Os trabalhadores em Portugal, em conjunto, nunca descontaram tanto para os cofres da Segurança Social como em 2022: 22.527 milhões de euros, mais 2,2 mil milhões, ou 11,3%, face ao ano anterior, de acordo com os dados compilados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), consultados pelo Observador. Em termos absolutos é o maior aumento desde o início da série histórica, que começa em 1995. E, em termos percentuais, é preciso recuar a 1998 para encontrar um salto mais significativo.
Os dados do INE mostram que os dois anos em que o aumento das contribuições sociais efetivas foi mais significativo foram 1997 (11,5%) e 1998 (uns estrondosos 16,5%), um ano em que o desemprego começou uma trajetória de redução até ao mínimo histórico de 2000, 3,9%. Estas subidas poderão ter sido explicadas por alterações ao regime contributivo dos trabalhadores independentes introduzidas nos anos anteriores e que lhes aumentou, de forma progressiva, as taxas contributivas.
Desde então, as contribuições que chegam aos cofres da Segurança Social — e que ajudam a pagar as pensões — aumentaram sempre até 2011, início da crise financeira e altura em que a escalada do desemprego e os cortes nas remunerações ditaram reduções no volume de contribuições.
A trajetória de crescimento viria a ser retomada no ano seguinte, ainda que lentamente. E, em 2022, a receita com contribuições atingiu o valor mais elevado de sempre: ultrapassou os 22 mil milhões de euros, acima do esperado pelo Governo, que no Orçamento do Estado para 2022, apresentado em abril desse ano, apontava para 21.165 milhões. Em 2023, o Governo espera novo recorde: 23.632 milhões, com base no cenário do Programa de Estabilidade.
O aumento da receita com contribuições sociais tem sido uma constante nas intervenções da ministra com as pastas do Trabalho e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho. Uma das mais recentes foi ao lado do primeiro-ministro, quando António Costa anunciou um aumento intercalar nas pensões para julho, de 3,57%. A argumentação do Governo é que, afinal, é possível assegurar o cumprimento integral da lei da atualização em 2024 porque as contas públicas e de sustentabilidade da Segurança Social foram melhores do que o esperado. A população ativa e o emprego estão a crescer, os salários, em termos médios, também, e isso tem efeitos nas contribuições que engrossam o bolo da Segurança Social todos os meses.
A apresentação de Ana Mendes Godinho apontava para uma escalada de 68% da receita com contribuições sociais entre 2015 (14.043 milhões de euros) e 2023 (previsão de 23.632 milhões). “Na prática, significa mais 9.500 milhões de euros que fazem parte do sistema de Segurança Social. Nesse período, passaram a estar declarados à Segurança Social mais um milhão de trabalhadores“, adiantou.
Mendes Godinho atribuiu esse aumento das contribuições a vários fatores. Por um lado, ao crescimento da população ativa — num “recorde” de 5,2 milhões de pessoas — por outro lado, ao emprego declarado — num “número histórico” de trabalhadores que participam ativamente no sistema da Segurança Social, 4,9 milhões de pessoas”, o que significa “mais um milhão de trabalhadores a participarem e a descontarem na Segurança Social.”. Há, diz, um “reconhecimento cada vez maior da importância de todos fazerem parte de um sistema de proteção social coletiva“.
O Governo tem apontado para um reforço da economia formal nos últimos anos que, argumenta, acelerou com a pandemia. “O efeito combinado seja do número de trabalhadores declarados à Segurança Social e entrada na economia formal de muitos trabalhadores que muitas vezes estavam fora do sistema, e até no pós-pandemia sentimos muito a entrada no sistema de muitos trabalhadores que estavam à margem, também de muitos trabalhadores novos que estão a entrar no mercado de trabalho ou também de migrantes que estão a entrar no sistema contribuindo ativamente.”
Na intervenção ao lado do primeiro-ministro, Ana Mendes Godinho repetiu um número que tem avançado nas últimas semanas: em janeiro, fevereiro e março, disse, houve um aumento médio de 8% nos salários declarados à Segurança Social, “acima do que estava previsto no acordo de rendimentos”, de 5,1%. Um valor homólogo que para alguns especialistas ouvidos pelo Observador é visto como inédito.
A inflação ajuda a explicar uma parte: neste período, o aumento dos salários — que os economistas justificam com a subida dos preços — contribuiu mais para o crescimento contribuições do que o número de empregados. A execução orçamental de março, que analisa o período até fevereiro deste ano, aponta para um aumento do número de trabalhadores por conta de outrem declarados em 3,7% em termos homólogos (em janeiro, tinha sido de 2%) e de 11,1% no valor das remunerações declaradas (em janeiro, de 8,3%). Este escalar das contribuições é o principal contributo para a subida de 6% das receitas da Segurança Social.
“A evolução da receita das contribuições para a Segurança Social reflete a retoma da atividade económica e, por conseguinte, o aumento salarial, nomeadamente via atualização da Remuneração Mínima Mensal Garantida”, lê-se na mais recente síntese de execução orçamental.
Estas explicações, embora tenham influência (e muita), não contam a história toda. Para o economista Jorge Bravo há um outro efeito a pesar, e que o Governo não tem mencionado: o fecho da Caixa Geral de Aposentações (CGA) a novos subscritores e a consequente passagem dos novos funcionários públicos para a Segurança Social.
Fim das entradas para a Caixa Geral de Aposentações engrossa Segurança Social em três mil milhões, estima economista
Desde 2006 que os trabalhadores que entram na função pública passam a descontar para a Segurança Social. Até então, os descontos dos funcionários públicos que iam sendo contratados entravam diretos para a Caixa Geral de Aposentações (CGA) — que está, agora, fechada a novas subscrições. Isso também ajudará a explicar uma parte da evolução positiva das contribuições sociais, diz Jorge Bravo, economista e professor na Nova IMS, e que foi o coordenador do programa do PSD para a Segurança Social nas últimas eleições legislativas.
O Observador pediu dados ao Ministério de Ana Mendes Godinho sobre o número de funcionários públicos que já descontam para a Segurança Social, bem como o volume de contribuições deste universo, mas não obteve resposta. Dados divulgados pelo Negócios no ano passado revelavam que, em novembro de 2021, 352 mil trabalhadores do Estado descontavam para a Segurança Social, o que representava 48,6% do total do emprego público.
Com base nessa ideia de que metade dos funcionários do Estado já descontam para a Segurança Social, a estimativa “aproximada” de Jorge Bravo, que permite ter pelo menos uma “ordem de grandeza” da realidade, com base nos valores médios de contribuição e salários, é que em 2022 estivessem “a entrar para a Segurança Social qualquer coisa entre 3,2 mil milhões e 3,3 mil milhões de euros por ano” em contribuições só de funcionários públicos que estão na Segurança Social, com tendência “a aumentar”, tendo em conta as novas contratações.
“É uma fatia muito significativa. No conjunto das contribuições globais, estamos a falar de quase 14,5%. Ou seja, quase 15% do total das contribuições são já deste coletivo que não existia”, resume. Na CGA ficará, portanto, toda a despesa, superior a 10 mil milhões de euros, enquanto as receitas saltam progressivamente para a Segurança Social, que no futuro, terá mais pensionistas a quem pagar pensões, o que pesará nas contas do sistema.
Jorge Bravo lembra, também, que a remuneração média da função pública tende a ser maior do que no privado — e quanto maiores os salários maior o volume das contribuições, que no caso dos trabalhadores perfazem 11% do salário e sobe para 23,75% nas empresas —, além de que “contribuem todos os dias do ano, enquanto no privado há gaps [lacunas] contributivos”, pelas situações de desemprego mais frequentes (do que no público, onde os contratos de trabalho são mais ‘blindados’ e é mais difícil despedir) ou pela eventual atribuição de rendimentos não declarados (também mais difícil de acontecer na administração pública).
Estes fenómenos juntam-se a outros: “Há um efeito obviamente positivo da redução do desemprego”, diz Jorge Bravo, que aponta para o papel “dos inativos ou dos desencorajados” — “alguns deles terão decidido regressar ao mercado de trabalho”.
A receita da inflação e do salário mínimo
Em termos matemáticos, a receita com contribuições sociais depende de três fatores: a taxa contributiva, o volume das remunerações declaradas à Segurança Social e o número de trabalhadores a descontar. E se o primeiro não mexeu nos últimos anos — desde 1994, são os dois últimos indicadores que têm explicado a variação.
Desde logo, pelo aumento do salário mínimo. Em janeiro, avançou 7,8%, uma subida que permite explicar, em parte, o avanço das remunerações declaradas e, por consequência, das contribuições sociais. A par desse efeito, Miguel Coelho, economista e especialista em Segurança Social, que foi vice-presidente do conselho diretivo do Instituto da Segurança Social de 2011 a 2013, acredita que a inflação teve uma quota parte da responsabilidade do aumento: muitas empresas procuraram compensar, ainda que em parte, a subida dos preços. De acordo com as estatísticas da Segurança Social, em 2022, o volume de remunerações declaradas ultrapassou os 64 mil milhões de euros no trabalho dependente (média mensal de 1.361 euros), acima dos 58 mil milhões de euros do ano anterior.
Já a subida nas contribuições de 2020 para 2021 terá “resultado mais da entrada de trabalhadores”, analisa Miguel Coelho, numa fase de recuperação do emprego após o efeito inicial da pandemia. Além disso, desde 2018 houve o descongelamento das progressões na função pública, e dos salários no privado, o que também puxa pelas remunerações declaradas e pelas contribuições.
Na análise mais recente do Conselho das Finanças Públicas (CFP) às contas da Segurança Social, publicada em junho de 2022 com referência a 2021, o CFP atribuiu o aumento das receitas “maioritariamente” ao crescimento das contribuições em 9,4% face a 2020, fruto da “recuperação da atividade económica, com efeitos positivos sobre o mercado de trabalho”, assim como a subida do salário mínimo, “o que aumentou o montante mínimo da base de incidência das contribuições e quotizações”.
Mas mencionava também um “efeito base” da pandemia. “Adicionalmente, importa referir que o expressivo aumento das contribuições sociais espelha também o efeito base do ano de 2020, uma vez que o valor das contribuições foi fortemente influenciado pelo impacto da pandemia no mercado de trabalho”, lia-se. Em 2021, o número médio de trabalhadores inscritos subiu 4,7% face ao ano anterior e as remunerações cresceram 4,6%. A receita de contribuições também “beneficiou” da subida média de 3% do emprego público.
O CFP salientava que a receita de contribuições e quotizações “constitui a principal fonte de financiamento do Sistema Previdencial [o que paga as pensões de reforma], tendo representado 62,1% da receita efetiva (excluindo FSE e FEAC) em 2021 (58,5% em 2020)”. O crescimento desta rubrica é “fundamental para garantir o autofinanciamento e a sustentabilidade do sistema contributivo“.
De facto, a maior parte (65,5%) da despesa com pensões e complementos no valor de quase 29 mil milhões de euros, foi, em 2021, financiada pelas receitas com contribuições e quotizações, e uma parte mais pequena, mas ainda significativa, por transferências do Orçamento do Estado (33%), de acordo com o parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2021. “O aumento da receita de contribuições, em 2021, foi suficiente para retomar o comportamento decrescente das transferências do OE para o financiamento de pensões que se vinha verificando até 2019, no seguimento da recuperação da atividade económica.”
A despesa geral do sistema de Segurança Social também subiu — em 2022, cresceu 0,7%, muito por via do complemento de meia pensão pago em outubro (contributo de 2,1 pontos percentuais), das pensões de velhice (1,3 pp) e “outras prestações” (1,6 pp).
Trabalho dependente puxa mais
O emprego declarado tem estado a recuperar desde 2015, no pós-crise. Tirando o ligeiro decréscimo durante o início da pandemia, está a recuperar desde então. O mesmo para a função pública, que viu o número de trabalhadores crescer 12,6% entre o último trimestre de 2015 e o mesmo período de 2022.
Também o emprego imigrante está a atingir recordes. Segundo informação divulgada pela ministra Ana Mendes Godinho no Parlamento, em outubro, 12% dos inscritos na Segurança Social eram estrangeiros, quando em 2015 a percentagem era apenas de 3%.
12% dos trabalhadores inscritos na Segurança Social são estrangeiros. Há 7 anos eram 3%
É o trabalho dependente que está a puxar mais pelo emprego declarado. Segundo as estatísticas da Segurança Social, em 2022 estavam a descontar para o sistema 4,5 milhões de trabalhadores dependentes. Sem contar com a ligeira queda em 2020, início da pandemia, o número tem estado a crescer desde a crise anterior, e está acima de 2010 — o ano com os dados mais antigos disponíveis no site da Segurança Social (3,7 milhões). Face a 2021, é uma subida de 7%.
Como consequência, aumentam as contribuições dos trabalhadores por conta de outrem, que em 2022 se fixaram em 21,9 mil milhões de euros. Este crescimento do trabalho dependente parece estar a fazer-se à custa dos independentes. Nesse grupo, o volume de contribuições, embora tenha subido em 2022, continua abaixo (nos 550 milhões de euros) face ao pré-crise anterior (680 milhões em 2010). O número de trabalhadores por conta própria também ainda não recuperou (529 mil em 2022), face aos 534 mil de 2010.
Alguns dos especialistas ouvidos pelo Observador pedem estudos independentes que permitam analisar, explicar e enquadrar a evolução das contribuições sociais nos últimos anos com maior detalhe. O tema é um dos tópicos que está a ser analisado pelo grupo criado pelo Governo para estudar a sustentabilidade do sistema, e apresentar propostas que adiem o ‘buraco’ das pensões.