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Quem são os "colectivos" que defendem o regime de Maduro com armas?

Na Venezuela, os "colectivos" começaram como organizações culturais e sociais ligadas à esquerda, mas nos últimos anos muitos deles tornaram-se exércitos paramilitares em defesa de Nicolas Maduro.

Parecia uma faca, mas o objeto que acabava de entrar, afiado, nas costas de Mauro Zambrano era um picador de gelo. Na manhã de 3 de agosto de 2015, este delegado sindical no Hospital Universitário de Caracas, onde é porteiro, preparava-se para ter uma reunião com a diretora do hospital, Antonieta Caporale. Na véspera, tinha liderado um plenário de trabalhadores, que reclamavam a reabertura de serviços do hospital, fechados por falta de meios, e também o pagamento de salários em atraso. Nesse dia, a diretora convocara-o para falarem. Podia até ser um bom sinal.

Essa ideia desfez-se rapidamente quando, a caminho do escritório da diretora do hospital, juntamente com quatro colegas, foi cercado por cinco homens vestidos à civil, que rapidamente começaram a agredi-los. No meio da escaramuça, um deles surpreendeu Mauro pelas costas e espetou-lhe um picador de gelo na costas. “Não chegou a perfurar o pulmão, mas pouco faltou”, diz ao Observador, numa entrevista por telefone.

Por mais agressivo e repentino que aquele encontro tivesse sido, a verdade é que Mauro não ficou surpreendido. Até porque, embora não os conhecesse pessoalmente, sabia perfeitamente quem eram e de onde vinham os seus agressores: dos colectivos.

No hospital onde o sindicalista Mauro Zambrano trabalha, a direção dá ordens diretas aos "colectivos" para impedirem qualquer manifestação ou plenário dos trabalhadores. Os "colectivos", que até têm um escritório dentro do hospital, chegam a disparar contra os funcionários em protesto.

Este é o nome dado aos grupos de civis que, munidos com armas, atuam de forma autónoma nas ruas, bairros e instituições de toda a Venezuela, alegando a defesa da revolução bolivariana, iniciada por Hugo Chávez e continuada hoje pelo Presidente Nicolás Maduro. “Na Venezuela, aquilo que nós chamamos de colectivos é o que chamaríamos de grupos paramilitares urbanos em qualquer outra parte do mundo”, explica ao Observador o advogado e criminologista Fermín Mármol. “Os colectivos estão aqui para cumprir uma função que reclamam para eles mesmos: serem guardiões da revolução bolivariana e o braço armado dela.”

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A ligação destes colectivos armados ao Governo de Nicolás Maduro é “evidente” para Lexys Rendón, coordenadora da ONG Laboratorio de Paz. “É conhecido que, dependendo da figura do poder, há certos coletivos que respondem a certas figuras”, diz ao Observador por telefone. Fermín Mármol aponta no mesmo sentido: “Há sinais fortes de que autarcas, governadores estaduais e ministros aplaudiram, fomentaram e protegeram no seu discurso estes grupos”.

Em 2014, quando se levantou uma onda de protestos contra o governo de Nicolás Maduro, a ministra dos Serviços Penitenciários, Maria Iris Varela, descreveu os colectivos como um “pilar fundamental” para o país. “Os guarimbeiros [termo depreciativo para referir os manifestantes anti-Maduro] têm cagufa dos colectivos organizados! Os colectivos são um pilar fundamental da defesa da Pátria!”, escreveu no Twitter.

O apoio parte mesmo de Nicolás Maduro. Também em 2014, perante as manifestações de “fascistas violentos” em todo o país, apelou aos grupos chavistas, entre estes as comunas e os colectivos: “As velinhas que se acendem são velinhas que apagamos”. Desde então, a situação só veio a agudizar-se. Na onda de protestos iniciada nos últimos dois meses na Venezuela, já morreram quase 60 pessoas.

No caso do hospital onde Mauro trabalha, o apoio aos colectivos parte diretamente da direção clínica. Segundo Mauro, é esta que permite que civis, geralmente vestidos com t-shirts vermelhas onde se podem ler slogans chavistas ou imagens do próprio Hugo Chávez, percorram os corredores do hospital armados. Neste caso, fazem parte do Colectivo Frente Chavista, que tem até um escritório dentro do hospital.

“As velinhas que se acendem são velinhas que apagamos”, disse Nicolás Maduro sobre as manifestações da oposição, numa mensagem dirigida aos colectivos (FEDERICO PARRA/AFP/Getty Images)

(FEDERICO PARRA/AFP/Getty Images)

“A impunidade é total, eles fazem o que querem”, assegura Mauro. “Sempre que há manifestações, plenários, seja o que for, em que os trabalhadores protestam pelos seus direitos e pelos direitos dos pacientes, esses tipos dos colectivos aparecem e, no mínimo ameaçam-nos”, diz. Muitas vezes, os membros do Colectivo Frente Chavista pedem reforços, que chegam prontamente ao hospital. Os confrontos, que se passam no recinto do hospital, chegam a ter tiros. Em agosto do ano passado, outro sindicalista, Eladio Mata, foi baleado na virilha durante um protesto.

“É a própria direção que lhes dá autoridade e autorização para fazerem tudo aquilo. No papel, o que eles fazem é a segurança do hospital. Na prática, estão ali para controlar os trabalhadores”, diz Mauro. Na altura em que foi esfaqueado com o picador de gelo, a diretora do hospital era Antonieta Caporale. Mais tarde, entre janeiro e maio de 2017, viria a ser ministra da Saúde — ou, mais concretamente, líder do Ministério do Poder Popular para a Saúde da Venezuela.

Um terço do país sob os colectivos

Nem sempre os colectivos foram o que são hoje em dia. Também estes, à semelhança de quase tudo o que faz parte da vida dos venezuelanos, sofreram alterações em dois momentos-chave: o início do chavismo e o início da crise marcada pela queda do preço do petróleo em 2014. Ainda antes da eleição de Hugo Chávez, em 1999, estes colectivos já existiam nalguns dos bairros mais pobres do país, como explica Lexys Rendón.

“Antes havia muitos colectivos culturais, ideológicos, muitos tinham rádios ou jornais. Dentro do conceito dos colectivos cabem muitas coisas”, diz. Além disso, explica, muitos atuavam como “polícia comunitária” dentro dos bairros, agindo contra o tráfico de droga e insegurança a troco de pagamentos extorquidos às populações. O caráter ideológico dos colectivos subiu em 2002, quando o governo de Hugo Chávez foi alvo de uma tentativa de golpe de Estado.

“Nessa altura, eles armaram-se”, recorda a coordenadora do Laboratorio de Paz. “Era evidente que o governo necessitava de mais controlo dos bairros depois do golpe. Então o Governo deu-lhes motas, tipos específicos de rádio para comunicarem, telemóveis… Isso é certo”, diz. “E o que as investigações nos dizem é que ainda lhes deram vários tipos de armas.”

Em 2009, o governo de Hugo Chávez criou o Ministério do Poder Popular para as Comunas e Movimentos Sociais, onde era dado apoio direto aos colectivos, sob a forma de financiamento. Com o crescimento da crise na Venezuela, onde escasseiam produtos alimentares e medicamentos, ao mesmo tempo que o regime de Nicolás Maduro alarga o poder do executivo e passa por cima dos restantes, os colectivos tornaram-se num elemento crucial do aparelho repressivo oficialista.

“Eles estão presentes nas áreas urbanas, das classes mais populares”, explica Fermín Mármol. “É uma presença que atemoriza e paralisa, porque é um terror ver civis armados que não respondem pelas suas ações. Toda a gente sabe quem eles são, mas não há ninguém que atue contra eles.”

Segundo o criminologista, o caráter ideológico praticamente desapareceu destes grupos. “Há ainda uma minoria que abraça os ideais marxistas, leninistas, guevaristas, zamoristas e chavistas. Mas é uma minoria, sobretudo de uma esquerda que tem um certo lugar cronológico”, diz. “Mas nos quadros mais novos há outras motivações: há uma fonte de rendimentos que não teriam de outra maneira. E, além disso, o reconhecimento social que conquistam através do medo é imenso.”

Nalguns bairros, como o 23 de Enero, em Caracas, o controlo dos colectivos é quase total, como se substituíssem o Estado. “Têm domínio cultural, impõem horários de saída e entrada das pessoas, fazem barricadas, extorquem dinheiro aos moradores”, enumera Fermín Mármol. “Fingindo que são o Robin dos Bosques, são os verdadeiros exploradores daquela gente.” Hoje, segundo o criminologista, os colectivos estão presentes em “cerca de 30% das paróquias” da Venezuela.

“Mamã, os colectivos estão a disparar!”

Nos último dois meses, os colectivos têm vindo a ganhar ainda mais atenção devido à sua atuação nas manifestações contra o regime de Nicolás Maduro e a favor da convocatória de eleições antecipadas. Lado a lado com a Polícia Nacional Bolivariana (PNB) e a Guarda Nacional Bolivariana (GNB), os colectivos participam nas manifestações contra os opositores, que procuram dispersar. Os colectivos chegam muitas vezes ao local montados em motas, munidos de armas e com a cara tapada.

“Vemos que há atuação dos colectivos paramilitares em diferentes regiões do país e que eles estão a trabalhar coordenados com a PNB e com a GNB”, diz Lexys Rendón. “Temos visto que eles se revezam no terreno. Primeiro pode entrar a guarda, depois a polícia, a seguir mandam bombas lacrimogéneas e, depois entram os colectivos a disparar armas para o ar ou contra as pessoas.” Segundo a coordenadora do Laboratorio de Paz, os membros dos colectivos também têm feito detenções de cidadãos, que atualmente estão a ser julgados em tribunais militares.

A violência extrema das manifestações já resultou em pelo menos 58 mortos, segundo números de 25 de maio. Um dos primeiros homicídios aconteceu a 19 de abril, no dia em que ficou marcado o protesto conhecido como “A Mãe de Todas as Manifestações”, convocada pela oposição depois de o Supremo Tribunal ter dissolvido a Assembleia Nacional. Nesse dia, Paola Ramírez morreu depois de ter sido vítima de fogo cruzado entre um colectivo e outro grupo rival. Poucos momentos antes de ser atingida, a jovem de 23 anos ligou à mãe em pânico e ter-lhe-á dito: “Mamã, os colectivos estão disparar!”.

[Veja aqui um vídeo do que aconteceu na manifestação]

No mesmo dia, Carlos José Moreno, um rapaz de 17 anos, morreu com um tiro na cabeça. As suspeitas apontam para que tenha sido um homicídio levado a cabo por colectivos — isto apesar de, segundo o seu irmão veio a dizer mais tarde, Carlos José Moreno nem sequer ter ido manifestar-se naquele dia.

Para Lexys Rendón, há uma relação causa-efeito entre uma decisão do governo de Nicolás Maduro e a escalada de mortos nas manifestações e nas suas imediações: a fase verde do Plano Zamora. A 17 de abril — dois dias antes d’”A Mãe de Todas as Manifestações” — o Presidente da Venezuela anunciou a ativação do plano previsto para impedir um golpe de Estado vindo do exterior. Por “exterior” leia-se “EUA”. “Enfrentamos uma investida internacional encabeçada pelo Departamento de Estado do Governo dos Estados Unidos”, disse Nicolás Maduro. “Não exagero quando digo isto: querem que voltemos à escravatura dos povos subordinados aos mandatos beligerantes e imorais do império dos EUA.” No seu discurso, disse ainda que Julio Borges, presidente da Assembleia Nacional dissolvida e personalidade da oposição, agia em conluio com os norte-americanos.

“Enfrentamos uma investida internacional encabeçada pelo Departamento de Estado do Governo dos Estados Unidos. Não exagero quando digo isto: querem que voltemos à escravatura dos povos subordinados ao mandatos beligerantes e imorais do império dos EUA.”
Nicolás Maduro

Na prática, o que a fase verde do Plano Zamora permite é uma aliança “cívico-militar” — o que, como o termo sugere, implica que os cidadãos se podem aliar ao exército para tentar impedir a atuação de um inimigo externo e restituir a ordem. Tudo isto seria aplicado depois de, nos meses anteriores, terem sido feitos exercícios militares entre o exército e civis. Nestes podem entrar, naturalmente, os colectivos.

“Ao aplicar o Plano Zamora, o próprio governo ficou implicado em qualquer crime e atrocidade que aconteça daqui para a frente”, diz Lexys Rendón. “Quando aceitam que civis estejam armados em ações de repressão e de controlo, eles passam a ser responsáveis. O Estado passa a estar diretamente ligado a qualquer crime.”

Por cima deste anúncio, surgiu ainda outro, igualmente feito por Nicolás Maduro: a compra de 500 mil espingardas para serem entregues a um número igual de “milicianos e milicianas” civis da Força Armada Nacional Bolivariana.

“É penoso que isto aconteça ao mesmo tempo que [desde 2 de maio] é aprovada uma proibição do porte de armas por parte dos civis durante seis meses”, diz o criminologista Fermín Mármol. “O Governo que decreta isso é o mesmo que deixa que os colectivos ajam com um impunidade total.”

A “lufada de ar fresco” que “muito dificilmente dá nalguma coisa”

Ainda assim, no meio da “impunidade total” que Fermín Mármol aponta, o criminologista e todos aqueles que criticam a atuação violenta do regime e das autoridades tiveram uma surpresa na semana passada. Na quarta-feira, a fiscal-geral da Venezuela, Luísa Ortega, a figura mais alta do Ministério Público, teceu várias críticas ao Governo de Nicolás Maduro, apesar de ter sido eleita para o cargo com os votos dos deputados oficialistas.

A conferência de imprensa teve de ser inicialmente adiada — estava marcada para as 11h00, mas houve um apagão em várias zonas de Caracas. Quando finalmente aconteceu, já de tarde, disse que a situação era “dantesca” e desmentiu a ideia repetida pelo Governo de Nicolás Maduro, que tem atirado a culpa das mortes das vítimas mortais e também dos feridos para os manifestantes da oposição. Referindo que à altura havia 55 vítimas mortais (entre os quais 52 civis e três polícias ou militares) e 771 civis e 229 agentes feridos, Luísa Ortega informou: “Mais de metade dos feridos foram resultado da ação dos corpos de segurança. É preocupante a maneira como a violência se exacerbou”.

“Repudiamos a violência, venha ela de onde vier”, acrescentou. Depois, tocou no tema dos colectivos, mesmo sem usar a expressão, referindo que “se há manifestações pacíficas não pode haver grupos de civis armados a ameaçar”. Ainda sobre esse assunto, disse que há “mais de 16 investigações abertas a grupos armados à margem da lei”.

Luísa Ortega, a fiscal-geral do Ministério Público, disse que "mais de metade dos feridos foram resultado da ação dos corpos de segurança" (FEDERICO PARRA/AFP/Getty Images)

FEDERICO PARRA/AFP/Getty Images

Esta última informação foi, para Fermín Mármol, uma “lufada de ar fresco”. “É um passo muito importante num país onde já não há divisão de poderes, onde uma minoria governa como quer, que um órgão estatal liderado por uma pessoa que até foi afeta à revolução esteja a chamar a atenção para a rutura democrática que vivemos”, diz o criminologista.

Por sua vez, Lexys Rendón diz que ficou “muito surpreendida ao início”. “Não é costume vermos uma reação destas a partir de dentro do governo e dos órgãos oficiais”, sublinha, em sintonia com Fermín Mármol.

Porém, tanto um como o outro duvidam que as declarações da fiscal-geral tenham consequências. “Nada disto pode ser resolvido se não houver um poder executivo que está disposto a mostrar que não há intocáveis, por isso isto muito dificilmente dá nalguma coisa”, diz o criminologista. Sobre a questão particular dos colectivos, Lexys Rendón diz: “Supõe-se que as autoridades deviam detê-los, mas a verdade é que estão ao lado dos polícias. E para eles serem detidos é preciso haver vontade política”.

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