Quando em março de 1809 o Marechal Soult entrou no Porto para dar mais um passo nas invasões francesas, longe estaria de imaginar que essa invasão não seria a maior ou mais inesperada de sempre da cidade invicta. Muito menos terá pensado que mais de 200 anos depois, ali haveria uma ocupação inglesa relacionada com 22 homens a pontapear uma bola durante uma pandemia. Mas ela aconteceu. E se no caso dos franceses as forças eram de 40 mil homens, a “invasão inglesa” de 2021 não ficou muito atrás: na bancada foram mais de 14 mil adeptos – mais precisamente 14.110 –, com mais uns tantos nas ruas portuenses.
O dia em que Pep Guardiola foi humano e Tuchel virou Deus (a crónica do Manchester City-Chelsea)
De manhã até à hora do jogo, o Observador andou pelos caminhos da Invicta e falou com dezenas de adeptos. Se a maioria parecia ter bilhete para a final, a verdade é que muitos não o conseguiram, e por isso viajaram até ao Porto apenas para sentir um ambiente distante, que ficou perdido antes da pandemia da Covid-19. Uma ideia que é nobre, mas que na altura atual não era recomendada. Aliás, o plano do Governo era que os ingleses viessem e regressassem no mesmo dia, esquema que saiu furado.
“Eu cheguei ontem [sexta-feira] e só vou embora amanhã [domingo]. Espero que com festejos, mas independentemente do resultado só regresso amanhã, porque já comprei os bilhetes”, dizia-nos Lee, um adepto do Manchester City, na Praça da Ribeira. Um de muitos e que furou a bolha. Quando lá chegámos, por volta das três da tarde, estava a praça completamente cheia de adeptos citizens. Os bares ao redor abriram as portas, subiram o volume da música ligada a colunas e o resto da festa foi feita pelos ingleses. A cerveja foi o combustível de um festival onde foram “chovendo” bolas de futebol atiradas por adeptos e onde se foram afinando as gargantas. “Nós tínhamos de estar aqui. Eu tenho 40 anos, há 25 que acompanho o City com a minha família para todo o lado, este não podia ser exceção”. E que família tinha Lee: dez pessoas, dos 20 aos 60 anos, de pais, a avós, primos e sobrinhos.
Eram mais dez pessoas a pintar a beira do Rio Douro, neste caso dez pessoas que furaram (e ainda vão furar mais) a bolha de segurança. Mas porquê a Praça da Ribeira como alvo principal dos adeptos do Manchester City? Está bem, para além da beleza do sítio, porquê a Praça da Ribeira? Porque algumas centenas de metros mais à frente estava uma de duas fanzones, neste caso a dos adeptos do clube de Manchester. O espaço é vedado, bem identificado com placards eletrónicos e com um bem chamativo ecrã gigante com um speaker inglês a convidar à festa. Aqui só entra quem tiver camisola azul bebé, boa disposição e principalmente… um teste negativo à Covid-19.
Para poderem entrar nas fanzones, os adeptos ingleses tinham de levantar uma pulseira, só disponível com um teste PCR negativo. Muitos reconheceram que o procedimento era demorado e que não ajudava, mas lá trataram do processo e entraram na zona destinada aos adeptos, ainda sem filas. Naquela altura ainda era tempo de apreciar o sol. O mesmo fazia um grupo de adeptos vimaranenses à porta do recinto citizen. Cinco jovens com idades entre os 19 e os 21 anos vieram de comboio de Guimarães apenas para assistir à festa. “Não temos bilhete, mas temos saudades do ambiente e aproveitámos para vir aqui festejar o aniversário de um amigo”. Escolheram a zona City pela preferência. “Queríamos muito que o Bernardo Silva marcasse”.
Mas vamos subir as colinas. Se a zona ribeirinha, a zona baixa do Porto, era azul bebé, a área cimeira tinha tons de azul mais carregado e escuro. A fanzone do Chelsea era em plena Avenida dos Aliados, bem identificada com uma réplica insuflada gigantesca da “orelhuda”, o troféu da Liga dos Campeões. Ao som de Sweet Caroline, de Neil Diamond, os blues iam aquecendo a garganta… mas também a iam refrescando. Numa das transversais dos Aliados, na Rua de Sampaio Bruno, os adeptos da equipa de Tuchel não se poupavam a meios: as esplanadas eram território exclusivamente londrino, de pé nas mesas, nas caixas de eletricidade ou com colunas portáteis. A ideia que dava é que seriam menos do que os adeptos do City, mas mais barulhentos – pode ser um número parcial, mas um adepto do City dizia-nos que a proporção era a favor da equipa de Manchester com 4 para 1. Parcial ou não, não devia estar longe.
Mas em termos de decibéis, a diferença numérica não se notava, até se invertia. Algo que se verificou também no estádio. Antes, o barulho dos adeptos do Chelsea ultrapassava os Aliados, chegava quase à Trindade e por pouco que não tocava também a zona do Campo dos Mártires da Pátria. Aqui só tocava o hino da Champions. Uma e outra vez. E outra. Porquê? Porque era o último reduto do troféu antes de ser levantado pelo Chelsea. Estava em exposição para qualquer adepto vê-lo e tocar-lhe, ainda antes de Azpilicueta. Quando aqui chegámos ainda era hora de almoço e o tempo de espera enganava. Assim que as barrigas inglesas ficaram cheias, cheio ficou também o espaço. As filas ficaram com dezenas de metros e centenas de adeptos em espera. “Por mim ficava aqui o dia todo. Já olhaste bem para ela? Que coisa linda! Mais logo tem de ser nossa!”, dizia-nos Michael, um adepto do Chelsea que nem tinha bilhete para o jogo.
No caso de Michael, não tentou regatear. Mas houve quem o fizesse. No metro da Trindade, perante um grupo de adeptos do Manchester City, uma pergunta ecoou para o ar. “Hey, mate! Mate! How much?” – “Companheiro, quanto custa?”. A pergunta era para nós, com vários pares de olhos fixos na acreditação de comunicação social presa no peito. Por curiosidade, fomos descobrir o poder de compra dos ingleses: “Quanto é que davam?”. Depois de algumas gargalhadas, saiu um “O que quiseres, ainda temos uns milhares”, da boca de um citizen. Contaram-nos que no mercado negro estavam à venda por 10 mil euros. Preferimos a oportunidade de assistir ao jogo. E ainda bem.
Para além do bom espetáculo no relvado do Dragão, o melhor foi mesmo voltar a ter banda sonora a acompanhar. Os confrontos dos últimos dias ficaram para trás (mas sem os esquecermos). Este sábado – pelo menos à hora de fecho deste artigo –, não houve conflitos e os ingleses preferiram a festa. O perigoso impacto pandémico será visto nos próximos tempos, com muitas bolhas e planos furados, até criticados pelo Presidente da República. Por agora ficou apenas a festa em tons de azul – principalmente de azul escuro –, no dia em que o Porto que foi de Soult passou a ser o “Oporto” dos blues.