Há socialistas e figuras da mesma área política do Governo apreensivos com a medida anunciada esta segunda-feira por António Costa e que implica que as pensões a partir de 2024 tenham um aumento inferior ao expectável. O Governo não aplica a lei da atualização automática — o que não é uma novidade na história de vários governos — e ainda que consiga manter o seu efeito no imediato, compromete pensões futuras. “Engenharia“, “truque“, “risco sobre 2024”, “tem o que se lhe diga”, são os comentários de alguns dos socialistas depois de conhecerem a medida do Governo.

O pacote de resposta aos efeitos da inflação tem avaliação positiva entre os socialistas contactados pelo Observador, mas embora o mecanismo encontrado para as pensões seja visto como um avanço “prudente”, também causa alguma apreensão pelo que representa para o futuro. “Existe risco de [as pensões] em 2024 não terem o mesmo nível de crescimento que teriam se o aumento de 2023 fosse todo em 2023 e não parte em 2022”, aponta um antigo governante do PS que vê como “indiscutível” esse efeito negativo para o futuro.

“Ninguém teve coragem de dizer claramente que não é possível um aumento de pensões de 8%”, atira outro socialista que classifica como “escusado” o “truque nas pensões”. “O pacote é bom mas escusávamos de ter feito o truque, mais valia assumir” que não há condições para um aumento tão expressivo, diz outro socialista que viu com estranheza Costa a anunciar com “um sorriso nos lábios” aquele que diz ser afinal “um corte de quatro pontos nas pensões de 2024”.

“A medida tem o que se lhe diga, não é muito linear”, reage com cautela a ex-ministra Alexandra Leitão ao Observador. A socialista é mais comedida na análise que concentra no “cumprimento da fórmula” do aumento automático anual no “somatório das duas medidas”: a entrega em outubro de meia pensão e a atualização que Costa anunciou para o próximo ano. “Não é aplicada a fórmula em 2023, mas acaba por ter o mesmo resultado do ponto de vista da valorização das pensões”, acrescenta, tentando desdramatizar a não aplicação da lei que, de resto, “não se cumpriu noutros anos por causa da deflação”, argumenta.

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A lei da atualização das pensões é de 2006 e calcula o aumento com base na média de crescimento anual do PIB nos últimos dois anos e na variação média da inflação nos últimos 12 meses. O antigo ministro socialista Paulo Pedroso explicou, esta segunda-feira à noite da RTP, que “esta é a quinta vez que a lei não é aplicada para impedir aumentos.

“Aconteceu o mesmo em 2011, 2012, 2013 e 2015”, detalha. E acrescenta que, para evitar a descida (tendo em conta o contexto económico negativo), também não foi aplicada em 2010, 2014 e 2021. Isto para concluir logo de seguida que “em nenhum dos casos os aumentos seguintes compensaram os aumentos perdidos”. 

Um histórico que preocupa o PS, que tem no seu eleitorado uma forte frente de pensionistas. E Pedroso não deixou mesmo dúvidas de que “as pensões futuras ficarão a perder em relação ao que teriam” se o aumento de 2023 fosse de acordo com as regras e acompanhasse a variação da inflação e do crescimento da economia.

O eurodeputado Pedro Marques, que foi secretário de Estado da Segurança Social, questionado sobre este mesmo risco, prefere concentrar-se no presente, elogiando as medidas no global. “Não temos informações nem indicações sobre o que acontecerá em 2024, mas o aumento de 2023, com parte significativa antecipada para agora, tem impacto significativo quando é necessário”.

“Numa crise desta natureza, é preciso responder agora”, diz, defendendo que as medidas do Governo foram “tomadas com conta, peso e medida” e são “equilibradas do ponto de vista orçamental e adequadas aquele que pode ser o pico da inflação”.

O socialista diz que as medidas one-off, como a do pagamento de uma meia pensão ou os abonos de outubro para as famílias, são as que estão a ser adotadas “pela maior parte dos países europeus”. Os apoios pontuais, acrescenta Alexandra Leitão, são sempre apreciados do ponto de vista comunitários por serem “menos onerosas”. “No quadro do Orçamento há sempre receios com o aumento de despesas fixas”, acrescenta.

Um antigo governante justifica ao Observador esta intervenção do Governo como “prudência” numa “situação absolutamente excecional com países à beira da recessão mas com crescimentos elevados. Isto aconselha cautela”, afirma, vendo na “solução do Governo” espaço para a “manutenção do poder de compra dos pensionistas no próximo ano”.

Já na frente sindical do partido, o membro da Comissão Política Nacional (e líder da FESAP) José Abrão não se poupa nas críticas às medidas que considera insuficientes e, sobre as pensões em concreto, chama “engenharia” ao que foi apresentado por António Costa que não tem dúvidas: “Reduziu as pensões”. Lembra mesmo as declarações do líder socialista ainda em junho, a prometer um aumento histórico das pensões em 2023.

Em junho passado, de facto, Costa disse numa conferência da CNN Portugal que a lei em vigor “significa que, para o ano, haverá um aumento histórico do valor das pensões”. E detalhou mesmo que esse aumento seria conseguido “pela conjugação de se registar este ano um valor anormalmente alto do crescimento, muito por efeito comparativo do ano passado e um aumento histórico também muito significativo da taxa de inflação”.

Mas a forma que Costa encontrou para dividir esse “aumento histórico” em dois momentos, não permitindo que a base das pensões aumentasse de forma permanente, foi vista pela socialista Rosário Gama, presidente da associação APRe! – Aposentados, Pensionistas e Reformados, como passível de violar a Constituição.

“Se a lei é geral e abstrata, a haver alguma alteração da lei, essa alteração é única e exclusivamente para limitar o aumento dos pensionistas em janeiro e nós queremos perceber se a lei pode ser assim alterada e se esta alteração não é inconstitucional”, argumentou Maria Rosário Gama, numa altura em que a associação tenciona levar a medida ao Tribunal Constitucional.