Quem tiver um crédito à habitação (e, eventualmente, outros créditos ao consumo) e tenha sofrido um aumento rápido da sua taxa de esforço – para mais de 36% do rendimento líquido – terá uma “via aberta” para renegociar com o banco uma forma de atenuar as responsabilidades mensais, afirma o Governo. Dessa renegociação podem advir mudanças como o prolongamento do prazo do empréstimo (reversível nos cinco anos seguintes), uma carência de pagamento de juros durante um determinado período, consolidação de créditos, entre outras hipóteses. No limite, o cliente tem a “arma negocial”, diz o Governo, de não ter de pagar comissões de amortização antecipada – uma forma de eliminar um possível obstáculo à mudança de banco.

Estes são alguns dos pontos principais do diploma que o Governo aprovou esta quinta-feira em Conselho de Ministros e que pretende “disciplinar” o enquadramento em que os clientes bancários podem aceder a uma renegociação dos créditos que, no limite, pode ser feita ao abrigo do (já existente) Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI). O documento foi apresentado em conferência de imprensa onde participou o secretário de Estado João Nuno Mendes, que tem sido o rosto da preparação deste plano e que já tinha avançado vários dos seus contornos no parlamento, há várias semanas.

Apenas os créditos à habitação própria e permanente, até 300 mil euros, podem ser incluídos neste enquadramento, revelou João Nuno Mendes, que não tinha ainda trazido a público os patamares concretos que estão previstos no diploma.

O patamar a reter é 36%: é a partir daí que o banco tem de fazer uma “avaliação aprofundada” da situação específica do cliente. Desde que se cumpram alguns critérios: a taxa de esforço ter subido cinco pontos percentuais no último ano (para mais de 36%) ou, em alternativa, se a taxa de esforço superar os 36% numa situação em que é atingida a taxa de juro que está prevista no “teste de stress” feito na celebração do contrato, como prevê a regra do Banco de Portugal – por outras palavras, este segundo possível critério fica preenchido se o indexante subir mais de três pontos percentuais em relação à taxa de juro no momento da concessão do crédito.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Porém, se o cliente tiver uma taxa de esforço superior a 50%, a renegociação deve começar imediatamente, acrescenta o Governo, explicando que nesses casos mais graves não é necessária a tal “avaliação aprofundada” e estão dispensadas as restantes condições acessórias que devem ser cumpridas no caso da taxa de esforço de 36%. Sublinhe-se que apenas o crédito à habitação pode vir a ser renegociado, ao abrigo do regime, ainda que os outros créditos que a pessoa tenha (como créditos ao consumo) também sejam levados em consideração para o cálculo da taxa de esforço.

“Incumprimentos não interessam a ninguém, nem aos bancos”

Se existem dificuldades temos de encontrar soluções”, afirma o responsável, explicando que o diploma traz medidas que irão durar até final de 2023. Quantas famílias podem ser envolvidas neste processo? “Não temos números, vai resultar do trabalho que for feito daqui para a frente”, atirou, mostrando-se, contudo, confiante de que é “limitado” o número de famílias que atingem estes patamares.

Há poucos dias, o Jornal de Negócios noticiou que, em média, a taxa de esforço do crédito para a compra de casa não ultrapassa atualmente os 17% – um valor que fica, portanto, muito longe das zonas de risco. Essa é, porém, a média, que pode esconder situações de endividamento mais elevado. O secretário de Estado, João Nuno Mendes, acrescentou mesmo que, independentemente dos patamares definidos, todos os clientes devem fazer uma avaliação da sua situação específica e, se pressentirem dificuldades, devem “dirigir-se aos bancos” para tentar assegurar que “não entram em dificuldades nem em incumprimentos que não interessam a ninguém, desde logo aos bancos“.

O diploma não coloca a iniciativa apenas do lado da banca. Se um cliente entender que está a sofrer uma degradação financeira relevante deve dirigir-se à instituição financeira, e a banca deve verificar a taxa de esforço e poderá conduzir à renegociação do contrato”, afirmou o secretário de Estado do Tesouro.

João Nuno Mendes quis deixar um “grande apelo à pro-atividade e responsabilidade” dos bancos, para que ajam “de forma rápida e enérgica” para ajudar os clientes a superar as dificuldades que possam sentir. Os bancos têm 45 dias para rever os patamares de esforço e espoletar processos negociais quando exista risco de dificuldades causadas pela subida das taxas de juro – que ainda estão em patamares que se podem considerar “em níveis normais” mas que subiram de forma muito rápida, argumentou o responsável.

Clientes não devem ter “medo” de serem “marcados” pelos bancos?

Que reação se pode esperar da parte dos bancos? Na segunda-feira, o presidente do Millennium BCP, Miguel Maya, disse que para encontrar soluções para os clientes “não é preciso o Governo” e falou, por outro lado, de um certo “estigma” que pode passar a recair sobre os clientes que procurem uma reestruturação – dando a entender que podem ficar “marcados” e isso os possa prejudicar num futuro pedido de crédito noutra fase da vida.

O Observador perguntou, na conferência de imprensa, como é que o Governo consegue convencer os clientes a não terem “medo” dessa eventual “marcação”. “Nós temos o sistema PARI em vigor há muitos anos. Fizemos um extraordinário reforço do sistema quando chegou o final das moratórias e estamos a aplicar um regime existente mas alterado em relação às condições de acesso, face à situação que estamos a viver”, começou por explicar João Nuno Mendes, acrescentando que “cada um tem de fazer o que lhe compete, nesta situação ímpar” na vida económica portuguesa e os bancos devem ter “sentido de responsabilidade” e “sensibilidade” necessária.

“Os bancos, o regulador, as pessoas, as entidades de defesa do consumidor estão muitíssimo habituadas ao regime do PARI, que já se aplicou nos últimos anos e foi reforçado no final das moratórias e obrigou os bancos a desenvolver um determinado conjunto de procedimentos”, explicou, acrescentando que isso levou a que os bancos tenham tido de modernizar os seus sistemas de monitorização dos clientes que, hoje, “são um bem em si mesmo”, advogou.

BCP avisa clientes do “estigma” de pedir reestruturações de crédito devido às subidas da Euribor

O Governo garante que não pode haver custos (como imposto do selo) ou aumentos da taxa de juro. Porém, fica prevista a hipótese de, em caso de alargamento dos prazos, o cliente ter cinco anos para voltar atrás “se a sua situação financeira se restabelecer”. Isso é uma opção que fica prevista porque, embora os bancos não possam agravar a taxa de juro neste processo, mesmo mantendo a taxa de juro um alargamento dos prazos implicará que o cliente vai acabar por pagar, no final, mais dinheiro em juros. Daí que esteja previsto que os clientes tenham cinco anos para voltar às condições originais.

E corre-se o risco “moral” de favorecer os clientes que optaram pela taxa variável (que são 93% dos créditos em Portugal) e, eventualmente, desfavorecer os que nos últimos anos pagaram mais pela segurança da taxa fixa? O Governo não tem hesitações: “Nós temos de enfrentar a realidade como ela é – a quase totalidade tem créditos com taxa variável e temos de perceber se temos ou não pessoas com dificuldades no serviço da dívida. E, se existem, temos de encontrar soluções. É esse o objetivo do diploma e estamos muito confortáveis com o diploma“. O documento seguirá agora para promulgação por parte do Presidente da República, antes de entrar em vigor com a publicação em Diário da República.

O Governo, na proposta de Orçamento do Estado, incluiu ainda a possibilidade dos trabalhadores com crédito à habitação poderem pedir para baixar um nível na tabela de retenção na fonte. O Orçamento para 2023 está em discussão na Assembleia da República.

Simulações. Quanto vale uma menor retenção na fonte para ajudar no crédito à habitação?