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“Um ponto de viragem” que se traduz no “sucesso absoluto” das operações militares “em terrenos muito difíceis.” As recentes vitórias da Rússia foram celebradas na quarta-feira pelo Presidente russo, Vladimir Putin. A tomada da cidade de Avdiivka e a conquista de pequenas aldeias na província de Donetsk estão a dar ânimo ao Kremlin para continuar o seu esforço de guerra, que já dura há dois anos. O otimismo é tanto que Moscovo já terá outro objetivo traçado: chegar ao nordeste da Ucrânia, em concreto ao oblast de Kharkiv, de onde as tropas russas foram expulsas após fulminantes ataques ucranianos em setembro de 2022.
A vontade russa não será, porém, ficar por Kharkiv. O jornal britânico Guardian avançou, citando fontes diplomáticas do Ocidente, que a Rússia ainda não desistiu “dos objetivos maximalistas de subjugar a Ucrânia”. Servindo como eco dessa crença, o vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia e ex-Presidente, Dmitry Medvedev, admitiu publicamente que Moscovo ainda vê como possível a conquista de Kiev. Numa entrevista à TASS, o responsável definiu Kiev como uma “cidade russa” que está a ser “gerida por uma equipa internacional de opositores da Rússia liderada pelos Estados Unidos”.
Em contrapartida, a Ucrânia tem tentado resistir à ofensiva russa. Nos últimos tempos, após uma contraofensiva pouco eficaz, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, renovou as chefias militares. Mas a batalha do chefe de Estado não é interna. É mais externa, nomeadamente em termos diplomáticos. O chefe de Estado tem multiplicado os apelos para que a Câmara dos Representantes norte-americana vote (e aprove) o pacote de ajuda destinado à política externa, em que estão destinados cerca de 60 mil milhões de dólares (cerca de 55 mil milhões de euros) que serão vitais para apoiar o esforço de guerra ucraniano.
A tarefa não se afigura nada fácil. Algumas fações do Partido Republicano olham com muita desconfiança para a guerra na Ucrânia, considerando que os Estados Unidos da América (EUA) não devem mais financiar o conflito. Lideradas pelo antigo Presidente dos EUA e atual candidato às primárias Donald Trump, alguns republicanos consideram que Volodymyr Zelensky se deve sentar à mesa das negociações e assinar um acordo — independentemente das cedências territoriais que isso possa implicar.
A possível chegada de Donald Trump à Casa Branca, caso vença as eleições, também preocupa ucranianos, um vez que o magnata já prometeu terminar o conflito em 24 horas, não especificando o que fará para que isso aconteça. Contudo, a alegada proximidade do ex-Presidente a Vladimir Putin e as palavras duras contra a ajuda à Ucrânia levam a crer que haverá cedência de territórios, algo inimaginável para os ucranianos e já várias vezes rejeitado por Volodymyr Zelensky.
Neste cenário, apenas os países europeus e alguns aliados como o Canadá ou o Japão parecem estar dispostos a dar à mão ao Presidente ucraniano. Preparando-se para a hipótese do fim da ajuda norte-americana, que poderá ser ditada pela eleição de Donald Trump, a Ucrânia assinou durante a última semana acordos bilaterais com a Dinamarca, França, Alemanha e Reino Unido. À luz daqueles documentos, prevê-se que aqueles quatro países — dos mais importantes dentro da NATO — ajudem militarmente Kiev durante pelo menos os próximos dez anos.
Sem o apoio norte-americano, permanecem várias dúvidas. “Embora a NATO tenha prometido apoio contínuo à Ucrânia, sem o próximo pacote de ajuda militar e económico dos EUA e sem um grande avanço militar, é provável que a Rússia mantenha a iniciativa no campo de batalha e possivelmente venha a conquistar mais territórios na Ucrânia”, conjetura ao Observador Javed Ali, atual docente na Universidade de Gerald R. Ford no Michigan, que também já trabalhou para o FBI e para o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos.
A superioridade em número de homens e armas. A Rússia está em vantagem?
Neste momento da guerra, Javed Ali nota que a Rússia adota uma postura de ataque, apesar de registar um “número de perdas impressionantes”. Mesmo assim, o especialista realça que Moscovo “continua a possuir uma clara vantagem em termos de homens”, sendo que o Presidente Vladimir Putin não demonstra igualmente qualquer “misericórdia em mandar dezenas de milhares de tropas adicionais para a Ucrânia”.
No caso da Ucrânia, a mobilização de tropas tem sido um problema, inclusivamente assumido por Kiev. Os dois anos de conflito originaram baixas consideráveis entre as Forças Armadas ucranianas, que não têm como responder à supremacia russa. Assim sendo, Volodymyr Zelensky tem tentado que seja aprovada uma controversa nova lei da mobilização, que até prevê que sejam chamados ucranianos no estrangeiro. Não obstante, a legislação não está a ser bem recebida pela generalidade da sociedade.
Combatendo contra tropas mais desfalcadas, a Rússia consegue obter uma vantagem considerável. Para além disso, as tropas fieis a Moscovo contam com outra vantagem. Num teatro de operações em que são necessários “veículos blindados, tanques, artilharia, munições, drones e mísseis de curto e médio alcance”, a Rússia aparenta ter outra vantagem: “Terá sido capaz de fabricar ou comprar equipamentos bélicos suficientes para superar o que foi destruído ou danificado”, diz Javed Ali.
Com uma indústria naturalmente mais poderosa face à ucraniana, a Rússia tem sido capaz de restabelecer os stocks do seu arsenal. E também tem procurado aliados para comprar drones, como o Irão, ou mísseis, como a Coreia do Norte. Quer Teerão, quer Pyongyang, possuem regimes autocráticos que são alvos de inúmeras sanções pelo Ocidente — e encontram em Moscovo um parceiro com quem podem fazer negócios.
Em relação à Ucrânia, reabastecer o seu arsenal com meios próprios é mais difícil, ainda que Volodymyr Zelenksy tenha salientado que essa é uma das prioridades para as autoridades ucranianas, principalmente no que concerne aos drones e a tecnologia disruptiva capaz de quebrar linhas defensivas russas. Sobre as compras e doações de países estrangeiros, o país tem enfrentado grandes dificuldades.
Uma das maiores potências militares, os Estados Unidos, são fundamentais para apoiar o esforço de guerra ucraniano em termos de armas. Sem o respaldo de Washington, a situação é mais complicada. “Se o apoio norte-americano não chegar à Ucrânia, é possível que a Rússia faça avanços na linha da frente”, aponta ao Observador Liana Fix, cientista política alemã e membro do think tank Council on Foreign Relations. E acrescenta: “É urgente e necessário que os europeus aumentem a sua produção na área da Defesa para a Ucrânia. E também para a sua própria segurança”.
O impasse ditado pelos congressistas republicanos está longe de estar resolvido. Apesar de a administração Biden continuar a enveredar esforços, revelam-se insuficientes. Do outro lado do Atlântico, os europeus veem na guerra da Ucrânia — e uma possível vitória de Kiev — como uma forma de garantir a sua própria segurança, daí que apoiar Kiev funcione mais como uma salvaguarda do que propriamente uma obrigação.
Mesmo com os problemas operacionais no terreno e com as dificuldades em convencer os aliados norte-americanos, os ucranianos não vão baixar os braços, estando em risco a sua soberania e uma possível subjugação ao regime russo. Assim, Javed Ali prevê que a guerra vá “continuar nos próximos meses, especialmente com o estado do tempo a melhorar”. “Os dois lados vão ser capazes de mobilizar mais pessoas, sendo igualmente capazes de movimentar com sucesso equipamentos pesados em diferentes localizações, algo que não é possível durante o inverno.”
Confiança russa. Baseada na realidade ou apenas uma forma de desmoralizar a Ucrânia?
Que neste momento do conflito a Rússia tem vantagem face à Ucrânia, isso parece ser certo. No entanto, as operações no terreno serão mesmo um “sucesso absoluto”, como sugeriu Vladimir Putin, e poderão dar um impulso suficiente para o Kremlin conquistar outros territórios? Os especialistas têm dúvidas. Ao canal de televisão CNBC, James Nixey, membro do think tank Chatham House, afirmou que o Presidente russo sente de facto “fraqueza”. “Se a sua confiança é justificada, ainda está por ver.”
Sentindo o apoio internacional à Ucrânia a diminuir, algo que sempre esperou que fosse acontecer desde fevereiro de 2022, o Presidente russo aparenta estar mais confiante de que a Rússia poderá vir a sair com uma vitória (mais que não seja parcial) da Ucrânia. Sem embargo, essa confiança — tornada pública durante uma reunião entre Vladimir Putin e o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, na passada quarta-feira — pode também ser uma manobra de propaganda do Kremlin, principalmente a menos de um mês das eleições presidenciais russas.
Segundo o relatório da passada terça-feira publicado pelo think tank norte-americano Instituto para o Estudo da Guerra, esta “vontade do Kremlin” em divulgar detalhes sobre o “ritmo e a iniciativa das operações ofensivas russas na Ucrânia” deve-se não só a um efetivo aumento da confiança, como também a uma forma de “apoiar as narrativas do Kremlin”, que poderá ser “cada vez mais capaz de reivindicar vitórias no campo de batalha sem garantias totais do sucesso tático e operacional russo”.
Esta manobra tem dois objetivos, constata o Instituto. A primeira passa por “glorificar” Vladimir Putin antes das eleições e depois da morte do seu principal opositor, Alexei Navalny. A outra consiste em “desmoralizar ainda mais a Ucrânia” não só internamente, como também entre os seus aliados, transmitindo a ideia de que será impossível uma vitória ucraniana”.
“Contudo, esta retórica cada vez mais confiante pode criar expectativas no espaço informativo russo que depois as forças militares russas podem nunca vir a concretizar”, ressalva ainda o Instituto para o Estudo da Guerra.
O futuro de uma guerra mais política em 2024
Apesar das vantagens atuais da Rússia no campo de batalha, a guerra está longe dos avanços praticamente diários de 2022, seja do lado russo, seja do lado ucraniano. Ao mesmo tempo, quebrou-se o impasse que marcou o ano de 2023 — com a longa batalha pela conquista de Bakhmut ou a contraofensiva que nunca registou grandes avanços.
Em 2024, a guerra ganhou um cariz mais político, opinam vários especialistas, principalmente devido às eleições presidenciais norte-americanas marcadas para novembro deste ano. “A guerra tornou-se mais politizada, principalmente nos Estados Unidos”, assegura Liana Fix, assinalando que é um “assunto de grande discussão” na sociedade norte-americana.
Ou seja, o tema Ucrânia é usado como uma bandeira eleitoral que não “tem nada a ver com a Ucrânia, mas mais com as eleições”, prossegue Liana Fix. A especialista considera que a guerra em território ucraniano ajuda a definir que opções serão tomadas na política externa num segundo mandato de Biden ou numa nova administração Trump. “O futuro do papel global da América está a ser discutido pelo prisma da Ucrânia.”
Por seu turno, Joe Biden “já mostrou que manterá” o apoio à Ucrânia e permanecerá comprometido com a segurança da NATO, refere Javed Ali. Pelo contrário, Donald Trump, caso vença as primárias republicanas, aponta mais para um caminho isolacionista de colocar a América em primeiro lugar — ignorando as aspirações ucranianas e a Aliança Atlântica. “Pode levar a cortes no apoio norte-americano”, vaticina o especialista.
Silja Bára Ómarsdóttir, professora de Ciência Política na Universidade da Islândia, concorda e indica ao Observador que o “futuro da guerra na Ucrânia vai depender” dos “desenvolvimentos políticos nos Estados Unidos”: “Se Trump for eleito, torna-se claro que o apoio norte-americano à Ucrânia será diminuído significativamente”.
Neste último caso, a docente universitária islandesa acredita que caberá à Europa apoiar a Ucrânia. Mas será “muito difícil”, seja no apoio militar, seja no que concerne, por exemplo, ao fabrico de munições. As ameaças de uma invasão russa a um Estado-membro da União Europeia e da NATO, como a Estónia ou a Finlândia, pairam no ar — e os países europeus deverão não só fortalecer a sua defesa, como também a ucraniana, de forma a travar as alegadas aspirações expansionistas de Vladimir Putin.
A Ucrânia não está “disposta a aceitar um conflito congelado como fim da guerra e as condições para as negociações de paz ainda não foram alcançadas”, sinaliza Silja Bára Ómarsdóttir. Tudo isto faz a especialista antever que o terceiro ano do conflito não deverá ser o último. “O conflito vai continuar pelo menos nos próximos meses”, preconiza.
A Rússia e Ucrânia não dão sinais de desistir. Com vantagem em número de homens e em armas, os dirigentes russos querem aproveitar as vitórias pelo menos para vender a ideia de que serão capazes de conquistar novos territórios, ainda que essa possibilidade esteja ainda muito longe de se concretizar. Já em Kiev, existe a esperança de que os Estados Unidos vão continuar a estar a seu lado — e que esta é apenas uma má fase do conflito.