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“É como uma versão sofisticada do ‘The Apprentice’”. Foi assim que o próprio Donald Trump definiu recentemente o processo de escolha do seu candidato a vice-presidente, em referência ao programa de televisão que o popularizou, onde o magnata do imobiliário escolhia no final o concorrente com mais potencial para ser o seu “aprendiz” nos negócios.
Na corrida, estavam vários nomes: o cubano-americano Marco Rubio e o governador quase desconhecido Doug Burgum estavam confirmados como possibilidades, mas ninguém excluía uma escolha de última hora como o afro-americano Tim Scott ou a ex-adversária interna Nikki Haley. No final, o eleito foi um dos nomes que esteve sempre presente, apesar da pouco experiência política (ocupa o cargo de senador há apenas dois anos): J.D. Vance.
O método “sofisticado” de reality show para escolher o vice de Trump não começou agora. Mas esta escolha só foi possível depois de uma reunião dura, no que já parece um longínquo ano de 2021. J.D. Vance tinha surgido na cena pública depois de publicar o seu livro de memórias Hillbilly Elegy (“Lamento de uma América em Ruínas” na edição portuguesa da D. Quixote), uma espécie de retrato etnográfico da região da Appalachia, onde cresceu — e onde estava grande parte do eleitorado branco de classe operária captado por Trump na eleição de 2016. Mas Vance não era um fã do candidato, como deixou claro em múltiplas declarações públicas.
Quando entrou no escritório de Mar-a-Lago, naquela tarde de inverno, conta o The New York Times, foi recebido pelo ex-Presidente com uma asneira. “Disseste coisas bem feias sobre mim”, atirou de seguida Trump. À altura, Vance já não era apenas um autor saído da pobreza através do serviço militar, que tinha acabado por se licenciar em Yale e trabalhado no mundo da finança e do capital de risco — era agora um potencial candidato às primárias para o lugar de senador do Ohio e necessitava do apoio político de Trump. A sua reação, dizem as fontes presentes na reunião que falaram com o jornal, foi fulcral para ditar a mudança de rumo na relação entre os dois homens: “O senhor Vance decidiu pedir desculpas de imediato. Disse ao senhor Trump que tinha engolido aquilo que descreveu como mentiras dos media e lamentou não ter percebido. De todas as pessoas, disse-lhe, ‘eu devia ter sido o primeiro a entender’.”
Vance sobreviveu àquela prova do concurso e acabou por receber mesmo o apoio público de Trump para a corrida ao Senado — apesar de, em plena campanha, Trump ter dito à multidão num comício “o J.D. anda a lamber-me os pés, quer tanto o meu apoio…” A humilhação pública parece ter sido um preço que valeu a pena pagar: esta segunda-feira, o novamente candidato à presidência confirmou que o homem de apenas 39 anos será o seu candidato à vice-presidência.
“Repreensível”, “nocivo”, como “uma droga”. Os ataques de Vance a Trump no passado
Não foram poucas as “coisas feias” que Vance disse no passado sobre Donald Trump. Em fevereiro de 2016, escreveu no USA Today que as propostas do candidato à presidência “vão do imoral ao absurdo”. Meses depois, numa entrevista, definiu-se como um “Never-Trumper”, o tipo de eleitor republicano que nunca votaria no magnata. “Nunca gostei dele”, disse no talk show do jornalista Charlie Rose.
No Twitter, durante esses anos e nos primeiros tempos da presidência de Trump, escreveu várias críticas. “Trump assusta as pessoas com quem me preocupo. Os imigrantes, os muçulmanos, etc. Por isto, considero-o repreensível. Deus espera algo melhor de nós”, postou em outubro de 2016. “Daqui a quatro anos, espero que as pessoas recordem que nós, os que mais empatizámos com os eleitores de Trump, fomos aqueles que o combatemos mais agressivamente”, é outra das mensagens, entretanto apagadas — mas encontradas pela CNN.
Os tweets apagam-se, mas as entrevistas ficam. “Não acho que ele queira saber das pessoas. Acho que ele só reconheceu que havia uma falha no discurso e a falha é que as pessoas destas regiões do país se sentiam ignoradas, descartadas e muito frustradas”, disse em agosto de 2016 numa entrevista a uma rádio local do Kentucky. “É um problema que Trump seja o recetáculo dessa frustração.”
À CNN, dois meses depois, afirmou que Trump “antagoniza ativamente” os americanos negros e acusou-se de “tornar pior” o ressentimento racial no país ao incluir as ideias de expulsar “imigrantes violadores e todos os muçulmanos”.
E não foram só declarações impulsivas em entrevistas: nesse verão, J.D. Vance publicou um artigo na revista The Atlantic onde comparou o candidato a uma droga que os eleitores da Appalachia — onde há elevados índices de toxicodependência — procuraram como uma solução fácil para fugir aos seus problemas. “Entra na mente, não pelos pulmões ou veias, mas pelos olhos e ouvidos e o seu nome é Donald Trump”, escreveu. A ressaca, garantia, acabaria por chegar: “Quando assim for, espero que os americanos olhem para aqueles que têm mais poder para resolver muitos dos seus problemas: [que olhem] uns para os outros. E depois, talvez, a nação troque a ‘moca’ rápida do ‘Make America Great Again’ [MAGA] por um medicamento a sério.”
Um mês depois, em entrevista ao famoso programa “Fresh Air” da NPR — classificada por muitos à direita como a epítome do liberalismo de esquerda —, J.D. Vance admitia que não iria votar em Trump e provavelmente escolheria um terceiro candidato (algo que hoje em dia diz ter sido a sua escolha, o independente Evan McMullin). Mas não descartava a possibilidade de votar na candidata do Partido Democrata: “Se sentir que Trump tem hipóteses reais de ganhar, talvez venha a tapar o nariz e vote em Hillary Clinton”, admitiu, por considerar Trump “nocivo” e alguém que levaria “a classe trabalhadora branca a um lugar muito negro”.
Em privado, J.D.Vance ia ainda mais longe. Numa mensagem para um antigo colega de faculdade, Josh McLaurin, disse estar na dúvida sobre se Trump “é um idiota cínico como Nixon, o que não seria tão mau (e até poderia revelar-se útil) ou se é o Hitler da América”.
Desde que decidiu entrar na política, porém, Vance começou a trajetória de correção. “Sou muito aberto em relação ao facto de ter feito essas críticas”, começou por admitir numa entrevista à Fox News em 2021. “Mas arrependo-me delas e arrependo-me de ter estado errado sobre o tipo.” Recentemente, o discurso mantinha-se: “Estava enganado sobre Donald Trump. Não achava que ele ia ser o grande Presidente, mas foi um grande Presidente e é por isso que estou a trabalhar tanto para que ele tenha um segundo mandato.”
Uma escolha que não alarga a base eleitoral da candidatura — mas blinda a Blue Wall e não ameaça Trump
A escolha de J.D.Vance agora para vice-presidente surpreende por isso, mas não só: tradicionalmente, na política norte-americana, o candidato a vice serve para tentar alargar a base eleitoral do candidato a votantes a que normalmente não chegaria. Tendo isso em conta, nomes como Marco Rubio (forte junto do eleitorado hispânico), Tim Scott (que colheria pontos com os afro-americanos), ou Nikki Haley (que agrada aos eleitores mais ao centro do partido) seriam, à partida, escolhas mais óbvias.
Mas há várias razões que podem ajudar a explicar a escolha de Trump. No complicado mapa eleitoral dos swing states, a matemática passa sempre pelo antigo polo industrial da Rust Belt, a que pertence a Appalachia, como explica a CNN: “A própria equipa de Biden reconheceu que o melhor caminho para um segundo mandato é [conquistando] alguns dos estados da Blue Wall [muralha azul, por serem zonas tradicionalmente democratas no passado]. A maioria das avaliações sugere que Biden tem de pelo menos ganhar alguns desses estados como a Pensilvânia, o Michigan e o Wisconsin e ainda obter um voto do Colégio Eleitoral em Omaha, no Nebraska, para conseguir os 270 votos [do Colégio] que dão a presidência.” Por outras palavras: com J.D. Vance, que aí joga em casa, Biden pode ter esse caminho barrado e ter de procurar alternativas ainda mais complicadas noutros swing states.
Há ainda as características pessoais do candidato. À beira de completar 40 anos, é um jovem numa corrida onde a idade e capacidades de Biden têm sido uma questão incontornável. E é um político inteligente que tem dado nas vistas nas suas aparições televisivas: “Acho que J.D. Vance seria a maior ameaça a Kamala Harris [em debate]”, admitia à CNN no mês passado a antiga diretora de comunicação da atual vice-presidente, Ashley Etienne.
A tudo isto junta-se, é claro, a opinião do próprio Donald Trump. Em 2016, decidiu jogar pelo seguro e escolher um vice-presidente que alargava a sua base eleitoral: o evangélico Mike Pence. Quando este recusou não validar o resultado das eleições de 2020 (de vitória de Biden), que resultou na invasão ao Capitólio, Trump sentiu-se traído. Desta vez, nota o colunista do Times Bret Stephens, “Trump escolheu o tipo que vai sair-se bem nos seus comícios e que nunca irá contra o chefe. Por que é que estou surpreendido?”
Vance, um símbolo da “Nova Direita” que combate as elites e vê em Orbán um exemplo
Já entendemos como Trump e Vance fizeram as pazes e também já entendemos os trunfos eleitorais que o antigo autor pode representar para a candidatura. Mas o que defende exatamente J.D. Vance? Em que acredita o homem que retratou os problemas do meio e classe onde cresceu — e de onde saiu, primeiro através do Exército, depois para uma prestigiada Universidade e, por fim, para o mundo da finança?
Em 2018, quando fazia a sua travessia no deserto entre a publicação do Hillbilly Elegy e o momento em que fez as pazes com Donald Trump, Vance já introduzia alguma nuance na sua crítica a Trump, focando-se antes no que o incomodava dentro de todo o Partido Republicano: “Quando olho para a reforma fiscal, para a reforma da saúde, vejo Trump como a parte menos preocupante do problema que há no Partido Republicano — que é o facto de ainda estarmos a viver nos anos 80. Estamos constantemente a tentar ressuscitar políticas dos anos 80!”, lamentou-se no almoço com o Financial Times, exemplificando-as como “a redução de impostos aos mais ricos” e “a redução da rede de segurança” dos mais pobres. Atualmente, Vance explica que não adora a ideia de reduzir os impostos aos que mais recebem — admitindo ao Politico que discordou dessa parte da reforma fiscal de Trump de 2017 —, mas tende a considerá-la uma política mais marginal e foca-se menos nela.
Três anos mais tarde, foi ao pequeno-almoço que partilhou com a revista Time mais um passo na sua evolução política: Trump, disse, “é o líder deste movimento”. “Se me preocupo de facto com estas pessoas e com os temas que digo preocupar-me, tenho de engolir e apoiá-lo”, admitiu.
Pelo caminho, já depois da sua candidatura ao Senado (e subsequente eleição), a colagem a Trump tornou-se total. Talvez a mudança se explique por algo que Vance disse há cerca de um mês, numa conferência, segundo a Atlantic. Quando tinha 25 anos, explicou, a energia na política estava toda à esquerda. “Neste momento, está toda à direita”.
Os mais próximos diziam recentemente ao Washington Post que a ideologia política central de J.D. Vance não mudou, mas radicalizou-se nos últimos anos. “Trump continuou a ser Trump, mas a Esquerda passou-se”, notou ao jornal o blogger conservador Rod Dreher. As ideias centrais defendidas por Vance neste momento encaixam-se naquilo que muitos definem nos Estados Unidos como “A Nova Direita”. Como resumia o mesmo artigo, uma forma de conservadorismo nacionalista “profundamente católica, definitivamente anti-woke, que suspeita do grande capital, é nacionalista nas questões comerciais e de controlo das fronteiras e que flirta com o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán”. Uma ideia que combina a crítica à atuação das elites ao longo dos últimos anos — o capitalismo de mercado livre da direita com as políticas progressistas nos costumes da esquerda. É por isso que, como senador, J.D. Vance tanto está a fazer propostas de lei conjuntas com a senadora de esquerda Elizabeth Warren, como está a defender que a pornografia seja banida.
Ainda em 2021, o mesmo Rod Dreher dizia que não conhecia a opinião de J.D. Vance sobre Orbán, mas via nele paralelos — “um patriota, anti-woke, populista, política e administrativamente competente” —, num artigo na revista The American Conservative (onde chega a colocar a hipótese de que salazarismo possa servir de exemplo para os EUA). Três anos depois, o próprio Vance defendia abertamente Orbán em público, num discurso contra “o domínio das universidades pelas elites” que diz ter sido bem combatido pelo primeiro-ministro húngaro. Esta terça-feira, depois de ser conhecida a notícia da escolha de Vance para candidato a vice-presidente, um dos conselheiros políticos do líder da Hungria, Balász Orbán, aproveitou para publicar uma foto com o norte-americano e elogiar a ideia de uma “administração Trump-Vance”.
A Trump-Vance administration sounds just right???? Congratulations to @JDVance1 on being appointed by @realDonaldTrump as his running mate! pic.twitter.com/Y4gJfsmf2c
— Balázs Orbán (@BalazsOrban_HU) July 15, 2024
Esse mesmo discurso — intitulado “As Universidades São o Inimigo” — foi feito na edição de 2022 da conferência conservadora NatCon, que reúne algumas das maiores figuras da chamada “Nova Direita” e que, nesse ano, contava com a presença do mediático empresário de tecnologia Peter Thiel, amigo próximo de Vance. O jornalista James Pogue esteve presente, para escrever para a Vanity Fair um artigo sobre o movimento, que descreveu como da seguinte forma: “Há um conjunto significativo de autores de Substack, podcasters e utilizadores anónimos do Twitter (…) que vão desde ‘bros’ que enriqueceram com a crypto até empresários da tecnologia, passando por membros de movimentos agrários e gente que pertenceu em tempos à classe intelectual americana e se afastou”. Todos, dizia, partilham de uma mesma visão do mundo: “A de que a ideologia liberal individualista, com governos crescentemente mais burocratas e a big tech, está a tornar o mundo tirânico, caótico e esvaziado de sistemas de valores e morais que dão à vida humana a sua riqueza e significado”.
Para o mesmo artigo, Pogue chegou a falar diretamente com J.D. Vance, em on e em off, durante o evento. Notou como, apesar da crítica às elites que fez no seu discurso, o político é, ele próprio, “um intelectual, mesmo que hoje em dia já não o represente na televisão”. “Só que acha que as nossas universidades estão cheias de gente que têm interesses estruturais e financeiros para pintar a cultura americana como racista e má”, escrevia o jornalista. “E ele está pronto para ir a níveis extraordinários para os combater”.
O working-class hero que adota o tom necessário para agradar à galáxia Trump
Desde então, Vance tem recuado ou introduzido nuances em várias das posições políticas que defendeu em público, de forma a aproximarem-se das de Trump em determinados aspetos. O aborto é o tema com mais destaque: convertido católico (muito por influência de Thiel, segundo o próprio), em 2021 o político dizia que até as vítimas de violação e de incesto deviam ser impedidas de abortar. Dois dias depois de o Supremo Tribunal ter rechaçado o caso Roe v. Wade (que legalizava a interrupção da gravidez em todo o país), Vance escreveu o seguinte no Twitter: “Se a tua visão do mundo te diz que é mau para as mulheres tornarem-se mães, mas que é libertador para elas trabalhar 90 horas por semana num cubículo no New York Times ou no Goldman Sachs, foste enganado.”
Desde então, porém, a sua posição tem-se vindo mais a aproximar da do candidato do Partido Republicano (que, nesta matéria, defende que a legislação sobre o aborto deve ser competência de cada Estado). “É razoável deixar os eleitores de cada estado tomarem essas decisões”, disse, admitindo também que é preciso haver “exceções razoáveis”. Este ano, chegou mesmo a defender o acesso à pílula do dia seguinte mifepristone, normalmente vista pelo campo pro-life nos EUA como uma forma de aborto — mas que Trump é a favor.
E este não é o único tema onde mudou de ideias ao longo dos últimos oito anos. Em 2020, falava num “problema com o clima”, nota o The Conversation; agora diz-se “cético” de que haja influência humana nas alterações climáticas. Em 2016, criticava a política de Trump para a fronteira e classificava como simplista a ideia de que “com menos imigração, teremos melhores empregos”; na corrida para o Senado, em 2022, gravou um anúncio onde, virado para a câmara, perguntava diretamente ao eleitor: “Você é racista? Odeia mexicanos?”. “Não, não é”, respondia, culpando “os media” por associarem esse rótulo à ideia de construir o muro.
As tiradas polémicas foram-se tornando mais comuns com o avançar dos anos. Culpou alguns males da América nos membros do Partido Democrata como Alexandra Ocasio-Cortez e Pete Buttigieg que representam “a esquerda sem filhos”, disse que o país era gerido por “um bando de mulheres com gatos e sem filhos que se sentem miseráveis com as suas vidas e com as escolhas que fizeram” e afirmou que a revolução sexual dos anos 60 e 70 fez as pessoas acharem que, para resolverem relações “infelizes, algumas das quais até talvez violentas”, a solução era “mudar de marido como quem muda de roupa interior”, levando ao surgimento de crianças “disfuncionais”.
Mais recentemente, acusou o atual Presidente de estar a permitir a entrada de drogas pela fronteira com o México como uma espécie de estratégia deliberada para “matar uns quantos eleitores do MAGA”. “Parece intencional, parece que Joe Biden quer castigar aqueles que não votaram nele”, afirmou. Nos últimos dias, após a tentativa de assassinato de Trump, foi dos primeiros a sugerir que Biden contribuiu para incentivar o ato violento, ao retratar o republicano como “um fascista que é necessário travar a qualquer custo”.
Muitas destas tiradas, contudo, são feitas em debates televisivos ou em posts na rede social X. Em conferências, em entrevistas, até em discursos, Vance é naturalmente mais calmo e menos belicoso, nota Ian Ward, jornalista do Politico que tem acompanhado de perto o senador — e que publicou um dos perfis mais aprofundados sobre ele, no passado mês de março.
O próprio explicou ao jornalista a estratégia das declarações mais provocadoras: “Quando falo com os intelectuais da Nova Direita ou os tipos dos think-tanks, digo-lhes sempre: ‘Oiçam, vocês preocupam-se muito com as ideias e isso é admirável, mas a maior parte das pessoas não é ideológica — elas precisam de reagir como têm de reagir, porque estão ocupadas com outras coisas.”
Há um ponto, contudo, onde J.D. Vance sempre esteve do mesmo lado do espectro ideológico que Donald Trump: na política externa. Ainda em 2016, publicava um artigo de opinião no New York Times onde citava a sua experiência como soldado no Iraque e o impacto das guerras dos neocons do tempo do Presidente George W. Bush no eleitorado da Appalachia. Dizia que, apesar de considerar Trump “inapto para o cargo mais alto da nação”, entendia o que os eleitores viam nas posições de política externa que o candidato defendia: “Estão furiosos com os políticos que enviam os seus filhos para combater e sangrar e morrer no Iraque” e Trump diz-lhes que “a guerra foi um erro terrível imposto pelo país por um Presidente incompetente”, numa atitude que “rompe” com a tradição do Partido Republicano nesta matéria.
Não admira, por isso, que J.D. Vance seja agora uma voz dissonante dentro do partido no que diz respeito ao apoio à Ucrânia, indo ainda mais longe do que o próprio Trump. Não só não quer continuar o apoio financeiro e militar ao país, como defende mesmo alguns dos desejos de Moscovo: “Congelar as linhas de território onde estão agora” e “garantir a neutralidade de Kiev”. O seu ponto, diz, é que a política externa norte-americana não deve servir para proteger os europeus, mas sim preocupar-se com os seus. “Putin não é um grande ser humano, mas isso não muda os imperativos estratégicos dos Estados Unidos”, defende. “Tenho colegas republicanos muito mais investidos emocionalmente no que se está a passar a seis mil milhas daqui do que no que se passa no seu próprio país”, já afirmou.
Isso não impede, contudo, que tenha uma posição diferente no que toca a Israel — “A ideia de que alguma vez haverá uma política externa americana que não se importa com aquela parte do mundo é absurda” — e à China. Muitas das suas posições nesta matéria estão alinhadas com Trump em termos económicos, como a imposição de tarifas sobre importações chinesas, e até com algumas das políticas de Biden nesta matéria. Já no que toca à defesa de Taiwan, defende uma posição de muito maior auxílio do que em relação à Ucrânia.
Todas ideias sobre a China muito semelhantes às defendidas por um dos seus maiores apoiantes: Steve Bannon, o ideólogo criador do Breitbart que em tempos foi próximo de Trump e hoje em dia está mais afastado (atualmente a cumprir pena por crime de desobediência relacionado com a investigação ao ataque ao Capitólio).
É um dos grandes defensores de Vance, a par de Peter Thiel, o empresário com quem trabalhou no passado e de quem é muito próximo — tanto que tem recorrido a ele para conseguir recolher donativos junto de empresários da área tecnológica a favor de Donald Trump. Outro é Tucker Carlson, o antigo jornalista da Fox News agora com uma plataforma independente, que terá até telefonado recentemente ao candidato para dizer que Vance era o único dos que estavam a ser equacionados que não é “um neocon”. Qualquer um dos outros, disse, dariam aos serviços secretos o incentivo para tentarem assassinar Trump a obterem assim um Presidente mais favorável, conta o New York Times.
Foi também a política externa que fez com que Vance ganhasse outro aliado de peso dentro do universo Trump: Donald Trump Jr., o filho mais velho do candidato, diz que reparou pela primeira vez no à altura candidato a senador quando este se opôs à criação de uma no-fly zone na Ucrânia, durante um debate nas primárias do Ohio.
Desde então, tornaram-se próximos, segundo a imprensa norte-americana. O próprio Trump Jr. admitiu à CNN esta terça-feira que defendeu a escolha de Vance num jantar recente com o pai: “Ouve, vejo-o na televisão. Vi-o defender o caso contra os democratas. Acho que ninguém é mais eloquente do que ele nisso e acho que a história dele, o seu passado, ajuda-nos muito em vários lugares de que precisas.”
A transformação do Grand Old Party em veículo do MAGA consolida-se. E o “Aprendiz” já sonha em ultrapassar o mestre
A transformação de J.D. Vance de crítico feroz de Trump a ideólogo profundo do MAGA deixa muitos baralhados. Há quem pense que o agora candidato à vice-presidência viu em em Trump uma forma de “avançar” a sua agenda: “Ele formulou uma série de argumentos na tentativa de criar alguma coerência intelectual ao conservadorismo populista [de Trump]”, defendeu ao Wall Street Journal o académico conservador Yuval Levin. Outros, como a colunista mais à esquerda Michelle Goldberg, veem nele “um tipo ambicioso que, ao ver Trump no poder, percebeu que valia a pena saltar para o comboio do MAGA”.
Certo é que, nessa transformação — real ou oportunista —, J.D. Vance dá por si a defender Trump na questão da invasão ao Capitólio, enredando-se em explicações sobre como não defende a invasão em si, mas recusando a ideia de que o candidato derrotado estivesse a tentar levar a cabo algum tipo de insurreição — e dizendo mesmo que, no lugar de Mike Pence, teria acedido ao pedido de Trump e invalidado o resultado eleitoral.
O que se passou, diz, foi um conflito constitucional, algo que considera legítimo. As ideias anti-elite de Vance são, muitas vezes, abertamente radicais, no sentido de defender uma forma de revolução do sistema. “Se pudesse dar um conselho a Trump, dir-lhe-ia: despeça cada burocrata intermédio, cada funcionário público do aparelho de Estado e substitua-o por um dos nossos”, afirmou ao Politico. “E quando os tribunais o travarem, apareça perante o país e diga, citando Andrew Jackson [ex-Presidente], ‘o presidente do tribunal tomou a sua decisão, agora deixem-no aplicá-la.’”
A ideia é amplamente repetida pelo próprio: os Estados Unidos, diz, estão “num período republicano final”, como na decadência da República em Roma, e será necessário um César para repor a ordem, afirmou num podcast em 2022. “Se vamos combater isto, vamos ter de ser bastante selvagens e atirar-nos para direções com que muitos conservadores de hoje em dia se sentem desconfortáveis”.
O combate contra “a elite”, “o sistema”, o “Deep State”, sempre esteve presente no MAGA de Donald Trump — mas J.D. Vance parece disposto a levá-lo um passo mais à frente. O corte com o Partido Republicano que existe atualmente é claro: a escolha para vice-presidente não foi uma das velhas figuras ligadas ao coração do partido, das quais Trump se rodeou em 2016, durante a primeira candidatura. Mitch McConnell, o antigo líder do Senado que representou durante anos o establishment do Partido Republicano — e que em 2016 considerava Hillbilly Elegy o melhor livro do ano — foi vaiado na convenção do partido, ironicamente no mesmo dia em que J.D. Vance foi recebido como uma estrela.
A transformação do Grand Old Party começou com Donald Trump, que fez todo o Partido Republicano ajoelhar-se perante si. A escolha de J.D. Vance para vice é a confirmação de que o trumpismo pretende seguir pela via mais radical. “Embora possa ser prematuro argumentar que a escolha de Vance é o prego final no caixão do republicanismo de Reagan, não há dúvidas de que é um prego muito forte”, resumia na revista conservadora National Review o editor Philip Klein.
Perante essa transformação em curso, muitos já arriscam antecipar que, tendo em conta a sua jovem idade, J.D. Vance pode mesmo vir a ser o herdeiro do trumpismo que Donald Trump nunca procurou. “Trump quer garantir que o MAGA vive para lá dele”, dizia à ABC um dos financiadores do candidato, Dan Eberhart, à ABC. O estratega republicano Chip Saltsman completava a ideia em declarações ao Times: “Trump vai tentar segurar o testemunho do MAGA o maior tempo que conseguir. Mas Vance tem uma pista mais próxima, uma vantagem, para vir a pegar no testemunho do MAGA dentro de quatro anos”.
Dentro da “Nova Direita”, muitos já sonham com a possibilidade de um J.D. Vance Presidente depois de Trump. É o caso de Steve Bannon, que não só disse a Ian Ward ter a certeza que Vance um dia “se candidatará à presidência”, como o comparou a um São Paulo de Trump Cristo: “Jesus falava para pequenos auditórios até São Paulo ter aparecido”, disse. “Foi preciso o zelo de São Paulo para fazer de Jesus cabeça-de-cartaz.”
O próprio não enjeitou a possibilidade numa das conversas com o jornalista do Politico. “Trump vai, no máximo, estar mais quatro anos na Casa Branca. Há uma grande dúvida sobre o que virá a seguir a ele”, decretou.
J.D. Vance parece ter ficado à frente neste “The Apprentice” da vice-presidência, mas, se há coisa que é conhecida sobre Trump, é que não gosta de quem lhe faça sombra. O aprendiz pode estar a tentar ultrapassar o mestre, mas, como avisa a National Review, o feitiço pode virar-se contra si. “O cemitério republicano está cheio de túmulos de figuras que acreditavam que iam avançar as suas carreiras ao associarem-se a Trump e que acabaram afastados por razões imprevisíveis.”