Paulo Pereira, 53 anos, toma a dianteira do comboio de manifestantes e grevistas da Confederação Francesa de Trabalhadores Cristãos (CFTC) — que pelas 15h00 desta quinta-feira, dia de greve geral em França, se alinhava, na Place de L’Etoile, em Estrasburgo. O português arranhado indicia a vida inteira passada em França e as idas esporádicas — a cada dois ou três anos — a Portugal. Se aí estivesse a viver, e trabalhar, Paulo ainda teria pela frente mais de 13 anos até se reformar, dependendo de como evoluirá a esperança média de vida. Estando em França, restam-lhe 9, se nada mudar — ou 11, caso a intenção do governo francês de aumentar a idade da reforma para os 64 anos for avante.
“Eles [o governo] querem aumentar a idade da reforma porque aqui perto, na Alemanha, está nos 67 anos [num processo gradual de subida]. Querem ficar mais ou menos como outros países europeus, mas não estamos de acordo“, diz ao Observador, entre manifestantes inquietos e desejosos de iniciar a marcha. “Já podemos começar?”, vai-se ouvindo. São às centenas, até milhares, ora filiados em partidos políticos ora em sindicatos, ou independentes, cidadãos sem cor partidária que não se conformam com a intenção anunciada em 2020, mas adiada por causa da pandemia, e que mexe com a idade legal, as longas carreiras e os regimes especiais da reforma.
Para o técnico de laboratório, trabalhar até aos 64 anos não é algo impensável. Mas está ali pelos colegas com trabalhos mais pesados, na indústria e produção, sujeitos a um desgaste físico que, diz, se torna particularmente intenso a partir dos 55 anos. “São colegas que trabalham com muito barulho ou a levantar coisas pesadas. Trabalhar até aos 64 anos pode ser aceitável para quem trabalha em laboratórios, como eu, mas não para eles“, atira. O governo já disse que vai manter algumas exceções, para as carreiras muito longas ou outras de desgaste rápido. Mas também vai acabar com alguns regimes excecionais que incluem os setores da energia, que o sindicato representa.
A exigência de algumas profissões reflete-se, argumenta, nas baixas médicas, que começam a aumentar entre os colegas que trabalham em fábricas, a partir dos 55 anos. “Com a reforma nos 64 anos vai ser ainda pior”, vaticina. Por isso, defende condições diferentes consoante a profissão. “Não pode ser geral.”
Florence, francesa de 51 anos, tem outra opinião. “Acho que não [deveria haver uma idade de reforma consoante cada profissão]. O nosso direito é deixarmos de trabalhar quando nos tornamos mais velhos“, refere. A educadora de infância não é novata nestas manifestações — já esteve noutras há três anos, quando a reforma foi anunciada pelo então primeiro-ministro, Edouard Philippe. Mas tem dúvidas de que a mobilização por toda a França, onde terão participado 1,12 milhões de pessoas, segundo o Ministério do Interior, tenha o efeito esperado. Mesmo apesar de a greve geral ter fechado escolas, cancelado vários voos e imobilizado outros transportes — de mercadorias, com algumas prateleiras completamente vazias em supermercados, e de passageiros, com estações de comboios fechadas.
Sindicatos franceses anunciam mais protestos contra o Governo a 31 de janeiro
“Acho que temos de continuar a fazer isto até que nos oiçam, mas não sei se o vão fazer“, lamenta. Florence e as colegas junto de quem marcha lidam com crianças com menos de três anos, um trabalho sensível que exige particular paciência e cuidado. “Quando chegamos aos 60 anos já estamos fisicamente cansadas… e psicologicamente também.”
O plano das pensões de Borne
A reforma das pensões, que promete tornar-se no calcanhar de Aquiles do segundo mandato de Emmanuel Macron, ficou três anos em banho-maria por causa da pandemia. Quando foi anunciada, em 2020, foi rapidamente recebida com oposição de sindicatos e manifestações na rua, uma reação comum num país com uma forte cultura contestatária — foi, aliás, França que criou a palavra “grève” (que Portugal importou). O tema das pensões é, também, particularmente caro para os franceses, pelo que não foi de estranhar a onda de reações negativas que se seguiram ao anúncio da primeira-ministra francesa, Élisabeth Borne, na semana passada.
Segundo o Le Figaro, a idade legal mínima da reforma vai aumentar progressivamente a partir de 1 de setembro deste ano, a um ritmo de três meses por ano. Isso significa que em meados de 2027 estará nos 63 anos e 3 meses e, em 2030, nos 64 anos. Uma “linha vermelha” ultrapassada, dizem os sindicatos.
O período de descontos necessário para aceder à reforma completa também vai subir para quem nasceu após 1968, para os 43 anos, até 2027, e alguns regimes especiais de pensões serão revistos. Isto porque, para o executivo, “já não se justificam aos olhos dos franceses”, e as idades da reforma que permitem “já não estão adaptadas à realidades destas profissões”. O jornal francês escreve que em causa estão regimes nas indústrias da eletricidade e do gás, na RAPT, que abrange os transportes de Paris, no Banco de França, nos notários, entre outros.
“Trabalhar mais permitirá aos futuros reformados terem pensões mais elevadas“, justificou a primeira-ministra, estimando, assim, que em 2030 o sistema esteja “equilibrado financeiramente”. Por outro lado, mantém-se o acesso à reforma antecipada para carreiras muito longas, assim como algumas categorias de trabalhadores como polícias ou bombeiros. O Le Figaro acrescenta que no pacote de medidas também está o aumento da pensão mínima, em 100 euros, para igualar 1.200 euros.
O argumento do governo é que a esperança média de vida está a subir e que há cada vez mais pensionistas por trabalhador, o que ameaça a sustentabilidade do sistema de pensões. “O nosso objetivo é garantir o futuro das reformas. Se não fizermos nada, os défices vão ampliar-se, o que tem como consequência termos de baixar o poder de compra dos reformados ou aumentar os impostos. Não é isso que queremos”, disse Borne. O governo estima obter uma receita adicional de 17,7 mil milhões de euros até 2030 com a reforma, que levou milhares à rua esta quinta-feira, em protestos essencialmente pacíficos (os ânimos chegaram a exaltar-se em Paris).
No Twitter, Élisabeth Borne saudou “o empenho das forças de ordem, bem como das organizações sindicais, que permitiram que as manifestações se realizassem em boas condições. Permitir que as opiniões sejam expressadas é essencial para a democracia”. E assegurou: “Vamos continuar a debater”.
Je salue l’engagement des forces de l’ordre, comme des organisations syndicales, qui ont permis aux manifestations de se dérouler dans de bonnes conditions.
Permettre que les opinions s’expriment est essentiel pour la démocratie.
Continuons à débattre et à convaincre.— Élisabeth BORNE (@Elisabeth_Borne) January 19, 2023
“É o sinal que estão a dar à sociedade”
Hugo Crouzilli, estudante de teatro de 24 anos, acelera o passo em direção aos amigos, também eles erguendo uma bandeira vermelha com letras brancas que, explica, pertence ao Lutte Ouvrière (em português, Luta Operária), um partido trotskista com pouca expressão eleitoral. “Estamos a falar do nosso futuro. Este tipo de medidas é um símbolo da nova política neo-liberal do governo, que está a oprimir os trabalhador.”
Estar ali trata-se de uma questão de princípio, de defesa de um modelo de sociedade em que acredita. “Estamos treinados para passar reformas que empobrecem mais os mais pobres. Porque é que continuamos a martelar nos trabalhadores quando podíamos distribuir melhor a riqueza e ter uma melhor gestão política?” É que, para Hugo, não é só o aumento da idade da reforma que está em jogo: “É o sinal que estamos a dar à sociedade”.
Paulo Pereira refuta o argumento da sustentabilidade do sistema e do rácio entre o número de trabalhadores por reformados. “As pessoas mais velhas têm de parar de trabalhar para que os jovens comecem a trabalhar e descontem. Foi para isso que França passou para as 35 horas: para dar mais lugar aos jovens para irem trabalhar, mas os patrões não fizeram nada disso”, critica, apontando para a taxa de desemprego jovem, que em França estava ligeiramente acima dos 18% no final de 2022 (a média da UE rondava os 15% no mesmo período, segundo o Eurostat). “É demasiado. Deviam ter todos trabalho porque são eles que, mais tarde, vão pagar as nossas reformas”, atira Paulo.
Hugo gostava de ver mais jovens na manifestação, em Estrasburgo — um sinal, diz, da pouca informação. “Acho que não estamos suficientemente informados sobre o que esta reforma significa para os estudantes… e somos nós que seremos afetados. Teremos de nos debater com isto se for avante. É muito importante manifestarmo-nos e mostrar que não é aceitável.”
Os jovens podem não estar ali em força, mas nem por isso deixam de apoiar a luta dos grevistas, segundo uma sondagem da revista “Le Point”, feita pelo instituto Cluster17: a maioria dos inquiridos (dois terços) concorda com os manifestantes e é favorável à greve geral. Sobretudo os mais jovens: 75% dos participantes entre 18 e 24 anos disseram estar ao lado grevistas. A organização da greve também mostra como a reforma anunciada está a ser recebida com uma forte oposição, com sindicatos que não costumam juntar-se a aderir em massa.
E o resultado foi visível em Estrasburgo, já durante a véspera da paralisação desta quinta-feira, que chegou a vários setores: desde escolas, transportes e distribuição, com prateleiras vazias em várias superfícies. “Caros clientes, pedimos desculpa pela falta de produtos devido à greve”, lia-se numa folha colada a uma prateleira de um supermercado.
Os sindicatos tinham-se proposto a fazer uma greve “inédita” e, segundo o Ministério do Interior francês, conseguiram juntar nas ruas de todo o país 1,12 milhões de pessoas, das quais 80.000 em Paris. É muito mais do que os entre 600.000 e 800.000 manifestantes que as autoridades esperavam. Os sindicatos, por sua vez, falam em “mais de dois milhões” de pessoas nas ruas em toda a França e quase 400.000 na capital, segundo o secretário-geral da CGT, Philippe Martinez.
Greve geral “inédita” em França leva milhares à rua contra reforma do sistema de pensões
A “reforma de Borne”, como está a ficar conhecida, será discutida em fevereiro na Assembleia Nacional e enquanto já se sabe que terá a oposição dos partidos da esquerda, ainda não é conhecida a posição de toda a direita. Como o partido de Macron não tem maioria no parlamento, será preciso conseguir convencer Os Republicanos a votar ao seu lado. Outra opção é forçar a aprovação através de um artigo da lei que permite aprovar alguns textos sem uma votação formal.
Mas os sindicatos já vieram bater firmemente o pé a essa opção por a considerarem “antidemocrática”. O governo diz estar disponível para negociar, mas enquanto a proposta não voltar para a gaveta, de onde veio, estão prometidas mais manifestações. Paulo, Florence e Hugo prometem a elas voltar, se for necessário. E com eles, os milhares de manifestantes que pintaram as ruas de Estrasburgo até à praça Kléber, na qual se ergue uma estátua em homenagem a Jean Baptiste Kléber, um general francês que participou nas guerras da Revolução Francesa. Aos seus pés, Kléber tem agora outros conflitos: o da luta contra a subida da idade da reforma.