“Olá a todos. Obrigada pela mensagem que me mandaram. É uma grande ajuda para mim. Do fundo do coração, um beijinho para todos”. Esta frase foi dita por Cidália Lapa num vídeo em resposta às mensagens dos seus amigos e conhecidos. Esse vídeo não tem mais de 20 segundos e Cidália aparecia deitada na cama do hospital, entubada, com fios ligados no peito. Ao fundo, ouvem-se os barulhos das máquinas. A voz era trémula e notava-se que lhe custava respirar, mas ainda conseguiu um aceno. Tinha acabado de sair do coma. Assim que acordou, os médicos mostraram-lhe uma montagem de vídeo com mensagens gravadas por amigos e colegas. Por cima de um arco-íris aparecia o nome: “Cidália”. Mais abaixo, uma frase: “Vai correr tudo bem”.
[Pode ouvir aqui a primeira parte da reportagem Recuperados, sobre Cidália Lapa]
Recuperados. “Quando me levantei, não consegui dar um passo. Só me caíram as lágrimas”
No Hospital de Guimarães, os enfermeiros puxaram por ela e incentivaram-na a responder. É esse o vídeo que agora mostra, na sala de sua casa, sentada no seu sofá. A mulher deitada na cama do hospital não parece a mesma pessoa que hoje segura o telemóvel.
Cidália Lapa não tem certezas de como terá sido infetada com Covid-19, mas acredita que foi na escola onde dá aulas de música. Apesar de ter todos os cuidados e de trocar frequentemente a máscara, a 6 de novembro foi contactada pela mãe de uma aluna com quem tinha reunido no dia anterior a dizer-lhe que testou positivo ao novo coronavírus. No mesmo dia, ligou para a Linha Saúde 24 e fez o teste. O resultado chegou dois dias depois: estava infetada. “Eram 7h06 recebi uma mensagem a dizer que estava positiva”. Os dias iam passando e os sintomas agravavam-se. Tinha febre, tosse e estava cansada. No final da semana, não conseguia estar de pé. A 13 de novembro deu entrada no Hospital de Guimarães. Sem sinais de que estava a melhorar, foi transferida para os Cuidados Intensivos onde esteve 27 dias, dos quais 24 em coma induzido.
“Quando acordei achei que não ia ter incapacidades. Até que um fisioterapeuta perguntou se queria tentar pôr-me de pé. Quando me levantei, caí para a frente. Pediu-me para dar um passo, eu não consegui. Os pés pesavam muito… Só me caíram as lágrimas e pedi para me deitarem”, conta. “Sentia-me muito frustrada e achava que nunca mais ia conseguir andar. E estava a entrar em desespero”.
Cidália ligava ao marido a pedir-lhe que insistisse para lhe arranjarem vaga no Centro de Reabilitação do Norte, em Vila Nova de Gaia. Já tinha ouvido falar do trabalho que lá é feito na recuperação de doentes que ficam incapacitados e era aí que depositava todas as esperanças. Esperou 10 dias até ser transferida.
“Cheguei a pôr a mão no nariz para ver se continuava a respirar. O medo era tanto…”
Já no Centro de Reabilitação, Cidália não conseguia fazer o básico: pentear o cabelo, lavar os doentes, segurar nos talheres – coisas simples, do dia a dia, que de repente se tornavam impossíveis.
Aos 59 anos, a ideia de ter de mudar radicalmente de vida era demolidora. E se não conseguisse voltar a dar aulas na escola em que é professora? E se não voltasse a pegar ao colo a neta de dois anos? E se não pudesse voltar a tocar saxofone? Estas eram algumas das tantas perguntas que Cidália não deixava de fazer a si própria e aos terapeutas que cuidavam de si.
O saxofone é uma das paixões da vida de Cidália. O pai era músico e chegou a dirigir uma banda filarmónica em Fafe. Cidália aprendeu em pequena: “Na altura, nos anos 70, não me deixaram entrar na banda por ser mulher. Ensinaram-me, tiraram-me medidas para a farda… mas depois não me deixaram ir”.
Não desistiu e inscreveu-se no Conservatório de Música Calouste Gulbenkian de Braga. Continuou os estudos na ARTAVE, a Escola Profissional Artística do Vale do Ave, onde concluiu o curso de Composição. Cidália acabou por casar com um trompetista e os dois filhos também tocam instrumentos. Esta paixão estendeu-se à profissão que escolheu – é professora de Educação e Expressão Musical e, no início do ano passado, lançou um livro sobre as bandas filarmónicas do concelho de Fafe.
“No Centro de Reabilitação, o Dr. Rui Santos viu no meu processo que eu era professora e perguntou-me o que é que ensinava e se tocava algum instrumento. Respondi: ‘Saxofone. E tenho muito medo de nunca mais conseguir tocar'”. Esse foi um dos objetivos incluídos no plano de recuperação de Cidália. Esteve 45 dias no Centro de Reabilitação do Norte e, a pouco e pouco, voltou a conseguir andar, ganhou força e recuperou a autonomia.
O mais difícil foi deixar o oxigénio. Cidália lembra-se dessa noite, a 13 de janeiro. “Não dormi nada. Adormecia, mas estava constantemente a acordar e cheguei a pôr a mão no nariz para ver se continuava a respirar. O medo era tanto…”.
Uns dias antes de deixar o Centro de Reabilitação, o médico que a acompanhava pediu que lhe trouxessem o saxofone e o seu marido foi lá entregar-lho. “Felizmente consegui tocar! Cheguei ao fim cansada, parecia que o coração me ia sair pela boca, mas consegui!”.
Mesmo já podendo estar em casa, Cidália continua a cansar-se nas tarefas que aos olhos de grande parte das pessoas parecem simples. Subir e descer umas escadas, cozinhar e arrumar a casa são ações que ainda lhe custam bastante. É aqui que entra uma terceira fase da recuperação: a fisioterapia no Hospital de Fafe, todos os dias durante uma hora. Lá anda de bicicleta, levanta pesos e treina principalmente a sua mobilidade dos braços — que são dos membros mais afetados. Estes exercícios ajudam não só a parte física mas também, e bastante, a parte respiratória, habituando o corpo ao esforço diário que cada pessoa dispensa nas suas atividades mais básicas.
O regresso a casa e um livro para lembrar os dias que não viveu
O dia do regresso foi a 4 de fevereiro, quase três meses depois de ter sido internada. Não há vídeos que registem esse momento, mas Cidália gravou na memória cada minuto. “O meu marido é excecional e fez tudo ao pormenor. Estavam todos à entrada de casa, com máscara. A minha família toda – os meus irmãos, os meus cunhados, os meus filhos…”.
A filha esperava-a com um ramo de flores. As grades da entrada de casa estavam cheias de balões pendurados e chamaram um músico para tocar assim que Cidália pusesse um pé fora do carro. “Quando cheguei vi este aparato todo, tudo a bater-me palmas… Fiquei toda contente!”, conta Cidália.
A mãe, que também ficou infetada com Covid-19 enquanto Cidália esteve em coma, pôde receber um abraço. “Ela disse-me: ‘Pensei que não te ia ver mais’. Perguntei-lhe se ela achava que eu ia morrer. Disse-me que não: ‘Achei que ia morrer eu sem te ver'”.
Cidália está ainda a adaptar-se à vida normal. Ainda não voltou a dar aulas. O regresso à escola ainda vai demorar; precisa de ficar mais forte. Até lá, tem outro projeto — escrever um livro. A ideia surgiu dos médicos que a acompanharam. “Como foi um caso de sucesso, disseram-me que devia contar a minha história”. Cidália começou a recolher documentos e fotografias. Um destes dias, vai ao hospital de Guimarães para falar com a equipa que a ajudou, para lhe contarem como foi o tempo que esteve internada.
É um período do qual praticamente não tem memória. E, por isso, é provável que o livro se chame “Os dias que não vivi”. Cidália ainda está indecisa. Tem tempo para escolher o título.
Todas as tardes senta-se no sofá e escreve. Já tem mais de 50 páginas que relatam todos os acontecimentos desde que recebeu o teste positivo à Covid-19. O livro ajuda-a a processar o que passou e quer lembrar os perigos deste vírus que a apanhou de surpresa. Serve de testemunho para quem vem a seguir, como a neta de dois anos, por exemplo.
A professora sente que é cedo para pôr um ponto final nesta história. Ainda não está tranquila: “Tenho muito medo”, confessa. “Se voltar a ser infetada como me aconteceu, não sei se o corpo consegue reagir como reagiu. E os médicos dizem-me que isto é tudo novo para eles. Daqui a um mês ou dois posso estar recuperada ou daqui a cinco anos ainda posso ter sequelas”.
Uma incerteza com que vai ter de lidar. Por agora, vai gozando as pequenas vitórias e garante que hoje é uma pessoa mais forte. “Não sei onde fui buscar forças… Eu era uma pessoa de lágrima no olho à mínima coisa. Até fico admirada comigo. Não sei onde fui buscar força, mas fui”.
Na sala de estar de casa, monta uma estante para partituras. Vai depois buscar uma mala preta de onde tira o saxofone, põe a fita ao pescoço, monta a boquilha e a palheta. Respira fundo e começa a tocar. As notas, às vezes, saem mais tímidas e Cidália tem de fazer pequenas pausas para recuperar o fôlego. “O som não sai perfeito por causa deste cansaço! Não dá, para já. Tem de ser aos poucos”, admite.
Mas percebe-se bem qual é a música: “Hallelujah”, de Leonard Cohen.