A relação tem um histórico difícil e delicado. O PS e o Ministério Público tiveram o ponto mais tenso da sua relação com o processo Casa Pia e a detenção do ex-ministro Paulo Pedroso, tanto que, dez anos depois, a atual liderança travou logo eventuais teses conspirativas — com o mantra de António Costa do “à justiça o que é da justiça” — que pudessem nascer da detenção de José Sócrates em 2014. Mas a última semana testou esses limites, com os socialistas a recorrerem agora a alguma ironia para responder ao que alguns já apelidam de “dilúvio acusatório”.

“Quero acreditar, de forma muito profunda que não há qualquer submissão da agenda judicial à política, que os prazos judiciais andem consoante a resposta política”, atira um socialistas com ironia. Outra fonte da bancada parlamentar vai no mesmo tom: “Não quero acreditar que isto seja provocado por uma onda mediática. Que tudo seja uma coincidência. Quero acreditar nisto”. Outro deputado acredita, com semelhante sarcasmo, que tudo se trata de “uma infeliz coincidência”.

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a relação entre PS e Ministério Público.

Estado da Relação PS – Ministério Público: é complicado?

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“Não tenho qualquer grau de suspeita sobre a ação do Ministério Público, é sacrossanto. Nem quero ter, não posso ter. Tenho fé no Estado de Direito democrático. Não abdico desse ato de fé”, quer ainda acreditar outro socialista.

Não é uma cabala, não é igual”, garante um deputado e dirigente do partido que nota, no entanto, um impulso mediático no Ministério Público. “São homens e mulheres como nós, e não é igual ver um secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro e uma pessoa qualquer”, diz falando especificamente do caso de Miguel Alves. “O Ministério Público gere mediaticamente. São humanos”, acrescenta ainda uma outra fonte.

Nos vários contactos feitos pelo Observador para tentar avaliar o estado da relação em causa nesta fase mais densa de “casos e casinhos” (na definição de inúmeros socialistas), salta à vista o desconforto. Um alto dirigente diz, no entanto, que “apesar deste dilúvio acusatório [embora até agora exista apenas um político acusado] industriado pelos do costume, os barómetros do PS não dão sinais de alarme”. Quem são os do costume, o Ministério Público? A resposta é difusa: “Claro que as fábricas da intriga estão a montante”.

“É absolutamente extraordinário haver tantos arguidos [na Operação Teia] e só haver a dedução de uma acusação“, diz um dirigente local referindo-se à acusação do ex-secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro que foi conhecida na passada quinta-feira, três anos depois de ter começado a investigação e precisamente quando surgiu uma nova investigação, alvo de novo inquérito (depois da notícia do jornal Público). Isto tudo menos de dois meses depois de Miguel Alves ter assumido funções junto do primeiro-ministro.

“Foi preciso ter a infelicidade de ir para São Bento?”, questiona um dirigente mais antigo no partido. “É um momento um bocado estranho… esta intensidade”, comenta a mesma fonte: “Até porque não mudou nada na sociedade portuguesa para que, em catadupa, apareçam estes casos todos”.

Os casos. E o caso a que o PS se agarra para dizer que MP também erra

Nos últimos tempos, António Costa viu sair um recém-secretário de Estado depois da acusação do Ministério Público, quando já sabia que era arguido em duas acusações — uma opção que foi questionada dentro do PS –, há um mês viu dois dos mais importantes ministros (e dois ex-ministros) investigados por contratos na Câmara de Lisboa, assinados entre 2014 e 2018, e nem escapou o seu próprio mandato como presidente de Câmara, com uma notícia que remete para contratos assinados em 2010 entre a CML e Miguel Alves.

Pelo meio, um caso a que o PS se tem agarrado na tentativa de deixar dúvidas sobre a ação do Ministério Público: “O caricato caso da Luísa Salgueiro“, como lhe chama um alto dirigente. “Não é só estranho, é um erro grosseiro”, descreve um socialista em conversa com o Observador. Nas conversas com o PS nesta altura e com os casos de justiça em mente não há quem não aponte o caso recentemente conhecido da presidente da Câmara de Matosinhos, Luísa Salgueiro. “É a situação mais incrível”, no conjunto de “exageros de todas as instituições judiciais sobre a gestão pública“, acrescenta outro membro do partido.

A socialista foi, segundo nota da autarquia e depois de a revista Sábado o ter noticiado, constituída arguida e “o único facto imputado à presidente da Câmara Municipal de Matosinhos no âmbito do processo ‘Operação Teia’ é o de ter escolhido a sua anterior chefe de gabinete por nomeação sem ter procedido à abertura de um concurso público”. “Quer venha a ser inocente ou culpada nesta investigação, isto que se conhece agora é persecutório“, considera um socialista em conversa com o Observador.

Presidente da Câmara de Matosinhos constituída arguida na Operação Teia diz que “questão será esclarecida rapidamente”

O caso levou Francisco Assis vir defender a autarca, em nome pessoal, em declarações à Lusa. “A senhora Procuradora-Geral da República tem o dever de se pronunciar sobre este estranho caso o mais rapidamente possível. Estamos perante um grave atentado ao funcionamento do Estado de Direito perpetrado por um Procurador da República”, afirmou o socialista.

No Governo comenta-se com alguma preocupação que os casos “são todos diferentes mas dá para misturar e fazer de conta que é tudo a mesma coisa“. Um antigo dirigente garante não ter “uma leitura conspirativa”, mas aponta a “incompreensível demora” de algumas das investigações que surgem a envolver políticos, o que cria uma suspeita difícil de suportar. ”

Num artigo de opinião publicado no Expresso, a deputada Alexandra Leitão veio detalhar a sua posição sobre o caso Miguel Alves. Tinha sido uma das primeiras vozes a apontar a falta de condições políticas para o secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro se manter no cargo — dias antes da acusação e da saída. Mas não por ser arguido, até porque “a integridade do Estado de Direito depende também do respeito pelos direitos dos políticos enquanto cidadãos: presunção de inocência, direito de defesa, direito ao bom nome e à reputação, à imagem, à reserva da intimidade da vida privada e familiar, à proteção contra qualquer forma de discriminação ou perseguição.”

No texto sustentava, no entanto, a ideia de que “os políticos têm os mesmos direitos que os outros cidadãos, mas também que “os titulares de cargos públicos não podem ser condenados sumariamente a uma ‘morte política’ por haver uma suspeita ou uma investigação em curso, independentemente da constituição ou não como arguido — que, aliás, no nosso ordenamento jurídico é sobretudo uma forma de conferir garantias de defesa a quem é investigado” — uma posição que foi a referida também por António Costa para justificar a manutenção em funções de um governante arguido.

O receio é que as suspeitas que vão recaindo sobre os políticos (sobretudo os que estão em exercício de funções) acabem por limitar a ação governativa. “Deixam de ter capacidade para decidir”, comenta um socialista dando como exemplo a investigação conhecida em outubro que envolve os ministros das Finanças e do Ambientes por questões anteriores ao exercício dos cargos que hoje têm no Governo.

Há também uma visão menos dramática, que não passa tanto pelo Ministério Público mas pelo palco mediático.”Às vezes também se cria uma bola de neve que não é fruto de uma urdidura concertada”, atira uma deputada a deitar água na fervura socialista. “Nota-se uma certa procura de casos, não sei se tem a ver com a maioria absoluta. Mas não parecem coisas orquestradas”, acrescenta resumido as últimas semanas a “modas e momentos que surgem”.

“Também há mais socialistas nas câmaras do que outros”, avança como explicação outro deputado sobre as últimas semanas. “Se temos mais presidências de câmara, não há milagres…

Mas a grande maioria dos contactados, atira mesmo no sentido menos benévolo e há até quem defenda que “o primeiro-ministro tem de pôr o pé na porta para dar sinal ao Ministério Público e à Polícia Judiciária. Tem de ser já”, considera um elemento do partido. No entanto, António Costa não dá sinais de entrar por este caminho e o mais que fez foi, na quinta-feira da saída de Miguel Alves, notar que “foi original” o próprio secretário de Estado ter sabido da sua acusação através da comunicação social. Em matéria de Justiça, a sua intervenção pública tem sido sempre feita com cautelas e, mesmo nesta fase, já recorreu ao seu mantra dos casos judiciais, remetendo logo para a “Justiça o que é da Justiça”.