“Os gajos ouvem falar em Isabel e fogem como o diabo da Cruz”. O desabafo, já citado pela imprensa internacional, foi feito por um responsável da Fidequity, a sociedade em Portugal que gere várias participações sociais de Isabel dos Santos. E surge num mail remetido em fevereiro de 2014 para uma pessoa da ZonOtimus, a sociedade que resultou da fusão das duas operadoras de telecomunicações e cujo controlo é dividido entre a empresária angolana e a Sonae. O comentário surge depois de o gestor da Fidequity ser informado da recusa do Santander em “trabalhar connosco”.
Não se percebe se o plural inclui a empresa que viria a dar origem à NOS, mas o motivo da recusa é óbvio. “O departamento de compliance do Santander consideram-nos uma entidade politicamente exposta [o conceito é pessoa politicamente exposta e aplica-se à filha do então presidente angolano], logo, nunca conseguiremos fazer nada com eles.” E as ordens vêm de Espanha.
Esta mensagem de mail, já referida na imprensa internacional, é um dos milhares de documentos apanhados na fuga da Luanda Leaks e que foi disponibilizado pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, representado em Portugal pelo Expresso e pela SIC. Não é o único que revela as dificuldades que Isabel dos Santos e algumas das suas empresas começaram a enfrentar na relação com a banca internacional, e que levou alguns bancos de relevo a voltarem-lhe as costas.
Também em junho de 2014, gestores ligados a empresas de Isabel dos Santos na Holanda, onde está instalada a Exem, a sociedade que através da Esperaza é acionista da Amorim Energia e indiretamente da Galp Energia, avisam que o banco holandês ING decidiu terminar a relação comercial. A “decisão de negócios” foi tomada depois de uma due dilligence da qual saiu a conclusão: a combinação das atividades de gás e petróleo (referência à participação indireta na Galp) com a presença de Angola é considerado uma mistura que não encaixa com o perfil de risco do banco holandês.
Os documentos disponibilizados pelo consórcio indicam que a desconfiança da banca chegou a empresas portuguesas só porque tinham capital de Angola. E nem o homem mais rico de Portugal — Américo Amorim teve esse título até morrer em 2017 — escapou.
Um dos dossiês revelados pelo consórcio internacional é relativo à Amorim Energia, a empresa controlada então por Américo Amorim, e que começou a sentir na pele os efeitos colaterais de ter escolhido sócios angolanos para a Galp Energia. A Sonangol e a Exem, uma empresa atribuída ao marido de Isabel dos Santos, Sindika Dokolo, são os donos da Esperaza, que tem 45% da Amorim Energia BV, onde a família do empresário português é representada por Paula Amorim, que é chairman da Galp. É na ata de uma reunião de administração desta empresa, realizada a 30 de setembro de 2014 em Amesterdão, que surgem referências a um contencioso com o Barclays e a um acordo com o Citigroup.
Os documentos associados a este ficheiro indicam que o Citigroup e o Barclays retiraram-se de operações de financiamento contratadas com a Amorim Energia. E se no caso do banco americano os documentos disponibilizados não permitem relacionar esse recuo com investidores angolanos, já no banco inglês a troca de correspondência entre advogados é clara quanto à motivação do Barclays: a operação contratada com a Amorim Energia não foi autorizada internamente no grupo bancário por causa da presença da Sonangol e de pessoas relacionadas (Isabel dos Santos, ou o marido, que gere esta participação, não são referidos) no capital da Amorim Energia.
Mas se o Citigroup chegou a acordo com Américo Amorim, já no caso do Barclays o processo revelou-se mais complicado, como revela uma troca de correspondência entre os advogados britânicos do empresário português, a Stephenson Harwood, e o escritório Simons and Simons, que representou o banco britânico.
O Observador contactou o Barclays e o Grupo Américo Amorim para confirmar este diferendo e perceber qual a sua evolução desde o último trimestre de 2014. O banco inglês não comentou e fonte oficial do grupo português lembra que os documentos vindos a público “são confidenciais“, pelo que “entendemos não dever fazer, nesta fase, quaisquer comentários adicionais.”
O Observador também questionou Carlos Gomes da Silva, o atual presidente executivo da Galp e que à data já fazia parte da comissão executiva da petrolífera. Gomes da Silva esteve presente na reunião da Amorim Energia, enquanto representante legal de Américo Amorim. Na reunião estavam também representantes legais de Paula Amorim e do administrador da Esperaza, neste caso Vasco Rites, um dos gestores que trabalhou com Isabel dos Santos na Fidequity.
Para além do ponto de situação dos processos relativos ao Barclays e ao Citigroup, nesta reunião foram tratados vários assuntos relacionados com a estratégia de financiamento da empresa, o prolongamento de prazos de reembolso de dívida, e a intenção de vender 5% do capital da Galp Energia, que tinha sido comprado à ENI, operação que só veio a realizar-se em 2016.
O gestor respondeu ao Observador que considera “manter-se o dever de confidencialidade pelo que compreenderá o impedimento de realizar comentários”. Nenhuma das entidades contactadas colocou em causa a veracidade dos documentos divulgados no Luanda Leaks.
O Projeto Fado para financiar a Amorim Energia
Na origem do conflito com a empresa controlada por Américo Amorim com sede na Holanda esteve a decisão do Barclays de sair do “Projeto Fado”, descrito como uma operação de financiamento para a Amorim Energia. O grupo do empresário português acusou o banco britânico de ter recusado prosseguir com o contrato por causa de preocupações comerciais, concretamente pelo receio de que seria menos provável que os seus clientes fizessem negócio com o Barclays, se soubessem que o banco tinha feito negócios com a Amorim Energia. Ou seja, estariam em causa razões reputacionais.
A empresa alegou representação enganadora por parte do banco quando este, nas abordagens iniciais ao negócio, se mostrou capaz de fornecer os serviços financeiros pedidos e executar o “Projeto Fado” de forma competente e nos calendários previstos. Não há muitos detalhes sobre os contornos da operação, mas seria uma emissão de obrigações convertíveis (títulos de dívida conhecidos na linguagem financeira internacional como bonds) que começou a ser proposta pelo banco em 2010, e que terá sido contratualizada dois anos mais tarde.
O Barclays contestou estes argumentos em duas cartas remetidas no verão de 2014 pelos seus advogados onde alega que quando apresentou a arquitetura do negócio ao cliente nunca se comprometeu a executar a operação nos termos propostos, pelo menos sem obter as necessárias autorizações internas. Acrescenta que tinha contratualmente o direito de sair do compromisso sem uma causa, em particular no caso de não conseguir obter os requisitos internos de aprovação da transação. E é essa a razão invocada, como foi explicado em setembro de 2013. O Barclays foi incapaz de executar o Projeto Fado porque não conseguiu obter as necessárias aprovações internas para prosseguir com a transação. E porque não?
Numa carta remetida a 1 de maio de 2013, o Barclays recorda as razões por que não conseguiu prosseguir com a oferta: “Primeiro por causa da presença da Sonangol na estrutura de capital da Amorim Energia. E, em segundo lugar, por causa das ligações existentes entre a Esperaza holding, a holding onde está a petrolífera angolana e Isabel dos Santos (que nunca é referida), e entidades e pessoas associadas com a Sonangol.” A preocupação do Barclays existe em relação à Sonangol ou entidades associadas e não diretamente com a Amorim Energia, sublinham os advogados do banco. Aliás, a empresa grupo Amorim é descrita como um dos grupos económicos mais proeminentes em Portugal com negócios de sucesso.
Foi por causa da presença angolana que não houve aprovação interna para participar no Projeto Fado, reafirma o banco em várias mensagens trocadas onde procura refutar, uma por uma, as queixas apresentadas por Amorim.
A empresa controlada pela família Amorim alegou, por exemplo, que a equipa do banco falhou no processo de KYC, uma sigla para a expressão inglesa conhecer o cliente (Know your client), que é um procedimento fundamental nas atividades de prevenção e controlo de branqueamento de capitais.
É ainda sinalizado que a presença da Esperaza/Sonangol foi reconhecida logo numa fase inicial do processo, mas só terá sido comunicada à equipa do banco até cerca de 20 de março de 2013, um dia antes da data prevista para o lançamento da oferta.
A Amorim Energia acusa ainda o banco de negligência, lembrando que o Barclays sabia antes de fechar o contrato, como aliás era público, que a Esperaza era acionista da Amorim Energia e que a Sonangol era acionista da Esperaza A entrada de Isabel dos Santos (ou do marido) e da Sonangol na Amorim Energia, onde têm 45%, foi concretizada em 2006, tendo a petrolífera financiado uma parte da operação da empresária. Isabel dos Santos e Amorim já tinham outras parcerias, como o BIC. Mas, apesar desse conhecimento, os responsáveis do banco falharam ao não levantar logo questões relacionadas com a Esperaza/Sonangol, portanto falhou na coordenação entre as equipas de prevenção ao branqueamento de capitais e comerciais.
O banco recusa estes argumentos e nega a pretensão da empresa em ser ressarcida de perdas, contrapondo que a Amorim Energia acabou por realizar uma operação alternativa com termos mais favoráveis do que os propostos pelo Barclays e com a participação de muitos dos investidores contactados pelo banco. Garante ainda que o responsável que assinou a proposta o fez de boa fé. E até diz que a retirada do banco do projeto teve um custo significativo em termos legais e de perdas de comissões. E reafirma a disponibilidade para negociar uma solução. Mas não há mais documentos sobre o desfecho deste diferendo, a não ser uma referência a uma reunião prevista para outubro de 2014.
O acordo com o Citigroup e o impedimento de usar a compensação para pagar dividendos à Esperaza
Outro dos documentos que surge em anexo à já referida reunião da Amorim Energia remete para um acordo feito com o banco de investimento Citigroup que, em maio de 2012, decidiu não prosseguir uma potencial operação de financiamento para a Amorim Energia. Este recuo deu origem a um pedido de compensação por parte do empresário português, que admitiu recorrer a litigância. Apesar de o Citi não reconhecer qualquer liability (contingência) na sequência desta decisão, optou por chegar a acordo com a Amorim Energia, aceitando pagar 15 milhões de dólares (17,6 milhões de euros), de acordo com o acordo assinado em junho de 2014. Mas com várias condições. E uma delas estabelece que o valor a pagar à Amorim Energia não pode ser usado para distribuir dividendos ou facilitar pagamentos ou reembolsos aos acionistas da Amorim Energia, incluindo, mas não apenas, a Esperaza holding.
Outra condição deste acordo, que está assinado por Américo Amorim e por Alberto Verme, que teve funções de administração do Citigroup Londres, é a de que o grupo de Américo Amorim, ou companhias relevantes que o integrem, ofereçam ao Citigroup o papel de coordenador em futuras operações de financiamento a partir de 50 milhões de dólares durante dois anos. O banco americano acabou por ceder na exigência de coordenar emissões para a própria Galp Energia.
A ata revela que este resultado financeiro para a Amorim Energia acabou por ter um custo que se traduziu em honorários de cinco milhões de dólares pagos a um escritório de advogados americano.