A ideia surgiu “já depois do almoço”, como prova a toalha de papel com o desenho do jogo que Ricardo Araújo Pereira revelou ao Observador. Um dia depois de ter apresentado Salva o Neto, que tem como protagonista o polémico juiz Joaquim Neto de Moura, o humorista conta como se deu o processo criativo até chegar à ideia final: “Pusemo-nos na pele do juiz e percebemos que não deve ser fácil ter a sociedade em peso a repudiar as nossas considerações sobre violência doméstica.”
O site do jogo “Salva o Neto” foi registado este sábado, dia 2, como reação à notícia de que Neto de Moura vai processar várias figuras públicas que o criticaram — entre elas, o próprio Ricardo Araújo Pereira. Apesar de ter sido exibido no programa que liderou as audiências este domingo, o magistrado judicial garante que desconhece o jogo. Ao mesmo tempo, diz-se “triste” e “indignado” com toda a situação. O seu advogado, Ricardo Serrano Vieira, adiantou que está a analisar o episódio e que as ações judiciais contra as figuras públicas darão entrada “no final do mês de março”.
O jogo, que rapidamente foi experimentado pelo público em estúdio no programa deste domingo de “Gente que Não Sabe Estar”, na TVI (pode rever no link a partir do min. 14), começa com breves instruções (são apenas utilizadas as setas de direção do teclado) e com a frase: “A opinião pública está a conspurcar a idoneidade do juiz Neto de Moura. Ajuda-o a escapar à censura social e a chegar a casa limpinho para escrever mais acórdãos infames.”
O jogo é simples: o objetivo é evitar ser atingido pelos dejetos enviados “pela opinião pública” para “chegar a casa limpinho para escrever mais acórdãos infames”, como explicou o humorista este domingo durante o programa.
Caso o jogador consiga fugir impune de todos os dejetos, ganha o jogo, surgindo no ecrã a seguinte frase: “Parabéns. Ganhaste. Graças a ti, o juiz ilibou mais um vil agressor. Boa!”
Caso o jogador seja atingido com os dejetos que vão caindo e perca as cinco vidas que tem, perde o jogo ao mesmo tempo que aparece no ecrã “Vemo-nos em tribunal, rabos!”, sendo depois possível jogar novamente.
Segundo revelou a TVI ao Observador, o Jornal das 8 foi o programa da televisão portuguesa mais visto deste domingo, alcançando 12,5% de rating e 25,5% de share, ligeiramente abaixo do dia em que se estreou “Gente que Não Sabe Estar”.
Ricardo Araújo Pereira: “Se o juiz continuar a escrever acórdãos destes, é natural que nós continuemos a falar dele”
Ricardo Araújo Pereira explica ao Observador, por escrito, como a equipa de Gente que não sabe estar chegou à ideia do jogo, que atraiu mais de 100 mil pessoas até provocar um crash no site, este domingo à noite. E brinca dizendo que a advogada está eufórica com a hipótese de um processo.
Como é que surgiu a ideia do “Salva o Neto”?
Foi como disse no programa. É um exercício de empatia. Pusemo-nos na pele do juiz e percebemos que não deve ser fácil ter a sociedade em peso a repudiar as nossas considerações sobre violência doméstica. Chega-se a casa sem ânimo para escrever acórdãos infames. E então desenhámos o jogo na toalha do restaurante em que estávamos a almoçar. Pelas nódoas, percebe-se que a ideia surgiu já depois do almoço, o que pode ajudar a explicar a subtileza e elegância do jogo.
Quem é que fez o jogo?
Foi um amigo nosso. Nós enviámos-lhe esta fotografia do desenho e ele lá fez aquelas feitiçarias informáticas. Neste momento não consigo contactá-lo, por isso não sei se ele quer que eu diga o seu nome.
Como conseguiram montar o jogo em tempo recorde?
Não sei, foi ele. A gente enviou a foto depois do almoço de sábado. Ao fim do dia ele já tinha o jogo feito. Informáticos não têm grande vida social, como sabe.
Quantas pessoas já entraram no site e jogaram?
Ontem, na altura do programa, por causa da grande afluência o site crashou, como se diz em linguagem técnica. Mas dizem-me que antes da meia-noite já quase 100.000 pessoas tinham jogado.
Perante o anúncio de Neto de Moura, que quer processar várias figuras públicas, vai usar advogado da TVI ou outro?
Não sei. A minha advogada está eufórica com a hipótese do processo. Parece que a vida de um advogado é muito chata e eu sou o Larry Flynt dela. Já nos temos divertido bastante em tribunais. Às vezes ela liga a lamentar o facto de eu já não me meter em sarilhos há muito tempo. Um beijinho, drª. Elsa!
Está com medo de uma eventual condenação e pedido de indemnização?
Não. Tenho a ideia de que vivemos em democracia e que só muito, mas mesmo muito excepcionalmente as opiniões são crime, sobretudo quando expendidas em contexto humorístico. Há muita gente interessada em restringir a liberdade de expressão e em atribuir uma autoridade inquestionável a qualquer pessoa que se declare ofendida. São idiotas úteis ao serviço do meritíssimo juiz, mas felizmente parece-me que são menos úteis do que idiotas.
O juiz Neto de Moura vai continuar a ser um dos alvos dos seus programas?
O programa não tem alvos, e nós não somos snipers justiceiros. O nosso trabalho é escrever piadas. Se o juiz continuar a escrever acórdãos destes, é natural que nós continuemos a falar dele. Mas não entendemos os processos como medalhas. Na verdade, são uma maçada (a intenção do juiz é, aliás, maçar e intimidar). Em princípio, nem comentamos os processos que recebemos. Desta vez foi diferente porque ele foi anunciá-los para a primeira página do Expresso. Aí, tornou-se um tema.
Juiz Neto de Moura: “É evidente que me sinto triste com toda esta situação e sinto-me abatido”
O juiz Neto de Moura, autor das polémicas sentenças em casos de violência doméstica, falou ao Observador esta segunda de manhã. “Os juízes não se sentem inteiramente livres de decidir”, afirmou. Garantiu que não viu o jogo online apresentado por Ricardo Araújo Pereira na TVI. Mas admite sentir-se “abatido”.
Gostava de o ouvir sobre a mais recente polémica que o envolve. Ontem num programa da TVI, foi apresentado um jogo sobre si… Viu o jogo?
Eu deleguei no meu advogado todos os comentários que pudessem ser feitos sobre essa questão. E a minha atitude tem uma razão de ser. É que eu acho que todos os pretextos vão servir para me perseguir disciplinarmente e eu tenho de manter o máximo de reserva. Falou-me aí num jogo que eu nem sei do que é que se trata…
É um jogo que foi apresentado ontem à noite por Ricardo Araújo Pereira, em que aparece a cara do juiz…
… Aparece a minha cara?
Exatamente. É um jogo que as pessoas podem jogar online… Desconhece a existência deste jogo?
Sim, desconheço, até porque este fim-de-semana estive ausente, e não tive acesso à internet.
Acha que não se deve fazer humor com a decisão que anunciou há dias de processar humoristas (e outros)?
A orientação quanto a esse ponto é também do advogado e eu aceito. Mas que fique bem claro: aceito perfeitamente que critiquem as minhas decisões, isso é um direito de qualquer cidadão, criticar as decisões dos tribunais. Agora, coisa diferente é atacar pessoalmente quem as profere. E só nessa base é que admito que essas pessoas sejam processadas. Porque quando há crítica saudável, legítima, fundada, não é para atacar pessoalmente as pessoas…
Tendo em conta toda esta reação dos humoristas e de toda a opinião pública ao anúncio de que vai processar várias figuras públicas, está arrependido de o fazer?
Isso tudo está entregue à orientação e à decisão do meu advogado. Dei-lhe carta branca para ir estudar o assunto, para ponderar o que é que devia ser feito, ele entendeu que deve ser assim e eu apoio totalmente. E aliás é isso que é o normal. Quando uma pessoa vê afetados os seus direitos, reage como? Recomenda a via judicial. Foi isso que eu fiz. Por que é que hão de ficar, não direi ofendidos, mas preocupados com isso? É normal. Recorre-se ao tribunal quando se vê os direitos lesados. Se o tribunal entender que foram lesados os meus direitos, eles serão condenados; se entender que não, serão absolvidos.
Mas não está arrependido de ir para a frente com essa decisão?
Não, o meu advogado decidiu que há fundamento para avançar com ações… Então eu estou inteiramente em sintonia com ele.
Quanto é que vai pedir de indemnização cível?
Olhe, não faço a mínima ideia. É evidente que isso para mim não é o essencial. O essencial é que efetivamente haja uma reparação do mal que me estão a causar. Qualquer pessoa normal reage assim. Quando uma pessoa vê os seus direitos lesados, reage. Não me preocupa minimamente se vou receber, se não vou… Isso é absolutamente secundário. Isso para mim não tem relevância nenhuma. Não é essa a questão essencial. A questão é que os meus direitos têm sido lesados de forma perfeitamente inadmissível e intolerável. Só não se sente quem não é filho de boa gente, não é?
Há alguém que lhe tenha manifestado apoio diretamente?
Com certeza, mas não vou estar a revelar isso. Porque são pessoas mais próximas… São pessoas que me conhecem, outras que não me conhecem. Tenho tido de pessoas que nem sequer me conhecem.
E como é que lhe têm feito chegar esse apoio?
Através dos contactos que as pessoas têm… Através de e-mails.
E têm-lhe manifestado desagrado diretamente? Ou tem sido só indiretamente?
Não… Pessoalmente não, não.
O Bloco de Esquerda já reagiu. Quer o seu afastamento, e chegou a dizer mesmo que o juiz é um insulto a todos os magistrados. O que acha sobre isso?
Não comento. Isso será tratado nas ações que vão ser intentadas.
Mas como é que vê esta reação de um partido, neste caso do Bloco?
Acha que isso está de acordo com aquilo que são os princípios base, os princípios elementares de um Estado de direito? Em que tem de haver a separação de poderes? Acha que essa é uma atitude que respeita essa separação de poderes?
Condena a atitude do Bloco de Esquerda, é isso?
Não condeno, eu faço a pergunta, se acha que isso é próprio de um Estado de direito. Os juízos que eu faço serão no âmbito das ações que vão ser intentadas. Esse vai ser o juízo que publicamente vai ser exposto. Agora, não tenho comentário nenhum em relação a isso. A não ser isso que lhe disse, que é… Quer dizer, toda a gente sabe que é um pilar fundamental num Estado de direito a separação de poderes, o poder político do poder judicial.
Luís Marques Mendes, no seu comentário deste domingo na SIC, elegeu-o como a pior figura da semana. O seu advogado disse-nos que não vai processar Marques Mendes. Por que é que vai processar humoristas e não vai processar Luís Marques Mendes? É por ser político?
Eu nem sequer ouvi o que o dr. Marques Mendes disse. Portanto tudo o que é avaliação dessas situações é o meu advogado que as faz. Não vou fazer comentário absolutamente nenhum.
Está arrependido da forma como escreveu os acórdãos que deram origem à polémica? Faria diferente se fosse hoje?
Esse é um ponto em que eu não transijo minimamente quanto a não me pronunciar sobre o caso. Pronunciar-me sobre o caso concreto é que nem uma palavra!
Vai autocensurar-se nas próximas sentenças que escrever sobre violência doméstica?
Já agora, posso pedir-lhe a sua opinião? O que é que acha? Acha que os juízes não ficam condicionados com tudo isto? Não ficam condicionados nas suas decisões? Acha que não há, digamos, um condicionamento, que os juízes não sentem receio com tudo isto? Eu acho que qualquer pessoa admite isso, não é? Que efetivamente com tudo isto os juízes não se sentem inteiramente livres de decidir.
Então terá consequências a nível profissional na sua vida, no futuro, é isso?
Eu digo em geral! Eu vou mais longe, digo que em geral ninguém pode dizer que se vai sentir inteiramente livre nas suas decisões, e em especial na respetiva fundamentação. Vai ter de medir n vezes as suas palavras.
E vai ter consequências também pessoais? Como é que se sente em relação a toda esta polémica?
As consequências pessoais… É evidente que eu não posso sentir-me bem. É evidente que isto provoca mossa. É evidente que me sinto abatido. É evidente que me sinto triste com toda esta situação e sinto-me indignado. Não podia sentir-me de outra maneira, com os ataques pessoais. Repare. Eu friso bem: há decisões que são não só legítimas como bem-vindas. Agora há que distinguir a crítica do ataque pessoal. E em relação ao ataque pessoal é que eu vou reagir.
Juiz Neto de Moura vai processar humoristas, jornalistas e políticos
Teme que a forma como escreveu as suas sentenças e toda a polémica em volta disso desincentive as vítimas de violência doméstica de apresentarem queixa?
Se há situação em que tivemos uma melhoria clara é em relação a isso. Agora as relações familiares são muito mais transparentes e há, penso eu, um sentimento de que as queixas, as denúncias apresentadas, já não caem em saco roto. E a vítima já não é encarada como alguém que só está a pôr em causa o casamento. Acho que efetivamente esse é um ponto positivo, não é? É o de que essas situações deixaram de… as chamadas cifras negras nessas situações diminuíram consideravelmente. Aquelas situações que não chegam ao conhecimento dos tribunais… Isso diminuiu consideravelmente. Portanto, quanto a isso não tenho dúvidas nenhumas…
Mas as vítimas não se poderão sentir inibidas de apresentar queixa por causa das sentenças que causaram polémica?
Não, eu acho que é pelo contrário. Enfim, isto veio tornar ainda mais transparente, mais pública, digamos assim, essa situação. Porque, acho eu, as vítimas vêem que efetivamente o seu caso é analisado. Agora, se é bem analisado ou não, isso depende da perspetiva.
O seu advogado disse no Facebook que as feministas são, e passo a citar, “lambedoras de cricas”. Quando escolheu o seu advogado sabia que ele tinha escrito estas palavras?
Não me pronuncio sobre isso. Isso é uma questão que o meu advogado, penso eu que já esclareceu, e não me vou pronunciar sobre isso.
Leu o que o advogado Francisco Teixeira da Mota escreveu recentemente no Público sobre si?
Não… Não li, não faço a mínima ideia.
O advogado disse, muito resumidamente, que é preciso perceber quem é Neto de Moura, onde cresceu, onde estudou, o seu meio familiar… Sofreu algum desgosto amoroso que pudesse influenciar a forma como escreveu as sentenças?
Desgosto amoroso? Desgostos amorosos, acho que quase todos temos, não é? Mas não tem rigorosamente nada a ver com isso.
Advogado do juiz: jogo “é só mais uma das vias que foram usadas para o ofenderem”
Já o advogado de Neto de Moura, Ricardo Serrano Vieira, admite ter visto o jogo “Salva o Neto”, considerando que este “é só mais uma das vias que foram usadas para ofenderem” o juiz. Em declarações ao Observador esta segunda-feira, o advogado adianta que está a “analisar esse episódio”, que “muito provavelmente” deverá ser incluído “naquilo que já está a ser feito”, referindo-se assim às ações que vai interpor em tribunal contra várias figuras públicas: “Em princípio iremos pôr as ações judiciais até ao final do mês de março”.
Ricardo Serrano Vieira explica ainda que “a ideia aqui é” fazer do juiz Neto de Moura “a imagem da violência doméstica, a imagem de todos os agressores, como se fosse ele o responsável por todos os crimes de violência doméstica que acontecem em Portugal”. O advogado de Neto de Moura considera que “foi retirada alguma coisa boa” da polémica que envolve o magistrado e dois acórdãos relacionados com violência doméstica: “Alguma coisa boa já se retirou desta polémica toda desde 2017, que foi usar o caso do juiz Neto de Moura para voltar a falar de um flagelo nacional que é a violência doméstica; conseguiu-se com isto, pelo menos, trazer a palco a discussão”.
Sobre o facto de, no seu habitual espaço de comentário, na SIC, Luís Marques Mendes ter elegido o juiz Neto de Moura como a pior figura da semana, Serrano Vieira respondeu que não o vai incluir na lista de pessoas a processar: “O comentário que foi feito, esse sim, é que é liberdade de expressão e nós respeitamos isso. Não foi ofensivo”, explica.
Catarina Martins “nada preocupada” com processos de Neto de Moura
Quanto ao Bloco de Esquerda, que quer afastar o juiz Neto de Moura da magistratura, o seu advogado diz que vê o caso “com muita apreensão” e evoca, também na mesma linha do seu cliente, a separação de poderes. “Nós vivemos num Estado de direito democrático, onde existe a separação de poderes entre os diversos órgãos de soberania, e vejo a posição do Bloco com muita preocupação. Porque acho que é uma clara violação deste princípio.”
O advogado Ricardo Serrano Vieira disse ainda que, tendo em conta “a intensidade dos ataques pessoais” contra Neto de Moura, em alguns deles “nota-se claramente que são feitos por quem nem sequer leu as decisões”, acrescentando que “leram, se calhar, apenas excertos dessas decisões e tiraram a interpretação que quiseram e depois a partir daí fizeram os comentários que fizeram.”
Entretanto, segundo noticiou o Público na tarde desta segunda-feira, deverão ser os contribuintes portugueses a pagar as despesas associadas aos processos que o magistrado pretende instaurar por ofensas à honra pessoal e profissional. Em causa está o regulamento das custas processuais, que prevê a isenção do pagamento de despesas nos casos em que estejam envolvidos magistrados em ações que digam respeito ao exercício das suas funções.
Estão ainda a circular várias petições assinadas por anónimos e figuras públicas a pedir o afastamento do juiz Neto de Moura. De acordo com o site peticaopublica.com, existem oito iniciativas relacionadas com o magistrado.
A petição com o maior número de assinaturas até à data de publicação deste texto — com 28.671 mil assinaturas — chama-se “Essa Mulher Somos Nós”, sendo subscrita, entre outras entidades e figuras, pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), a Capazes Associação Feminista, as deputadas socialistas Catarina Marcelino e Isabel Moreira e a jornalista Fernanda Câncio.
No texto desta iniciativa, que cita excertos de acórdãos redigidos por Neto de Moura, os subscritores falam em “violação do princípio da igualdade”, “acórdãos problemáticos” e pedem ao Conselho Superior de Magistratura que inclua formações para magistrados sobre igualdade de género, que abra um inquérito contra, entre outros, o juiz desembargador Neto de Moura, ou recomenda ao mesmo órgão e ainda ao Ministério da Justiça que promovam “a publicação de todas as decisões” dos Tribunais Superiores “transitadas em julgado”.