Esta entrevista foi publicada há cerca de um ano. Depois da trivela com que Quaresma nos colocou nos oitavos do Mundial, voltamos a republicá-la.
Constantinopla. No filme “O Escorpião de Jade” (2001), o nome da cidade turca é a palavra-chave para Woody Allen entrar em transe e desatar a roubar peças de valor incalculável na Nova Iorque dos anos 40. Constantinopla. Ups, pronto, já estamos hipnotizados. Pois claro, Constantinopla é uma das cidades mais apaixonantes do mundo. Para início de conversa, é a quarta maior do mundo e a mais populosa da Europa, com 13 milhões de habitantes. E eles não dormem. Acreditem, é verdade. Ou então vá ao aeroporto Atatürk de madrugada. Vá, experimente só uma vez. Vale bem a pena. No nosso caso, o relógio bate três-e-pouco da manhã e isto é uma roda viva, comparável com a Praça dos Restauradores em hora de ponta. Há lojas abertas, restaurantes a servir, cafés a sair. Tudo, tudo, tudo sem exceção, anda a mil à hora com a maior naturalidade.
Constantinopla. Mais um momento de transe. Agora, experimente apanhar um taksi (aqui é assim) e ir do aeroporto para a parte asiática. Ah poizeeee, meus amigos, é a única cidade do mundo a ligar dois continentes, através da Ponte do Bósforo. O taksista reconhece o passaporte, pergunta-me por Ronaldo e respondo-lhe com Quaresma. A partir daqui, é uma amizade infinita sem um único minuto de silêncio. Até à saída do aeroporto. O problema é a falta de entendimento: ele só fala turco, eu só falo português. O pingue-pongue é bastante monótono: Quaresma, Besiktas, Quaresma, Besiktas. De vez em quando, lá sai um Galatasaray ou um Fenerbahçe para animar a malta naqueles intermináveis 103 minutos.
Constantinopla. Outra hipnose. Do aeroporto ao hotel sugerido por Quaresma, mais perto do centro de estágio do Besiktas, é meia-hora para o gps. ‘Tá certo, 44 km = 30 minutos. Mais coisa, menos coisa. Só que não. É sábado e isto aqui ao sábado é tramado. Tal como ao domingo, à segunda, à terça, à quarta, à quinta e à sexta. Há filas intermináveis das 8 às 21h00. Daí os 103 minutos para fazer 44 km. O trânsito é caótico até à ponte. Quatro faixas de rodagem e ninguém anda. Os vendedores aproveitam para fazer pela vida e há de tudo: biscoitos, cães de porcelana, kebabs, bolas de sabão, cachecóis, vestidos, especiarias. Tudo ali à mão de semear. Ninguém os pára. A paisagem é intercalada com bandeiras turcas penduradas nas janelas. Scolari é turco, só pode. Impossível um quilómetro que seja sem uma bandeira, seja ela microscópica, dentro de um quarto de alguém, ou gigante, a ocupar todo um prédio.
Constantinopla. Ou, desde 1930, Istambul. Eis-nos a atravessar a Ponte do Bósforo, da Europa para a Ásia. É lá o encontro com Quaresma, o único campeão pelo Sporting em 2001-02 ainda em atividade. Quaresma, o rapaz com lágrima no canto do olho ao ombro de amigos mais velhos quando o treinador do Sporting lhe entrega a camisola 16 em vez da 10, como castigo por chegar tarde ao treino depois de tomar conta da irmã mais nova. Quaresma, o companheiro inseparável da sua equipa, até em jogos de interesse abaixo de zero e sem ser convocado, como um Leões de Santarém-Sporting em juvenis. Quaresma, o português mais ilustre do Euro-2016 como herói no apuramento para os quartos (1-0 à Croácia em cima do minuto 120) e meias-finais (penálti decisivo vs Polónia). Ei-lo, Quaresma. Génio e figura.
Tudo bem?
Tuudo. Estava aqui a ver a notícia do Portimonense campeão da 2.ª divisão.
A última vez que te vi agora foi em Barcelona, a seguir ao jogo de apresentação com o Boca Juniors, em 2003. Ainda vivias no Hotel Princesa Sofia, bem perto do Camp Nou.
Fiquei lá sozinho uns seis meses e a minha vida era hotel, treino, treino, hotel, às vezes El Corte Inglés, na rua em frente. Como andava sozinho, fazia por aprender espanhol a ver montras e a pedir às pessoas que me ajudassem a dizer a palavra para entender como se dizia. Só quando o meu irmão decidiu ir lá ter comigo é que resolvi comprar casa. Ainda a tenho.
Onde, naquele sítio impronunciável?
[Quaresma escangalha-se todo a rir e até tem de mudar de posição no sofá individual] Castelldefels.
Isso, Castell-qualquer-coisa.
Castelldefels, onde viviam outros jogadores como Thiago Motta e Ronadinho. Ainda tenho lá a casa, na zona da montanha com a praia mesmo em frente. É uma zona fantástica, cheia de restaurantes e bares. Gostei muito de lá viver.
Foi só um ano, certo?
Sim. Decidi que queria sair. Sabes que, quando és jovem, cometes erros. Foi algo que me arrependi. Se eu tivesse calma, conseguia triunfar no Barcelona. Só que naquela fase só queria jogar e não quis esperar por mais um ano ou dois ou fosse o que fosse. E repara, o Iniesta estava lá comigo, soube esperar a altura dele e agora é o craque que é, um fenómeno do futebol. Eu não soube esperar.
O Rijkaard pediu-te para esperar ou…?
O Laporta [presidente do Barcelona] não queria que eu saísse. Só que eu sempre disse ao Jorge [Mendes] que queria sair para uma equipa e jogar com regularidade. Na altura, tinha o Valencia e o Atlético interessados em mim, por empréstimo. Foi então que me decidi a voltar para Portugal, para estar junto à minha família, para estar em casa.
A tua intenção era regressar ao Sporting?
Naturalmente, foi onde cresci e de onde saí para o Barcelona. Era para regressar ao Sporting e até houve conversas. Só que o Sporting não foi correto comigo, já disse em entrevistas anteriores. Nesse tempo, o presidente Pinto da Costa falou comigo e senti uma grande força e vontade da sua parte, ele acreditava mesmo em mim. Foi a melhor escolha que fiz na vida.
Na tua estreia pelo Porto, marcas ao Benfica com uma maldade ao Argel.
É das maiores alegrias da minha carreira.
Porquê?
Porque há uma rivalidade enorme entre mim e o Benfica.
Desde quando?
Desde as camadas jovens pelo Sporting. Quando íamos jogar com o Benfica, ao campo número 2 da Luz, já se falava de mim, pela minha irreverência e maneira de estar em campo. Quando fazia uma daquelas jogadas, lá vinham os comentários do cigano isto, cigano aquilo. E aquilo irritava-me, tirava-me do sério.
O que fazias?
Descansava mais durante a semana para guardar energia e acabar com o Benfica. Era daqueles jogos que me dava mais prazer e até me saía bem, com golos e assistências. Até nos seniores, por Sporting, Porto e, agora, Besiktas. Calhou-me o Benfica na rifa [e Quaresma saca mais um sorriso contagiante].
Há aquele golo no 2-1 do Sporting, em que o João Pinto e o Zahovic se desentendem?
[Quaresma abana a cabeça e esboça um sorriso xxl] Também não percebi bem isso, era um miúdo e estava ali só a fazer o meu jogo. De repente, vejo um a correr para a direita, o outro para a esquerda. Fiquei à toa.
Ias ver jogos ao Sporting quando eras das camadas jovens?
Era apanha-bolas [a voz de Quaresma sobe de tom, animado com a pergunta].
A sério?
Cheguei a ser apanha-bolas do Sporting-Real Madrid para a Liga dos Campeões, em que o Roberto Carlos deu uma bomboca na bola e o Schmeichel nada. Estava atrás daquela baliza. Caraças, és tão miúdo e olhas para os jogadores do Real Madrid a pensar ‘o que é isto?’. Até os do Sporting. Lembro-me de ver o Balakov e o Iordanov a saírem da porta 10-A. Às vezes, batias de frente com eles e dizias ‘eu quero chegar aqui’. Eles assinavam autógrafos e ficavam à conversa com os adeptos, grande cenário.
Todos simpáticos?
Os portugueses, sim. Havia era alguns estrangeiros meio-estranhos, meio-manhosos. Olhava para eles e nem pedia nada. Olha, um jogador que tive o prazer de partilhar a cabine no dia a dia foi o Mpenza, muito boa pessoa. O Balakov era simples. A ele, por acaso, nunca lhe pedi nada. Estava sempre com tantas pessoas à volta dele.
A quem é que pediste um autógrafo?
Lembras-te do Paulo Torres?
Siiiiim.
Havia um miúdo do meu bairro que gostava muito do Paulo Torres e estava meio envergonhado para lhe pedir um autógrafo. Então eu cheguei-me à frente e disse-lhe que ia arranjar o autógrafo. Mal o Paulo Torres saiu, estava eu ali nas grades à porta da 10-A, chamei-lhe ‘ò Paulo, ò Paulo, dás-me um autógrafo se faz favor?’ Não sei ele vinha chateado lá de dentro, só sei que olhou para mim, começou a barafustar sozinho e passou por mim. Fiquei de mãos a abanar, fui ter com o meu amigo e disse-lhe ‘ouve, hoje tiveste azar porque ele não vai dar autógrafos a ninguém’. O miúdo ficou um pouco triste porque ele queria mesmo um autógrafo. São estas coisas que te marcam. Não podes ignorar uma pessoa. Há pessoas loucas por ti, que fazem de tudo para tirar uma fotografia ou sacar um autógrafo e vêm sabe-se lá de onde. A minha família pergunta-me ‘como é que tu consegues estar a comer e dizer sim a todas as fotografias e autógrafos?’ Eu não digo que não, sobretudo a crianças. Quando és mais velho, és tu que tens de ter a noção de tempo e espaço em relação aos outros. Agora, uma criança. Sabes que podes fazer o dia mais feliz da vida dela e tens de estar sempre disponível.
Por falar em criança, quem é que apanhaste do Benfica nas camadas jovens?
Na baliza, cheguei a apanhar o Moreira. Como sempre joguei no escalão acima, estava sempre com os mais velhos. Nos iniciados B, jogava nos Iniciados A. Nos Juvenis B, Juvenis A. Até na seleção. Era dos sub-16 e jogava nos sub-18. Por isso é que apanhei Bruno Alves, Meireles, Ednilson da Roma, Tiago, agora do Atlético Madrid e então do Braga. Era uma grande equipa.
Tinhas esta idade ò?
Iiiiiiiiiiiiii, foste mesmo buscar isto ao baú. Jesus, o que é isto? Isto é a Áustria? Essas botas foram as que mais duraram, até joguei com elas rotas.
E isso dava?
Se dava? Então não dava! Naqueles tempos, dava tudo. Lembras-te do anúncio da Nike com o Figo e o Rui Costa? Essas botas são desse anúncio. Na altura, o Figo era o meu ídolo e eu queria umas iguais. Eram essas e umas do Ronaldo fenómeno, aquelas cinzentas e azuis com R9 escrito.
Nas seleções jovens, ganhaste o Euro sub-16 em 2000.
[sai mais um sorriso marca da casa antes de meter um ar sério] Havia o Hugo Viana, o Custódio e o Meireles. Foram os únicos que avançaram para a seleção AA. Antes das meias-finais, com a Grécia, estava com febre e fui ter com o treinador [António Violante] a dizer que queria ir-me embora. Entrei em stress, deixei-me levar pelo pânico. Era a primeira vez que estava longe da minha família, em Israel, e sentia mesmo a falta deles. Da minha mãe, do meu irmão. Estamos a falar de uma época em que não havia ainda telemóveis. Quer dizer, alguns tinham. Eu não, não tinha dinheiro para isso. Nem a minha família. Tanto assim é que tinha de ligar para a vizinha para chamar a minha mãe. A federação deixou-me ligar para a casa e a minha mãe lá me acalmou. Tal como o meu irmão.
Jogaste a meia-final?
Fui para o banco. Não comia nada, só bebia. Estávamos a perder 1-0 e entrei. O Custódio faz o 1-1 e é minha a assistência para o 2-1 do Hugo Viana.
E na final?
Também jogo com febre, mas isso passa a partir do momento em que entras em campo. Deram-me a medicação, fui lá para dentro e correu super-bem. Marquei os dois golos da vitória, um deles no prolongamento [2-1]. E foi aí onde Bölöni me viu jogar.
Estava lá de propósito?
Não, acho que não. Estava lá porque gosta de apostar nos jovens e foi ver uma final sub-16, com miúdos talentosos, tanto de Portugal como da República Checa.
E depois?
Quando me ligaram a dizer que o Bolöni contava comigo para a pré-época, nem acreditei. Desliguei o telefone e fiquei a olhar para ele naquela do ‘isto é verdade ou…?’. Depois, voltaram a ligar-me e lembro-me de perguntar se era a brincar ou era a sério. Quer dizer, ia jogar com as vedetas da televisão: Barbosa, Paulo Bento, João Pinto, Rui Jorge, Babb, André Cruz, Sá Pinto. Entro na cabina do Sporting e fico à porta, com o cesto na mão, à espera que todos se sentem para saber onde me sento. É quando o Barbosa chama-me, vem ter comigo e manda-me sentar ao lado do Paulo Bento, Rui Jorge e Barbosa. Senti-me… Não pareço, mas sou acanhado. Quando não conheço as pessoas, não sou de sorrisos. Por isso é que muita gente pensa que sou arrogante. Nesses primeiros dez minutos, olhava à volta e não parava de dizer ‘estou com estas vedetas todas’. Só que eu tenho uma coisa: quando entro em campo, esqueço as caras e não ligo a nomes. Ninguém é melhor que eu. E se for, por estatuto, vou dar mais ainda de mim para ser o melhor.
Fizeste alguma maldade nos primeiros treinos do Sporting?
Levei muitas duras porque só queria fintar e não cruzava quando tinha de cruzar. O César Prates, que atacava a bola e tinha uma grande qualidade, passava-me a bola e eu não a devolvia porque queria fazer uma finta ou uma brincadeira. A bola perdia-se, a equipa adversária recuperava-a e o César tinha de recuar à pressa. Quando finalmenta a bola saía, o César olhava para mim e, Jesus, só não me comia, porque não podia.
Os teus cruzamentos apanhavam quem, João Pinto, Niculae, Jardel?
Não, o Jardel ainda não estava na pré-época. Ele só chegou mais tarde e estreou-se em Leiria. Empatámos 1-1, naquele estádio pequenino. Quem fez o golo deles foi o Silas, com o pé esquerdo. Deu-lhe uma bomboca de fora da área e meteu-a na gaveta. Nós empatámos de penálti, pelo Jardel.
E o Bölöni era porreiro, falava bem português?
Impecável. E esforçava-se por falar português. Às vezes, quando estava mais agitado, lá vinha o francês. É normal: quando explodes, falas a língua-mãe. Também me acontece aqui na Turquia. Ao lado do Bölöni, tinhas o Rolão Preto. Ele traduzia tudo. Quer dizer, às vezes não devia traduzir tudo o que o homem dizia [Quaresma mexe-se outra vez no sofá, sinal de galhofa]. Foi um ano muito especial. Na estreia como profissional, ganho campeonato e Taça. Não se podia pedir mais.
É o ano do Mundial-2002.
Poizeeee. Eu estava convocado e saí à última hora.
Heiiiin, para o Mundial-2002?
Sim.
Saíste, porquê?
Muita coisa está para contar, muita coisa.
Também havia o Euro sub-21 nesse ano?
Pois, também não fui. Fiquei sem Mundial e Euro sub-21. Quando acontece aquilo do Kennedy [positivo de doping, já em Macau, no estágio da seleção para o Mundial], continuo em casa e vão buscar o Hugo Viana aos sub-21. São coisas que não dá para contar [Quaresma fala a cantar, com um sorriso matreiro nos lábios].
Esta foto, o que te diz?
A minha estreia no Sporting, com o Porto do Jorge Andrade.
É o tal jogo do 1-0 de Niculae?
É isso, o Sá Bala sai.
O Sá Bala?
Era assim que se chamava o Sá Pinto. Ele lesiona-se no joelho, ainda na primeira parte, aos 20/25 minutos. O Bölöni aponta para o banco e eu olho para o lado, a pensar que era uma indicação para o Toñito ou o Tello, agora não me lembro quem estava sentado ao meu lado. Logo a seguir, o Bölöni começa aos gritos naquela do ‘porque é ainda estás aí sentado?’. O banco todo diz-me ‘vai aquecer, vai aquecer’. Levanto-me e o estádio todo aplaude-me. Aquilo dá-me cá uma força, entusiasma-me e entro confiante. Na segunda parte, cruzamento do João Pinto e golo do Niculae, que era um animal.
Um animal?
Se ele não tivesse aquela lesão grave no joelho, com o Vitória de Setúbal, ele ia ser um dos melhores do mundo. Digo-te, o Jardel fez muito golo à custa do Niculae, que sozinho varria uma defesa, ia contra tudo e contra todos.
Ainda havia o Nalitzis.
O Nalitzis, nossa senhora. Ele até fazia coisas boas nos treinos, só que depois… Há jogadores que não se sentem bem ou falta-lhes a confiança para triunfar num outro país e aí não há volta a dar.
Há aquele golo ao Salgueiros?
Olha, esse é o meu primeiro golo no campeonato. Fiz grandes jogos, tinha metade da seleção portuguesa ao meu lado e isso ajuda-te imenso a crescer, a amadurecer. O Rui Jorge era um lateral incrível. Tal como o Nuno Valente, eram jogadores que enganavam. Tu olhavas para eles e dizias que ias ultrapassá-los com facilidade, só que eles eram tão macacos que adivinham os lances na antecipação. Às vezes, encarava o Rui Jorge e dizia para mim ‘vou meter-lhe a bola em frente e já está está’. Só que não. O Rui dava-me um toque ou um agarrão, ganhava a bola e ainda saía a jogar. Tu é que tinhas de ir atrás da bola. Entendes? Às vezes, ficava a olhar para eles e a perguntar-me ‘como é que vou fazer isto agora?’.
Sais do Sporting para o Barcelona. Havia muitos convites?
Deportivo, Barcelona e uns clubes ingleses. Só que o meu sonho era o Barcelona. Quando o Jorge [Mendes] me disse Barcelona, os meus olhos até brilharam. Sou uma pessoa que decido por mim. Posso ouvir as pessoas que estão ao meu lado, e o Jorge deu a sua opinião, só que eu já estava focado no Barcelona. É para ali que eu vou. O Jorge fez o trabalho dele, e bem. Lá fui. O problema é que apanhei o Barcelona numa fase menos boa, com a corda na garganta.
A aventura até começou muito bem.
No estágio dos EUA, marquei um golo ao Milan. E marquei o golo decisivo na final da Taça Catalunha, com o Espanyol [1-0].
Dividias o quarto com quem?
Ronnie [Ronaldinho Gaúcho]. Dizer o quê dele? Pessoa humilde, jogador espectacular. Joguei com fenómenos do futebol como Luis Enrique, o meu capitão, Overmars, Cocu, Xavi, Davids, Reiziger, Puyol. Tudo malta com muito nome no futebol. Joguei e aprendi com eles. Independentemente de tudo, se corre bem ou mal, aprendes sempre. Se soubesse o que sei hoje, as coisas seriam diferentes.
Quem era à baliza?
O Rüstü. Depois, ainda o apanhei aqui no Besiktas. É uma pessoa fantástica. Um louco, está-lhe no sangue. E tinha o Victor Valdés, que estava a aparecer e até roubou o lugar ao Rüstü.
Ainda havia o Kluivert, não?
Xiii, o Patrick. É dos jogadores que mais me impressionou na carreira.
Porquê?
Com o tamanho dele, olhas e dizes ‘este gajo não tem pinta de jogador’. E perguntavas-te ‘o que é que vai sair daqui?’
E?
Com a bola nos pés, o Patrick era dono e senhor do mundo. Tenho um enorme carinho por ele.
Ele agora é diretor no PSG.
Pode ser que me venha buscar [risos]
Depois do Barça, é o tal desvio para o Porto. Chegaste na ressaca do título europeu do Mourinho em 2004.
Apanhei um ano atípico com três treinadores.
Mesmo assim, o Porto luta pelo título nacional até à última jornada.
Se não tivéssemos perdido pontos em casa, com Rio Ave, Estoril, Beira-Mar. Bem, com o Beira-Mar, levei cá uma assobiadela [parte-se todo outra vez, dobra o riso e tudo].
Então?
No último minuto, estávamos a perder 1-0, passo pelo lateral-direito e meto uma trivela em vez de cruzar com o pé esquerdo. Como a bola saiu diretamente para trás da baliza, o estádio assobiou-me forte e feio. É normal, também o fazia se fosse adepto.
Já falaste dos três treinadores. O primeiro é o Del Neri.
Nem percebi a saída dele. Quando saiu, nunca mais voltou. Só esteve connosco a pré-época.
Nem se despediu?
Não, não, nada.
Depois, chegou o…
Víctor Fernández.
Ah, pois foi, e o Porto ganhou a Taça Intercontinental em Tóquio.
Entrei a meio da final, num jogo em que dominámos e atirámos umas duas bolas ao poste, uma pelo Luís Fabiano e outra pelo McCarthy.
Olha aqui a foto.
Xiiii, tão novinho e tanto cabelo. Saudades [Quaresma esparrama-se no sofá a rir sem parar]. Está aqui o Seitaridis, o Ricardo Costa e um chinoca que não sei quem é.
Os penáltis estavam pensados em Tóquio?
Não, queríamos resolver o jogo em 90 minutos até porque era o Once Caldas, nada do outro mundo. Quer dizer, o Once Caldas tinha ganho a Libertadores, mas não era um nome forte do futebol sul-americano. Aconteceu aquilo das bolas ao poste e fomos para os penáltis. Quando vais para os penáltis, é tudo uma questão de sorte. O desempate, digo. Podes ser um jogador que bate bem o penálti, mas se o guarda-redes adivinha o lance é fatal. Ainda ontem, por exemplo, bati um penálti e vi a bola passar-lhe por debaixo da mão. Até me assustei, é que o jogo estava 1-1. Em Tóquio, quando fomos a penáltis, sempre acreditámos na vitória. Foi o Pedro Emanuel quem nos garantiu taça.
E a lesão do Baía?
Dá que pensar, sabes? A morte do Fehér em Guimarães tinha sido no ano anterior e, de repente, vês o teu capitão a sair e a dizer que não se está a sentir bem. Com o desenrolar do jogo, até nem estás focado nisso mas basta acalmares-te e começas a fazer perguntas a ti mesmo, tipo ‘o que é que passa neste mundo em que anda tudo a morrer e a acontecer coisas que ninguém está à espera?’
É também a época daquela cóboiada do Benfica-Porto: golo do McCarthy golo-não do Petit. É um jogo que te traz alguma coisa à memória?
Traaaaaaz, traz. Esse é o jogo em que o presidente estava a falar e veio o Nuno Gomes? Por acaso, já estava na cabina e só vi na televisão, mais tarde [mais um sorriso malandro de Quaresma]. Há histórias bonitas para uma pessoa recordar [carreeeeeeega no sorriso]. Os jogos com o Benfica trazem sempre boas memórias, pela rivalidade saudável. Fora de campo, respeitamo-nos uns aos outros e damo-nos na seleção. Lá dentro, ninguém se pode ver uns aos outros. Eu, por exemplo, não olho a caras. Podes ser muito meu amigo, até amigo de casa, mas não me fales porque não te vou falar. E se tiver de te rebentar dentro de campo, rebento-te. Tenho de ganhar, ponto. É por isso que os adeptos vão ao estádio. Falo da rivalidade saudável, claro, não daquilo que agora há muito, demasiado: as conversas sem sentido.
E depois, esse Porto 2004-05?
Essa equipa era boa, bem boa. Já falámos do Fabiano e do McCarthy. Ainda havia Diego, Carlos Alberto, Derlei, Maniche, Costinha, Baía, Nuno Valente, o Bicho [Jorge Costa], Seitaridis, Pedro Emanuel, Pepe, Meireles. Tinhas um plantel fantástico, só que não conseguimos o objetivo essencial: o campeonato.
O campeão foi o Benfica do Trapattoni.
Um justo campeão, atenção. Só que era aquele joguinho do marcas um golo e toca a defender.
Para 2005-06, o Porto aposta no Co Adriaanse. Que tal?
Vou dizer-te uma coisa e até me podem achar que sou maluco em dizer isto: foi dos melhores treinadores que apanhei. Ele tratava-te, pfffff.
Então?
Dizias bom dia e ele nada. Nada mesmo, nem… Nada é nada. Estavas em estágio, entravas no mesmo elevador que ele e ele nem ai nem ui. Nada, passava-lhe completamente tudo ao lado. Chegavas ao campo e não tinhas aquecimento. E foi o único ano em que não tivemos uma única lesão. E agora explica-me isto? Explica-me.
Não consigo.
Ele não alongava e raramente fazia ginásio. Levou-nos ao limite físico.
Imagino a pré-época.
Não imaginas, não. Tive uma pré-época que nunca tive. Acordávamos às seis da manhã e ias de bicicleta até ao parque. Sem comeres nada. No parque, fazias quatro km. Vi jogadores a cair e a vomitar. A vomitar cuspo porque não tinhas nada no estômago. A ele, dava-lhe igual. Voltas para o hotel de bicicleta. Mudavas de equipamento, tomavas o pequeno-almoço e ias para o campo levar mais uma tareia, já com bola. Na parte final do treino, ele fazia quatro séries de seis segundos da área ao meio-campo.
Como assim, isso é o quê?
É uma coisa inventada por ele [Quaresma nem consegue falar direito porque a gargalhada intromete-se no pensamento]. Se demorasses mais de seis segundos a correr da área ao meio-campo, ele obrigava-te a repetir. Foi aí que vi que a gente tinha um espírito de grupo fantástico. Havia jogadores que não conseguiam fazer, só faziam acima dos seis segundos, e metade do grupo já estava despachado. Porque aquilo era assim: quem fizesse em seis segundos ou menos, ia tomar banho. Os outros tinham de ficar até acabar o teste.
Dureza.
Mais de metade do plantel já estava a alongar, só que os outros não estavam a aguentar mais. Não dava, via-se isso. Então, todos os que estavam de fora entraram no treino. O Co Adriaanse olhou para nós e disse ‘ai é, então agora vão fazer seis séries, todos’. Ele tinha as coisas loucas, mas era grande treinador, que sabia picar-te na hora. E a mim soube picar-me. Digo-te, é uma palhaçada os jogadores entrarem em paranóia com os assobios. Falo por mim, sempre soube reagir a isso. Sei que ou me amam ou me odeiam, estou sempre na corda bamba. Se há dias em que as fintas não te saem, os cruzamentos não te saem e os remates não te saem, os adeptos vão estar lá com o apito na boca para te julgar. Só que a verdade é esta: se não tiver pressão, passo ao lado do jogo. E isso vê-se em toda a minha carreira: as minhas melhores épocas foram com treinadores que me meteram pressão. Ou demonstras que és melhor que os outros ou nem jogas. E isso dá-me gozo, dar a volta ao jogo. Aconteceu com o Adriaanse.
Como?
Só para início de conversa, ele começou mal comigo. Estávamos em Amesterdão, com Ajax, Boca Juniors e Inter, num torneio em que todos podem ir para o banco. Antes do primeiro jogo, virou-se para mim, à frente de todos, e disse ‘hoje vais ser um jogador muito importante para eles, sabes porquê?’ Eu perguntei-lhe o porquê e ele ‘vais para a bancada, apoiar os teus colegas.’ Nem me equipei, fui para a bancada sozinho. Passei o jogo a pensar ‘este gajo está a brincar comigo’. O Jorge [Mendes] ligou-me a dizer que era melhor sair do Porto, porque ia ter dificuldades em jogar.
E tu?
Disse-lhe que não saía. Ele ia ter de me engolir. E meti na cabeça que tinha de dar a volta àquilo. Na altura, começa a jogar o Jorginho, o Postiga, o Alan e o Ninja. Não, não era o Derlei. Era o argentino, o Lisandro. Esses quatro na frente, com o Jorginho a 10, Postiga a 9, Alan e Lisandro nas alas. Ainda por cima, ele tinha uma forma de fazer a convocatória muito rara.
Então?
Acabava o último treino da semana, juntava a equipa no círculo do meio-campo e ia apontando o dedo. Se passasse por ti, tchau. Via o dedo a passar por mim e já fui. Era um desespero. Na altura, não jogava eu, o Pepe e o Bosingwa. Entrámos todos ao mesmo tempo.
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Entras quando?
Na 3.ª jornada, com o Rio Ave. Vou ao banco e entro a cinco minutos do fim com 0-0. Faço o 1-0 de trivela e o jogo até acaba 3-0, com golos de Alan e Hugo Almeida. Na jornada seguinte, os jornalistas falam insistentemente de mim e jogo outra vez, na Figueira da Foz. Faço o cruzamento para o golo do Hugo Almeida. Na semana seguinte, ele mete-me a 30/20 minutos em Braga e eu só fiz porcaria. Perdi uma bola que ia dando golo. Fiz uma falta à entrada da área que ia dando golo. Não fiz uma de jeito e pensei ‘estou feito, vou voltar ao mesmo’. Passei a semana a treinar bem, ele mete a equipa titular com o Belenenses, em casa, e eu não estou. Chega a hora do jogo, põe-me a titular. Saco um jogão, fui eleito o melhor em campo por vocês, jornalistas. A partir daí, começo a ganhar o meu espaço. Vem o jogo com o Benfica, com os dois golos do Nuno Gomes, e vou ao banco. Entrei só na segunda parte e até expulsei o lateral-esquerdo brasileiro, o Léo. Daí em diante, agarrei o lugar. Que época [Quaresma cresce no sofá]. Todos falavam de mim, do Lucho, do Lisandro, só que havia um jogador mais importante que todos estes: o Paulo Assunção. Ele segurava toda a equipa e estava em todo o lado. Foi um ano em que nós entrávamos no túnel e sentíamos que o jogo já estava ganho. Olhavas para o lado e vias o adversário a tremer por todo o lado. Ainda há dias, na seleção, comentei isso mesmo com o Bruno Alves e o Pepe. Eles, fossem quem fossem, entre grandes e pequenos, diziam ‘lá vem o nosso pesadelo’.
O Co Adriaanse também saiu de forma repentina, como o Del Neri?
Saiu por culpa própria. Não vou divulgar nada, mas fez coisas que não devia ter feito, Ninguém queria que ele saísse e todos os jogadores admiravam-no como treinador, apesar do seu feitio.
Depois vem o Jesualdo.
Antes, ainda há o jogo da Supertaça. É o Rui Barros.
Certo, certo: 3-0 ao Vitória.
Um golão do Vieirinha, que me substituiu a meio da segunda parte.
Agora sim, chega o Jesualdo.
Um treinador experiente, sereno, que sabe lidar com os jogadores. Vi com os meus olhos o trabalho do Jesualdo depois dos treinos e há muitos jogadores que têm de lhe agradecer o que são hoje. Ele perdia muito tempo a treinar receção de bola, desmarcação, posição e tudo isso.
Sentiste-te tentado a ir lá para fora outra vez?
Tinha o Chelsea e o Inter. Já sabia que o Scolari ia para o Chelsea, só que o Mourinho estava também a falar comigo. Acabei por escolher o Inter e não correu como estava à espera, em todos os sentidos.
Porquê?
Não me adaptei a muita coisa. Deitei a toalha ao chão e a culpa foi minha. Se começas a procurar culpados, é porque estás fraco. E eu não sou fraco. A culpa foi minha. Se bem que houve momentos em que podia ter sido ajudado e não fui. O resumo é simples, tenho de agradecer a Deus pelas oportunidades dadas, tanto por ter jogado nos melhores clubes do mundo como ao lado dos melhores jogadores. Nesse Inter, era Ibra, Figo, Zanetti, Milito, Materazzi, Cambiasso, Stankovic, Júlio César. Uma série deles.
E o Balotelli?
Xiii, o Mario, o Mario [Quaresma repete-se a rir imenso]. Ainda há pouco falei com o Mario ao telefone. Quem o conhece, não diz que ele é aquilo que se vê na televisão.
Há aquele episódio na final da Taça de Itália, com o Totti.
O Mario tira-te do sério. Ele é uma pessoa que sabe o que está a fazer e ele sabia que era importante picar o Totti. Adoro o Mario e tenho pena de não o ver lá em cima, entre os melhores do mundo. Se ele não está, é por ele. É como eu: se não estou entre os melhores, é por mim. Escolhes os teus caminhos e já está. Agora uma coisa te digo: no dia a dia do Mario, vês que é uma criança, uma boa pessoa, com um grande coração.
E o Zlatan?
É uma pessoa especial com um feitio especial. Admiro-o porque não olha a caras. Fala da mesma maneira com o melhor do mundo e o pior do mundo. Admiro-o porque há pouca gente assim. Normalmente, os jogadores dizem o que as pessoas querem ouvir. Quando apanhas um que diz o que quer, as pessoas dizem que ele é louco. Se calhar, eu também sou louco porque gosto mais dessas pessoas. E o Zlatan é um deles.
Depois do Inter, o Chelsea do Scolari. Antes disso, o que foi aquilo do defender o “minino” no Portugal-Sérvia?
[tragam outro sofá, se faz favor; este já está mais que gasto pelos constantes vaivéns de Quaresma a rir-se]. Eheheheheheheh, sinceramente nem percebi o porquê daquela confusão. Tive uma picardia com o lateral-esquerdo, uma picardia normal. Quando viro as costas, o Nuno Gomes puxa-me e começo a ver toda a gente a correr. Só na televisão é que vi o Scolari a tentar dar o soco, a dizer que é para defender-me e essas coisas todas. Cheguei a estar em casa, com a família, e a rir-me com essa cena. Sobre o Chelsea, nada me correu bem nesse ano. Na semana em que chego, jogo a titular, empatamos e o Scolari é despedido. E eu pensei ‘esta época acabou para mim, vem aí um novo treinador e vai meter outros’.
Foi?
Malouda, Drogba. Ainda fui ganhando oportunidades no início, mas depois deixei de ser convocado.
Por quem?
Guus Hiddink.
Nem uma conversa do Hiddink?
Nada. Mas a minha maior burrice foi o regresso ao Inter. Uma perda de tempo. Se pudesse voltar atrás, ia corrigir isso.
E o que fazias?
Ia para outro clube, procurar a minha sorte. Quando não triunfas num clube no primeiro ano, dificilmente triunfas no segundo. Fui para o Inter na esperança de ter mais oportunidades com a saída do Figo. Sinceramente, tive mais oportunidades na primeira vez do que na segunda.
E a aventura na Arábia?
Essa garanto-te que foi a maior estupidez na minha vida. Ires para a Arábia aos 29 anos é estragares-te para o futebol.
Onde estavas?
Dubai.
Que tal?
A vida, em si, era fantástica. Faz sempre sol, tens a praia ali ao lado e estás no Dubai. Até aqui, tudo bem. O problema é o resto e o resto é a minha vida. Íamos à praia todos os dias. Para jogar é que não dava. Treinávamos às sete/oito da noite, porque era completamente impossível antes com aquele calor. Depois chega a altura das rezas deles e tens de parar o treino para orares. Cheguei a ligar ao Jorge no segundo dia a dizer-lhe ‘tira-me daqui, quero ir-me embora’. Chegava a casa e dizia à minha mulher ‘o que é que eu fiz à minha vida?’ Foi aí que tive a sorte de receber a chamada do presidente Pinto da Costa. Vou agradecer-lhe para o resto da vida. Ele acreditou em mim, quis-me de volta. Quando soube da oportunidade de regressar ao Porto, nem me importei em deixar dinheiro para trás. Era a oportunidade ideal para voltar ao futebol. Se tivesse ficado um segundo ano no Dubai, já tinha acabado para o futebol.
Quem era o treinador dessa equipa?
Quique Flores.
E jogadores?
Grafite, do Wolfsburgo, lembras-te? E o Jiménez, um chileno que jogou no Inter.
Xiiiiii, o Jiménez. Nunca mais me lembrei dele.
Nem sei onde é que ele está agora. Ou se está ainda a jogar.
Hoje estava a pensar na final do Mundial-2006 e lembrei-me que já me tinha esquecido do Pirlo.
Do Pirloooo? Ninguém se pode esquecer do Pirlo.
Bem sei, bem sei. Imperdoável.
O Pirlo é daqueles que não te podes esquecer. Quando falas nos grandes, o Pirlo está lá. Como um Rui Costa, um Figo, um Cristiano. Sobre o Rui Costa, tenho uma história engraçada. Passei a admirá-lo com uma atitude.
Qual?
Estávamos nos EUA e íamos jogar Barcelona-Milan. Antes do jogo, no túnel, vi o Rui Costa junto à equipa do Milan com as vedetas todas. Repito-me, sou envergonhado por natureza. Fiquei com receio de ir lá e ele não me falar ou só falar por falar. Fiquei no meu lugar, encostado à parede. Nisto, o Rui veio ter comigo, deu-me um abraço, um beijinho e puxou-me para o lado do Milan. Cumprimentei todas aquelas vedetas e ele começou a elogiar-me. Isto são coisas que não se esquecem, sobretudo para um miúdo de 20 anos. Além de ter sido um craque como jogador, daqueles que não te importas de pagar o que quer que seja para o ver em ação, também é um craque como pessoa. Ainda agora, quando o Benfica veio jogar com o Besiktas, fui à cabine com o meu filho para falar com ele e o Eliseu.
Ele levou a scooter para o balneário?
Nãããããã, esse ainda vai levar comigo com a scooter.
E o teu filho, maravilhado com o ambiente?
Claro.
Ele é do Benfica?
Poooorto [com uma inflexão divertida na voz, para dar ainda mais força]. O Eliseu bem se mete com ele, a tentar puxá-lo com a conversa do Benfica é isto, o Benfica é aquilo e o meu filho diz-lhe que o Benfica é uma porcaria. Por acaso, passámos as férias juntos depois do Euro-2016 e foi engraçado porque o Eliseu estava sempre a picá-lo com o Porto é isto e o Porto é aquilo só para o ouvir. Ele começa-se a irritar e aí tenho de entrar em ação a chamar-lhe a atenção para ficar calado. Claro que a culpa toda é do Eliseu [Quaresma dá outro sorriso dos dele, bem largo].
Esta foto já é da segunda fase do Porto.
Grande treinador, o Luís Castro. Uma pessoa de quem gosto muito e tive pena que o Porto não lhe tenha dado uma oportunidade para ele começar uma época no clube só para ver o que ia dar.
Ele aparece na época do Lopetegui?
Não, não, isso é a época do Paulo Fonseca. O Paulo Fonseca sai e entra o Luís Castro.
O Lopetegui é antes, então?
Exatamente.
E o que se passou entre ti e o Lopetegui? Há aquela semana em que és substituído ao intervalo em Munique [Bayern 6 FCP 1] e nem sequer és titular no jogo seguinte, com o Benfica, na Luz?
Houve muita coisa sem explicação. Ainda hoje me pergunto o porquê de muita coisa, muitas ações.
Foi uma relação má à partida e foi-se degradando?
Desde o início que sabia que o Lopetegui não me queria. Mesmo assim, consegui fazer a época que fiz: várias assistências, vários golos, tantas assistências e quase tantos golos como os jogadores que ele metia sempre a jogar. Podia estar aqui a contar muita coisa, só que não vale a pena. É dar importância a coisas sem importância.
Vamos lá a coisas que interessam. E este golo, é o mais fácil da tua vida?
É o único de cabeça. Ai não, espera lá, fiz outro de cabeça, pelo Porto ao Gil Vicente, em casa.
É um golo que muda a agulha do Euro?
Muitíssimo, deu-nos um empurrão.
E a jogada em si?
Fui eu que recuperei a bola. Aliás, eles mandam ao poste, a bola sai da área, eu recupero, dou ao Cris, o Cris para o Renato, o Renato no Nani, o Nani, nem sei que quis rematar ou não, acho que sim [parte-se a rir], e a bola vai para o Cris. Normalmente, eu é que devia estar no lugar do Cris e ele no meu, porque é o Cris que aparece como ponta-de-lança. Quando vejo a bola a ir para o Cris, já estou quase a festejar. Ele não falha aquilo: em dez, mete nove. Quando vejo o guarda-redes a defender e a bola a sobrar para mim, pensei ‘olha, este é o meu dia’. Também se falhasse ali, Jesus, nunca mais entrava em Portugal.
Esse jogo com a Croácia foi chato, zero remates à baliza em duas horas.
É aquele jogo… Como é que te vou explicar: estás em campo e a rezar para não ires a penáltis. Todos os jogos foram um sofrimento, tudo à última, este não foi claramente a exceção. O espírito de grupo e a fé do seleccionador levaram-nos ao sucesso num momento em que havia muita gente a criticar-nos, a rebentarem connosco de alto a baixo. Tínhamos televisão portuguesa nos quartos do estágio e sabíamos o que diziam de nós. Isso juntou o grupo.
Há algum momento chave?
Sabes, gosto de ouvir os entendidos do futebol comentar certas e determinadas coisas. Como é que tu me vais explicar situações de balneário se nunca viveste dentro de um balneário? Uma coisa é tu comentares um jogo, okay, é a tua opinião, se achas que aquele jogador não tem qualidade, muito bem. Agora, há muita coisa na vida de um futebolista: tens o balneário, tens fora do balneário, há ene coisas. Ouço os comentadores e começo a rir-me. Enfim, como qualquer futebolista nos dias de hoje custa 70 milhões, também qualquer um é comentador e isso dá-me graça. A maior graça que me dá é que às vezes, as pessoas vêem-te na rua, são educadas, cumprimentam-te e elogiam-te. Depois chegam à televisão e mudam o discurso, rasgam-te todo. Perdi muito no futebol porque não sei lidar com falsidades. Quando tenho de fazer, faço. Essa coisa de me darem palmadinhas nas costas e tentarem prejudicar-me por trás, isso não dá. Se não vais com a minha cara, não és obrigado a cumprimentar-me. Se eu não for com a tua cara, não te cumprimento. O que me custa mais são antigos jogadores que falam mal. Nem falo só de mim. Falo de coisas que ouvi de antigos jogadores que te criticam depois de terem estado contigo, de terem partilhado o mesmo balneário que tu. Ou sou eu que não sou deste mundo ou então há coisas que estão todas trocadas. Também te digo: desde que fui pai, mudei muito a minha maneira de estar. Passei a não ligar ao que as pessoas dizem. Se ainda ontem me estavas a dar um abraço e hoje já não sou nada, o que é isto? É complicado gerir isso. Ainda agora no Euro-2016, durante a fase de grupos, houve muita gente que gostou de meter a sua picadinha. No final, quê, já somos os maiores outra vez? É isso que não entendo e prefiro não falar com as pessoas do que ser falso. Se não gosto de ti, não te cumprimento.
E esta foto aqui?
A imagem que vai ficar para a história. Até o árbitro de baliza está a entortar a cabeça para ver o que se está a passar. Nem sei porque é que o agarrei. Não te sei explicar, talvez para ganhar tempo, não sei.
Queriam ir aos penáltis?
Nãããã, queríamos resolver logo ali, sem penáltis.
Falaste com o Ronaldo na altura da substituição?
Não, só ao intervalo, na cabina.
E então?
A coisa que mais admiro do Cris é a força da vontade. Já sabia que estava lesionado, só não sabia se era grave ou não, e nunca deixou de acreditar em nós. Quando ele sai, pensámos ‘vamos juntar-nos ainda mais e ganhar isto’. Há uma série de jogadas, umas deles, outras nossas.
O Patrício fez uma grande final.
Mais, o Rui fez um grande Europeu. Mas, para mim, o melhor de todos foi o Pepe. Para ti, quem foi?
Patrício. Defendeu aquele penálti no desempate com a Polónia e não cometeu um erro na final.
Compreendo-te. Entre o Pepe e o Rui, houve jogos que o Rui segurou a seleção. Só que o Pepe manteve uma regularidade impressionante.
Conheces o Pepe desde os tempos do Sporting, certo?
Isso mesmo, ele foi treinar a Alvalade na época do Bölöni, juntamente com o Danny, e volta para o Marítimo, porque há ali uma confusão de dinheiros. O Marítimo quer mais dinheiro e o Sporting não se chega à frente. Dois anos depois, encontro o Pepe no Porto: eu era o 10 e o Pepe o 7. Se me pedissem para escolher os três melhores do Europeu, era Pepe, Rui e Cris. Na hora da verdade, o Cris aparece. Depois há um miúdo que vai ser um dos melhores do mundo que se chama Raphaël Guerreiro. Xiiii, é incrível. O miúdo não quer saber se está a jogar com o melhor do mundo ou o pior do mundo, ele leva tudo à frente, é uma máquina.
Olha lá isto: até parece que o guarda-redes vai defender?
Paaaarece. Ia muito calmo, tão calmo que até o Eliseu fica a gozar comigo e a dizer que não tenho sangue nem coração. A verdade é que ia muito calmo, convicto que ia ser golo. Se te lembrares, até fiquei parado por uns momentos e só depois é que reentrei no jogo.
E porquê?
Porque atiro a bola e o guarda-redes faz-lhe uma festa. Ele adivinha o lado, só que a bola entra. Foi uma alegria.
É verdade que eras jogador de hóquei em patins antes de te tornares futebolista?
[Quaresma bate com as mãos na pernas] Do que te foste lembrar, Campo de Ourique. Joguei hóquei no CACO [Clube Atlético de Campo de Ourique]. Tinha para aí uns 8, 9 anos. Dez, no máximo. Dava quedas à toa e partia-me todo. Ainda me habituei àquilo, só que era muito desengonçado. Às vezes, não chegava à bola, porque os outros eram mais rápidos que eu, por experiência, matreirice e velocidade, e a minha vontade era atirar-lhes com o stick [Quaresma volta a rir-se sem parar, é um regabofe]. Na altura, já treinava no Sporting e a minha mãe insistiu na escolha pelo futebol. Ainda por cima, o meu irmão também jogava no Sporting e sempre podíamos ir juntos. Era um descanso para a minha mãe, saber-me debaixo da asa do meu irmão.
E é verdade também que praticaste karaté?
Ainda hoje, pratico karaté. Também gosto muito de muay thai e boxe. Quando tenho oportunidade, treino. Porque é bom saberes-te defender. É um desporto que adoro. Também gosto de golfe, mas saio de casa na boa durante um jogo de golfe na televisão. Já o boxe, nem pensar. Aquilo prende-me. À exceção do futebol, é o único desporto que perco tempo a ver na televisão. Tudo o que seja porrada, perco tempo a ver isso. A minha mulher também gosta, o Ricky também.
O Ricky é o karate kid?
Kid, sim. Karate é que [e parte-se a rir]. Ele gosta mais é de futebol. Esteja a chover ou a fazer sol, ele gosta é de estar a jogar, a acertar nas árvores, nas paredes, nas balizinhas dele. Ainda hoje, estava lá a dar uns pontapés na bola quando saí de casa para aqui. O Rickyboy é mais conhecido que muita gente aqui na Turquia, fazem instagrams para ele e tudo. Queres ver, olha aqui ò: 171 seguidores. [Quaresma pega no telemóvel e mostra-nos fotografia do Ricky com uma série de ilustres desconhecidos]
https://www.instagram.com/explore/tags/rickyboy/
Há pouco, estavas aí a falar com dois adeptos turcos. Falas turco?
[Quaresma, já de pé, dá uma gargalhada imensa]. É difícil. Eu não falo. Entendo é muita coisa. Falar falar, é muito difícil. A verdade que nem me esforço muito.
Tens aulas?
Nunca tive.
Então, tudo o que sabes…
É de apanhar no ar, no dia a dia.
Como é um flash-interview ou conferência de imprensa?
Temos tradutores. Todos os clubes turcos têm tradutores para ajudar os estrangeiros. Falo sempre em português e ele traduz.
E os insultos em campo?
Se eles me insultam na língua deles, insulto-os na minha. A primeira coisa que aprendes é o que não deves, certo? Sabes uma coisa: por acaso, sempre me respeitaram muito neste campeonato. E quando apanho porrada, raramente entro em picardias. Antigamente não, era mais frequente bater de frente com as confusões. Agora, sinto-me mais tranquilo, sem entrar em loucuras. E respeitam-me, o que é ótimo. Os insultos é mais com os adeptos: este ano, já levei com pedras, água, bombas.
E o campeonato, bom?
A liga é competitiva e os estádios estão sempre cheios. Quem me dera a mim, e a muito gente, que em Portugal fosse assim. Ires a Setúbal e o estádio cheio. Seria fantástico. Infelizmente, a vida de Portugal não permite que as pessoas gastem dinheiro em bilhetes de futebol.
E este trânsito, o que é isto?
Em Portugal, controlas a hora do trânsito da manhã e depois à tarde, Aqui, esquece. Já cheguei a estar hora e meia em cima da ponte, às 5 da manhã, depois da festa do Besiktas pela conquista da Taça da Turquia. Fomos sair todos juntos, jantar e tal. Quando me decidi a ir para casa, passei 90 minutos dentro do carro. Eram cinco da manhã e deviam estar todos a dormir. Nem pensar, estavam todos em cima da ponte. Às vezes, perdes aquela vontade de sair de casa para ir jantar a um restaurante ou assim porque fazes as contas e esquece: estás duas horas preso no trânsito e ainda morres é à fome dentro do carro. Mas Istambul é uma cidade, pffff, fantástica. A maneira como as pessoas te tratam. Sinto-me em casa, tanto em Istambul como no Besiktas. É um clube de bairro, como o Porto, e identifico-me muito com isso. Por alguma razão, triunfei nos dois.
Podes sair à rua?
É difícil andar sem ninguém notar a tua presença, estão sempre a pedir fotografias ou autógrafos. Até nos restaurantes mais famosos de Istambul, há sempre jornalistas e cameramen lá fora à minha espera e a filmarem-me.
A sério?
A sério mesmo, eles aqui vivem muito isto, respiram as pessoas famosas.
Vais viver aqui?
Vou dizer-te isto: a minha família é quase toda benfiquista, à exceção do meu pai, um sportinguista doente, que fica revoltado quando perde, e o meu irmão, outro sportinguista. Eu também fui sportinguista. Mas quando fui para o Porto, percebi que era Porto e dei por mim a pensar ‘devia era ter nascido aqui’. Não é só o clube, também é a cidade e as pessoas. É tudo diferente. Se precisas de uma ajuda, as pessoas de Lisboa dizem ‘vá por ali, ali e tal’. Se for no Porto, até te convidam para entrar no carro e levar-te ao sítio ou então guiam-te à porta a pé. Claro que há o outro lado da questão: no Porto, uma cidade mais pequena que Lisboa, toda a gente sabe o que fazes. Mas isso não me incomoda minimamente. Digo-te, vou viver no Porto e ninguém me vai mudar essa ideia. Até porque a minha mulher e os meus filhos adoram viver no Porto e ainda agora modifiquei a minha casa. É lá que me sinto bem.
Vibras com o FCP?
Eu estava em casa a ver aquele jogo com o Benfica na penúltima jornada e nem imaginas os saltos que dei com o golo do Kelvin. Parecia um louco. A sério, a sério. Vibro com o Porto como pffffffff. Tenho SportTV em casa, claro, e este ano desligava a televisão ou mudava de canal quando o Porto não ganhava um jogo. Atenção, o Benfica é um justo campeão este ano. Tem uma estrutura sólida, com um grande presidente, um grande treinador e uma grande equipa. Se fez mais pontos, merece tudo de bom. É um campeão justo.