aí tenho que dizer que não. Impossível, impossível não é. Mas o risco para nós, que estamos a trabalhar, é elevado. Risco há até num corpo ‘normal’. Mas o estado de decomposição muito avançado vai triplicar o risco. Tenho que dizer que não, por mais que quisesse ajudar.”

Raquel vai tratando de limpar, membro por membro, com algodão e cuidado, o corpo da mulher, enquanto Ricardo faz incisões, pequenas, cirúrgicas, na zona da barriga e parte superior de um braço, inserindo tubos naqueles orifícios por ele abertos. “A substituição é realizada através das artérias. E a aspiração do sangue é através de uma pequena incisão na barriga. Quanto aos órgãos, e ao contrário do que às vezes se pensa, estes nunca são remexidos nem removidos por nós. Os órgãos acabam por conservar-se com a injeção da própria solução. A solução que substituiu o sangue irriga os órgãos e conserva-os.”

"Pessoas que tenham o curso de tanatopractor pelo Institut Français de Thanatopraxie – o certificado desse instituto é o oficial – contam-se pelos dedos. Mas registados na Direção-Geral de Saúde são para aí uns 50! A maioria tirou um cursinho de 50 horas. O serviço não é igual. Às vezes, encontro pessoas que tiraram esse curso. E pergunto-lhes, por curiosidade: ‘Diz-me lá onde é que está a artéria subclávia?’ Não sabem."

Ricardo chegou a fazer “quatro, cinco” tanatopraxias por dia enquanto trabalhava na Servilusa. Hoje, que trabalha sozinho na Tananubis, são “um pouco menos”. Mas tenta responder a todos os pedidos. “Ainda agora fui para o Sabugal, na Guarda. De um momento para o outro tive que ir para o Sabugal. E só regressei a casa já de madrugada. Mas muito do nosso trabalho é na Grande Lisboa, sim. Faço tanatopraxias em qualquer lado. Qualquer lado: ao domicílio, em capelas, hospitais, em qualquer lado. Às vezes as condições é que não são as melhores. Ao domicílio, já fiz um tratamento ajoelhado no meio do chão, a um senhor que pesava 160 quilos. Aquilo foram duas horas de joelhos!” Em média, a tanatopraxia pode levar até duas horas, “no mínimo”. “Num corpo ‘normal’ posso demorar duas horas. Mas num autopsiado pode levar horas e horas. Porquê? Porque no autopsiado já houve órgãos remexidos e vamos que fazer a abertura toda outra vez, fazer a limpeza dos órgãos, injetar os órgãos, e voltar a fechar tudo de novo. Tudo isso leva muito mais tempo.”

E mais tempo leva quando é preciso reconstruir. “Há tempos, no centro do país, uma rapariga de 28 anos faleceu num acidente de viação. E estava dilacerada, toda dilacerada, da cabeça aos pés. A família não poderia velar o corpo, seria velado com a urna fechada. O agente funerário ligou-me às 11 e tal da noite – isto acontece-me muito, ligarem-me assim tarde – e pediu que fizesse o possível. Cheguei lá quase à meia-noite e estive a trabalhar até perto das seis da manhã. Às nove da manhã a urna estava aberta e o corpo foi velado”, recorda Ricardo Morais.

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A reconstrução faz-se com recurso a silicone ou esculpindo à mão, com cera. “Se a reconstrução for relativamente simples conseguimos fazê-la em cera, sim. Mas se quisermos reconstruir por completo uma orelha, o nariz, um maxilar, e já o fiz, aí já é preciso trabalhar com moldes de silicone. O que fazemos é pedir às famílias uma fotografia — de preferência duas: uma frontal e uma lateral –, porque quanto mais referências houver, melhor. Queremos que a reconstrução se aproxime da realidade, não é? E é possível aproximar. Depois esculpimos, fazemos o positivo e o negativo com o silicone, por norma é silicone em gel, o molde é colocado no corpo e o corpo é maquilhado. O que pedimos sempre, às famílias e ao agente funerário, é para ter cuidado. Não podem mexer muito para não haver risco de deslocar a prótese”, explica.

Ricardo recolhe os tubos e começa a coser. São poucos os pontos. Depois, é tempo de vestir o corpo e maquilhá-lo. “Muitas vezes ouvimos a expressão ‘até parecia que estava a dormir tão sossegado’. Com a tanatopraxia pode chegar-se ao ponto de o morto quase aparentar estar vivo. Parecendo que não, isso tranquiliza”, explica Raquel Guimarães, lembrando em seguida o “tabu”, diz, que é — “ainda é” — a morte: “Ainda há muito tabu à volta da morte, há. Mas ainda há muito a tradição de ver o corpo, de velar o morto com o caixão aberto, para a família se despedir. Certo é que toda a gente já teve ou conhece alguém que já teve um velório algo desagradável, em que o corpo obviamente não estava em condições de ser velado por causa dos odores, por exemplo. Não é um assunto que se converse à mesa, mas acontece muito. Se as famílias já estão em choque pela morte de um ente querido, vê-lo naquelas condições ainda piora o sofrimento.” Ricardo conclui: “A família nunca sabe o trabalho prévio que fizemos. Nem precisa. Quando chega à capela já vê o corpo preparado para ser velado. Mas houve casos em que, meses depois de ter feito o tratamento, a família, que entretanto perdeu outra pessoa, contacta a funerária e pede que seja eu a preparar o corpo. Isso é o mais gratificante. Sei que o meu trabalho, mesmo que invisível, é valorizado”.

Terminado o trabalho, Ricardo recolocará o corpo de volta na arca, cobrindo-o. Seguirá para África nos próximos dias. Mas não é o país mais longínquo para o qual o tanatopractor já preparou um corpo. E recorda: “Houve um corpo que foi transportado para a Nova Zelândia e que, lá chegado, foi velado durante três ou quatro dias. Foram três viagens de avião e três dias de barco. O corpo só chegou lá uma semana depois.”

Ricardo espera que o telefone toque. Pode tocar. Pode não tocar tão cedo. O problema, critica, é a estranheza que a profissão ainda causa e… os “curiosos”. Curiosos? “Pessoas que tenham o curso de tanapractor pelo Institut Français de Thanatopraxie – que terá sido a primeira escola de tanatopraxia na Europa e, portanto, o certificado desse instituto é o oficial e permite-nos exercer em Portugal e noutros países europeus –, como eu, contam-se pelos dedos. Mas registados na Direção-Geral de Saúde são para aí uns cinquenta! [Risos] A maioria tirou um cursinho de 50 horas. O serviço não é igual. Nem eles sabem o que estão a fazer. Em Portugal tudo serve para ganhar dinheiro. Sabe o que é que eu chamo a esses ‘tanatopractores’? Curiosos, são curiosos. Às vezes, nas formações que dou em maquilhagem e reconstrução facial, encontro pessoas que tiraram esse curso. E pergunto-lhes, por curiosidade: ‘Diz-me lá onde é que está a artéria subclávia?’ Não sabem. ‘E quais é que são os passos de uma tanatopraxia?’ Não sabem…”

Ricardo já recusou ser formador nesses cursos. “Já recusei, já. Umas quantas vezes. As agências convidam-me e recusei sempre. Porquê? Não quero ser formador, o mau formador, daqueles formandos. Não quero dar cursos de 50 horas para, mais tarde, se fizerem asneira e perguntarem quem foi o seu formador, responderem que foi o Ricardo o formador.”

O tanatopractor prepara agora, com Raquel, a criação de um novo espaço, maior, para não continuar dependente, tão dependente, das funerárias. “Eu sou do Algarve. E quando fui contactar funerárias no Algarve para encontrar trabalho, muitas respondiam-me, quando perguntava se precisavam de um tanapractor: “Tanato-quê?! Não é preciso, menina, nós sabemos fazer tudo, fazemos tudo sozinhos…” Mas não sabem. Nem fazem ideia”, lamenta Raquel. E Ricardo lamenta também: “É verdade que a maioria dos agentes funerários não consegue explicar às famílias o que é uma tanatopraxia. E isso dificulta o nosso trabalho, claro. Sei que em França, por exemplo, os tanatopractores são contratados pelas próprias famílias, vão, fazem o trabalho que têm a fazer, e só depois é que a funerária avança. Nós vamos agora ter um projeto assim. Vamos ter o nosso espaço, recolhemos o corpo, fazemos o tratamento e entregamos o corpo à funerária, que o recolherá nas nossas instalações. A maioria dos agentes, quando pergunto o que é [a tanatopraxia], respondem-me de forma abrutalhada. As pessoas depois julgam que vamos cortar, espetar, ficam com o pé atrás porque não sabem a dignidade com que o corpo é tratado por nós. Estamos a trabalhar com um corpo, não com uma coisa sem valor. É isso que é preciso explicar à família.”

"A situação mais difícil que apanhei foi a de um amigo, o Joaquim. E fui eu quem o levou ao hospital e tudo, às urgências. Quinze dias mais tarde ele falece. Nenhum colega o conseguia ir buscar. Eu também não conseguia mas senti que era o último favor que lhe fazia. Tantas vezes lhe disse, a brincar, sempre que ele me aparecia na sala enquanto eu trabalhava: ‘Oh preto, qualquer dia é a ti que espeto o ferro...’ E espetei."

Ricardo espera também que o seu trabalho, assim, seja mais bem pago. “Valores? [Pausa] Cada agência cobra à família um valor. O meu valor não varia. É fixo. Há agências a pedir 500, 600, 700, 800 euros. Eu cobro 200 euros por corpo. Justo? É muito, muito mal pago. Eu só consigo fazer o meu trabalho se as agências fizerem o delas. Estou dependente delas. Se fosse ao contrário, se fosse eu a vender o serviço à família, talvez recebesse outro valor. Há países europeus onde este serviço pode chegar aos sete mil euros…”

Deixam a sala, outra vez vazia, fria e ampla, e Ricardo traz consigo um garrafão repleto de sangue. É preciso ter estômago? “É. Às vezes encontramos situações muito, muito complicadas. Por exemplo? Corpos que são encontrados duas, três semanas depois do óbito, que estão num estado de decomposição muito avançado. Mas também é preciso ter estômago quando são crianças, por exemplo. Ao longo do tempo, com a prática, vamos conseguindo manter algum distanciamento. Não muito, é certo. É impossível. Mas é o meu trabalho.”

Houve uma noite em que o trabalho foi mais complicado que nas restantes. “A situação mais difícil que apanhei foi a de um amigo, o Joaquim. Conhecia-o há já bastantes anos. E fui eu quem o levou ao hospital e tudo, às urgências. Quinze dias mais tarde ele falece. Na ida para o hospital até brinquei com ele: ‘Pá, oh Joaquim, vai tossir para outro lado, não tussas para cima de mim!’ Nunca pensei que tivesse de ir buscá-lo de volta numa urna. Nenhum colega o conseguia ir buscar. Eu também não conseguia, mas senti que era o último favor que lhe fazia. Tantas vezes lhe disse, a brincar, sempre que ele me aparecia na sala enquanto eu trabalhava: ‘Oh preto, qualquer dia é a ti que espeto o ferro…’ E espetei. [Longa pausa] Estava a trabalhar, olhava para o Joaquim, morto, e pensava: ‘Foda-se!’ Foram duas horas a chorar. Nunca me tinha acontecido.”

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