Ricardo Araújo Pereira é um dos mais conhecidos ateus do país. Apesar de todo o seu percurso escolar ter sido feito em escolas religiosas — um colégio de freiras vicentinas, um colégio franciscano, um colégio jesuíta e a Universidade Católica —, o humorista não acredita em Deus. Porém, é um ateu fascinado com Deus, com a Bíblia e com as religiões. É frequente ouvi-lo falar em público sobre a história da religião e sobre a possibilidade de o humor e a religião serem respostas paralelas às grandes questões da humanidade: porque existimos, onde estamos, quem somos, de onde vimos, para onde vamos, porque sofremos, o que é isto de existir e de ser humano?
Em O que é que eu estou aqui a fazer?, novo livro editado pela Tinta-da-china que chega às livrarias na próxima quinta-feira (17 de outubro), Ricardo Araújo Pereira conversa com o jornalista do Observador João Francisco Gomes sobre Deus, a fé, o humor e a morte. Ao longo de cinco conversas e quase 300 páginas, os autores exploram o debate filosófico sobre os argumentos para a existência de Deus, a relação entre a religião e o riso e a inevitabilidade da morte. O padre João Basto, professor e formador no seminário de Viana do Castelo e colunista do Observador, é convidado de uma das conversas, para debater os pontos de contacto entre a comédia e a teologia.
O livro inclui ainda um prefácio assinado pelo poeta e cardeal português José Tolentino Mendonça, atual prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação da Santa Sé. “Como crente, fez‑me bem ler este livro que dá voz a um homem que se assume ateu”, escreve Tolentino Mendonça, sublinhando o “respeito pela posição ateia de Ricardo Araújo Pereira” e assegurando: “Nela pode existir certamente um elevado padrão moral, uma busca sincera da verdade ou até formas de espiritualidade. Revejo‑me em particular nisso que afirma sobre não ser indiferente morrer com a consciência de ter procurado o bem em vez do mal. Como nos demonstram as sociedades plurirreligiosas e interculturais em que vivemos, tantos diálogos fecundos são possíveis entre crentes e não‑crentes.”
O Observador pré-publica aqui dois excertos do livro, um retirado do primeiro capítulo (em que RAP fala sobre a sua educação católica e explica o episódio que dá título ao livro) e outro do quinto (em que o humorista recorda a experiência de participar num congresso de humoristas organizado pelo Papa no Vaticano).
I. O que é que eu estou aqui a fazer?
Lisboa, 21 de dezembro de 2023
Para satisfazer a curiosidade de uma turma de adolescentes do 8.º ano, o padre Manuel, professor de Religião e Moral no Externato da Luz, colégio franciscano na cidade de Lisboa, promove uma iniciativa entre os alunos: cada um tem direito a duas perguntas anónimas; basta escrevê‑las num pequeno pedaço de papel e colocá‑las num chapéu. O padre compromete‑se a retirar do chapéu todos os papéis e a responder a todas as perguntas que de lá saírem.
Estamos no final da década de 1980. Sem surpresas, uma boa parte das questões é sobre os tabus que mais interessam a adolescentes de 13 e 14 anos, com especial destaque para o sexo e a masturbação.
Subitamente, porém, há uma pergunta que se destaca: «O que é que eu estou aqui a fazer?»
No milésimo de segundo em que o padre Manuel acaba de ler a pergunta, a turma irrompe numa estrondosa gargalhada. Embora o jovem autor da pergunta se tenha tornado, anos depois, num dos maiores comediantes do país, naquele momento, o seu objetivo não é provocar o riso. A pergunta traduz uma genuína inquietação existencial: quem sou? O que faço aqui? Para onde vou? Para que serve tudo isto? Só quando o padre Manuel lê a segunda pergunta do pedaço de papel é que tanto o sacerdote como o resto da turma compreendem que aquilo não era uma piada para embaraçar o professor: «Porque é que nascemos se, depois, temos de morrer?»
Mais de três décadas depois, Ricardo Araújo Pereira recorda o episódio como um dos momentos que contribuíram para moldar o seu destino: não se lembra das respostas do padre Manuel, mas lembra‑se do som da gargalhada dos colegas.
Na nossa primeira conversa, o humorista fala dos anos que passou em três escolas católicas e das memórias da avó, conta como desenvolveu um fascínio pela Bíblia, assume que continua à procura das respostas às questões existenciais que rabiscou naquele pedaço de papel, relata os fundamentos do seu ateísmo, discute a construção de um quadro de valores sem Deus e cita com a mesma convicção versículos bíblicos e clássicos da literatura.
«Nunca fui, de maneira nenhuma, tocado pela graça»
JOÃO
O Ricardo fez a escola primária num colégio de freiras vicentinas, estudou num colégio franciscano e num colégio jesuíta e licenciou‑se na Universidade Católica. Portanto, todo o seu percurso escolar e académico foi feito no contexto da Igreja Católica. Como é que esses anos moldaram a sua relação com a fé?
RICARDO
Eu não tenho fé, como sabe. Mas eu não sou ateu por causa disso. As pessoas, às vezes, precipitam‑se para concluir que, se calhar, o contacto áspero com aquela realidade foi uma espécie de vacina. Não é verdade. Eu sou ateu apesar disso — tenho as melhores recordações desse tempo.
O primeiro colégio de todos é um colégio de freiras vicentinas, onde fiz a pré‑primária e a primária. Esse colégio ainda existe e as instalações são partilhadas com um lar de idosos. No recreio, conseguíamos ver os velhotes e isso era propositado: eles achavam que o encontro das gerações, o facto de os velhotes ouvirem risos de crianças e brincadeiras, lhes fazia qualquer coisa; e o facto de as crianças estarem num sítio onde também há idosos era benéfico. As freiras eram muito queridas. Era o colégio de São Vicente de Paulo. Tenho a impressão de que aquele sítio é um antigo convento e há uma lenda relacionada com aquilo — foi fundado há bastante tempo.
O colégio era dirigido pelas irmãs. A minha professora da 3.ª e da 4.ª classes era a irmã Joaquina. Não eram todas religiosas, porque, além das irmãs, havia algumas professoras que não eram religiosas, e as auxiliares também não eram. As auxiliares eram tratadas por «menina Angelina», «menina Gertrudes», «menina Adelaide».
JOÃO
E havia um ritmo religioso no colégio?
RICARDO
Havia um ritmo religioso. A minha formação religiosa começa ali: volta e meia, uma das irmãs vinha buscar‑nos, saíamos da aula e íamos ver, por exemplo, uns slides. Se bem me lembro, eram slides animados da vida de Jesus. Por exemplo, os discípulos de Emaús.
JOÃO
Um clássico.
RICARDO
Um clássico. Foi ali que o conheci, em desenhos projetados na parede. As irmãs estavam, evidentemente, muito impressionadas e muito empenhadas em transmitir‑nos aquela ideia de que os discípulos de Emaús tinham visto o Senhor ressuscitado.
JOÃO
E qual era a sua atitude perante essa história?
RICARDO
A minha atitude era de maravilhamento, de fascínio. Mas de fascínio no mesmo sentido em que ficaria fascinado se os slides fossem sobre os trabalhos de Hércules. Era de fascínio não só pela história, mas pelas próprias palavras, os nomes: Emaús. Havia ali um universo, um ambiente muito estranho.
JOÃO
Exótico…
RICARDO
Exótico, exatamente, e uma solenidade. Repare, eu sei as orações.
JOÃO
Era algo que tinha de fazer no colégio? Rezar antes das aulas?
RICARDO
Rezar antes das aulas não creio. Mas, no Externato da Luz, que era um colégio de franciscanos, sem dúvida que rezávamos antes do almoço. Ainda me lembro: «Abençoai, Senhor, o alimento que vamos tomar; recuperai as nossas forças para melhor vos servir e amar.» Dizíamos isto antes de cada refeição.
JOÃO
No Externato da Luz, onde esteve depois da primária.
RICARDO
Do 5.º ao 9.º. A escola das freiras acaba na 4.ª classe e os meus pais acharam que o Externato da Luz era uma boa hipótese para colégio seguinte. As freiras recomendaram‑me aos padres; foi a sequência natural. O Externato da Luz acaba no 9.º ano e os franciscanos recomendaram‑me aos jesuítas, que me aceitaram do 10.º ao 12.º. Depois, entrei na Católica.
JOÃO
Esse percurso nas escolas católicas foi vivido de forma paralela a um percurso de fé na família? Não fez a catequese, por exemplo?
RICARDO
Havia catequese na escola das freiras e isso não chocava os meus pais. E acho bem que não tivesse chocado. Gostei imenso, devo dizer. Tive esse primeiro contacto com as freiras vicentinas, que eram muito queridas. Depois, fui para o Externato da Luz, que é de padres franciscanos. Os franciscanos também têm uma índole particular, acho eu. O padre Joaquim Lourenço, que era o meu professor de Português; o padre Manuel… A maior parte dos professores não eram padres, mas havia vários padres que também eram professores. O lema do Externato da Luz é «Paz e Bem». O lema do Colégio São João de Brito é «Educar para Servir». Esses são jesuítas, que também têm uma índole peculiar, que é diferente da dos franciscanos.
Os franciscanos têm aquela coisa da pobreza, aquele hábito castanho com uma corda; os jesuítas têm uma vocação, uma inclinação para o estudo muito acentuada. Fiquei muito satisfeito — não sendo nada comigo, porque não sou católico — quando o Papa, que é um jesuíta, escolheu o nome «Francisco» por causa de São Francisco de Assis. Se ele tivesse uma freira vicentina como auxiliar, toda a minha vida de contacto com a religião estava concentrada naquele Papa. Acho isso curioso, porque a mistura dos franciscanos com os jesuítas produz um efeito que me parece interessante.
JOÃO
É um programa de governo para a Igreja que ele apresenta só por escolher esse nome.
RICARDO
É um programa, é isso mesmo.
JOÃO
Numa entrevista à Agência Ecclesia, que é a agência de notícias da Igreja Católica em Portugal, evocou muitas vezes a sua avó como referencial familiar para as questões da fé. Descreveu a fé da sua avó como um «catolicismo popular», «muito longe de ter um pensamento teológico sofisticado», marcado pela ideia de que «no fim da vida há uma espécie de exame, que quem passa é recompensado e quem não passa é castigado» e por uma «noção de culpa e de pecado». Esta foi a primeira versão da fé com a qual contactou? E contrastava, de certa forma, com a versão da fé que lhe apresentavam nessas escolas?
RICARDO
Digamos que não contrastava. A versão da fé que me era apresentada na escola, apesar de ser outra coisa, não era uma fonte de perplexidade. Eu não dizia: «Espera aí, na escola aprendo uma coisa, mas a minha avó pratica outra.» Na verdade, ela não praticava outra.
JOÃO
Para contextualizar: estamos a falar das décadas de 1970 e 1980, pouco depois do Concílio Vaticano II. Portanto, a sua formação nessas escolas terá sido já marcada pelas controvérsias da aplicação do concílio, enquanto a sua avó, imagino, tinha a visão de uma Igreja pré‑conciliar.
RICARDO
Acredito que sim. Na escola das freiras vicentinas, na parede, estava uma fotografia do Paulo VI, que deixou de ser Papa em 1978. Eu nasci em 1974 e aos quatro anos já ia para lá. Depois veio o João Paulo I, que foi um mês, e depois o João Paulo II. Apanhei aquele período em que ainda era o Paulo VI que estava na parede.
JOÃO
Com todo este contexto, em criança, nunca aderiu ativamente a uma forma de fé?
RICARDO
Não. Isso nunca esteve presente. No livro O Reino, de Emmanuel Carrère, há um episódio engraçado em que ele diz que tem um amigo com quem estava a falar sobre alguém que tinha recebido o chamamento. O amigo rezava todas as noites para que Deus não o chamasse assim tanto. Ou seja, queria alguma fé, mas não muita, no sentido em que ele não queria ir para padre e não queria ser assim tão tocado pela graça; eu nunca o fui, de maneira nenhuma. O que é, provavelmente, a marca de uma pessoa especialmente profana.
Para responder à sua pergunta. É uma boa definição: a minha avó era praticante de um «catolicismo popular». Ela tinha a 3.ª classe e, portanto, tinha dificuldades em ler. Não havia uma Bíblia em casa da minha avó. Ela ia à missa de vez em quando, mas não ia à missa todos os domingos. Depois, vi fiéis desses, que vão à missa todos os domingos. Não era o caso da minha avó, mas ela rezava todos os dias. Vi‑a a mexer os lábios. Encarava as coisas nesse sentido. A fé, para ela, não sei se era exclusivamente isto, mas era em grande medida isto: a ideia de que temos de nos portar de uma determinada maneira, de que se espera de nós um determinado comportamento, de que umas coisas são pecado e outras não, de que os pecados contam porque no fim há o tal exame.
JOÃO
Faz‑se a lista…
RICARDO
Exatamente. Vão fazer a conta e «olhe, o senhor tem isto para pagar».
JOÃO
E, em criança, essa visão da fé não ressoava em si.
RICARDO
Não. Eu tinha alguma admiração por aquele modo de viver, porque é um modo de viver que implica uma pessoa impor a si mesma muitas restrições. A minha avó nasceu em 1920. Quando ela tinha 39 anos, no máximo, o meu avô morreu em São Paulo. Eles tinham emigrado para o Brasil e viviam em São Paulo, e o meu avô morreu. Num certo sentido, a vida dela acabou ali também.
JOÃO
Tornou‑se uma viúva.
RICARDO
Exatamente, é uma viúva. Acabou. Não volta a casar, era impensável voltar a casar! Vestida de preto. Os meus tios, irmãos dela ou casados com irmãs dela, nas reuniões familiares, quando chegava aquela parte em que já se está nos digestivos, a chorar, diziam: «A Adélia é uma mulher incrível, é uma coisa espantosa.» Elogiavam essa postura. Isso não é apenas uma tradição ou um conservadorismo de quem nasceu em 1920: também tem uma base religiosa. Mesmo a ideia de que uma viúva é séria, na dupla aceção da palavra — honesta e circunspecta —, e de que o riso não é admissível, porque indica uma falta de respeito pela solenidade da situação que ela vivia, era muito presente. E também condizia com a solenidade que eu encontrava na escola sempre que o tema era a fé.
(…)
V. Ir para lugar nenhum
Lisboa, 11 de julho de 2024
O que acontecerá quando morremos? Quando fecharmos os olhos pela última vez, o que veremos no escuro? Quando a nossa carne apodrecer inevitavelmente na terra, aquilo que somos além de um corpo sobreviverá de alguma forma? Ou será o fim definitivo e total de tudo o que fomos? É possível que esta questão inquiete ainda mais pessoas, e de forma ainda mais profunda, do que o problema do mal: a alma, o espírito ou a consciência são alguma coisa à parte do corpo, capaz de fazer o seu caminho após a morte física?
As ideias clássicas de Céu e Inferno são manifestamente insuficientes para muitos de nós: não será possível reduzir a vida humana a uma espécie de exame que nos conduz à recompensa ou ao castigo. Por outro lado, o nada também não nos chega. À partida, parece impossível de definir. O que é o nada? Um lugar escuro, vazio, silencioso e parado, mas que, ainda assim, podemos experimentar com os sentidos? Ou é um nada que nem sequer podemos captar? Seremos sequer capazes de conceber aquele plano de não‑existência em que estávamos antes de ter nascido?
A resposta mais honesta a todas estas questões será, necessariamente, um humilde «não sei». As religiões propõem algumas explicações, mas entregam a maioria das respostas ao mistério e à esperança de que, um dia, saberemos a verdade. Até lá, estas dúvidas não deixarão de nos inquietar. É que a condição humana traz consigo um problema maior do que a morte: o conhecimento da morte. Podemos argumentar que pior do que morrer é saber que se vai morrer.
Estas angústias afetam mais um crente ou um ateu? A religião pode oferecer algum conforto a quem não crê? Um crente pode aprender de um ateu alguma coisa sobre o sentido da vida? E qual o lugar do humor em tudo isto? Na última conversa, falamos longamente sobre a morte e sobre o fim inevitável de todos nós — mas também sobre um congresso mundial de humoristas nos palácios do Vaticano.
«Podemos rir de Deus? Claro que sim»
JOÃO
Tínhamos combinado que esta última conversa seria sobre o tema último.
RICARDO
Exato, o tema último. Que é o último e o primeiro. É central nisto tudo, nesta nossa conversa.
JOÃO
Que é a morte. Mas não queria deixar passar o facto de, desde o nosso último encontro, por extraordinária coincidência, o Papa Francisco ter convidado o Ricardo para ir ao Vaticano: a nossa última conversa foi no dia antes de o Ricardo apanhar o avião para Roma. Como é que isso aconteceu? Ficou surpreendido com esse convite?
RICARDO
Sim. Só não fiquei mais surpreendido porque estamos em 2024 e, portanto, já é relativamente normal haver uma abertura, da parte do Vaticano, para convidar pessoas que estão na dupla, tripla ou quádrupla condição de abjeção em que eu me encontro: o ateísmo, o facto de ser humorista… Há várias coisas que me desqualificariam.
JOÃO
Mas como é que aconteceu? Recebeu uma carta?
RICARDO
Não, o padre Tolentino mandou‑me um SMS. A Joana Marques já me tinha dito, porque à Renascença aquilo chegou primeiro e a Joana disse‑me que havia esse convite. Éramos nós e mais uma pessoa, que depois descobrimos que era a Maria Rueff. Foi muito engraçado. Fiquei com a sensação de que o Ricky Gervais tinha sido convidado e tinha recusado; ele é um conhecido ateu, como eu, mas devo dizer que não tinha razão nenhuma para recusar.
JOÃO
Aliás, muitos seriam ateus, outros cristãos, outros de outras religiões.
RICARDO
Por acaso, fiquei ao lado do Stephen Colbert, que é católico e nunca escondeu isso, e que levou a irmã. Fiquei entre o Chris Rock e o Stephen Colbert.
JOÃO
Isso é extraordinário.
RICARDO
Sim, sim. Na véspera, percebi porquê. Fomos a um jantar e um senhor padre muito simpático de Guimarães, jovem, que é uma espécie de assessor do padre Tolentino e ajudou a organizar aquilo, disse‑me duas coisas: primeiro, que tinha idade para ter visto e ser fã dos Gato Fedorento. Essa primeira informação justificava a segunda: «Fui eu que destinei os lugares e, por isso, pus as pessoas mais conhecidas à frente.» Ele achou que as pessoas mais conhecidas eram Chris Rock, eu, Stephen Colbert, e atrás de mim estava o Conan O’Brien.
JOÃO
Portanto, menos conhecido.
RICARDO
Provavelmente, ligeiramente menos, talvez. Mas eu estava ali num núcleo muito bizarro de pessoas. Foi muito divertido. Devo dizer que o Stephen Colbert foi aquele com quem contactei mais e foi o mais simpático de todos, não só no sentido em que estava a conversar comigo como se fôssemos velhos conhecidos, mas também porque não estava a interiorizar o facto de ser uma estrela planetária.
No fim de o Papa dizer o que tinha a dizer — já lá iremos —, as pessoas formaram ordeiras filas para ir cumprimentar o Papa. Estava lá um senhor a organizar: agora esta fila vai falar com o Papa, agora esta vai cumprimentar. Eram 200 pessoas para cumprimentar. Depois, voltámos a sentar‑nos e o Stephen Colbert disse: «Eh pá, sabes, entusiasmei‑me e aconteceu‑me uma coisa engraçada. Apertei a mão ao Santo Padre e disse‑lhe: ‘Santo Padre, na sua autobiografia, no audiolivro em inglês, sou eu que faço a voz.’ E o Papa faz‑me assim: ‘Ah… [enquanto se vira para o próximo da fila]’.» Como quem diz: eh pá, tenho mais 200 pessoas para cumprimentar, estou‑me cagando para o audiolivro e para a tua voz, pá, sai daqui, já é uma sorte teres sido convidado!’ E ainda estivemos a rir bastante sobre esse episódio.
Entretanto, escrevi sobre isto para o Expresso. Cá fora, quando ainda estávamos a pensar sobre o que seria aquilo, o Fábio Porchat diz: «O que é que achas? Porque é que nos terão convidado?» E eu disse: «Há 500 anos, era para nos cortarem a cabeça. Hoje… Estava a tentar inspirar fundo a ver se alguém já tinha começado uma fogueira, mas não me cheira a nada. Em princípio, estamos seguros.» Mas confesso que não estava à espera de assistir a um momento histórico — e não sei se isso foi suficientemente sublinhado. Não sei quantas vezes é que as palavras «Podemos rir de Deus? Claro que sim» foram ditas no Vaticano. Só isso já seria notável. Mas por um senhor que é o Papa? Por muito que essa frase estivesse almofadada pelo que vinha antes e pelo que vinha a seguir…
JOÃO
Pois, é isso. Devíamos falar um pouco sobre o discurso do Papa.
RICARDO
Mas por muito que viesse almofadada pelo que vinha antes e pelo que vinha a seguir, a frase «Podemos rir de Deus? Claro que sim» estava lá. E isso não é uma coisa que se ouça todos os dias
JOÃO
Não achava que ia ouvir essa frase?
RICARDO
Não, não achava que ia ouvir essa frase.
JOÃO
O discurso foi, todo ele, um elogio ao humor. Passaram uma manhã com o Papa?
RICARDO
Nós tínhamos de estar às 6h45 da manhã numa porta. Entretanto, vamos percorrendo aqueles corredores que vão dar à sala onde nos encontrámos. Ainda cá fora, vamos passando por um sítio em que, olhando lá para dentro, percebemos que é a Capela Sistina. Ao passarmos por esses sítios, os americanos, especialmente, estão maravilhados com tudo. A Julia Louis‑Dreyfus estava comovida, não só porque tinha levado uma saia que não lhe permitia subir escadas e teve de subir bastantes, mas estava muito impressionada com tudo. Estava dentro de edifícios que têm três ou quatro vezes mais idade do que o país em que ela vive.
Estavam todos muito impressionados com aquele momento e com o cenário, que era, de facto, impressionante. Duzentos humoristas, vou sublinhar isto. Eu costumo rebelar‑me contra a ideia de que o humor é uma coisa menor: para mim, é uma coisa importantíssima. Mas, ao mesmo tempo, reivindico a ideia de sermos reles. Portanto, gente reles no Vaticano é uma coisa imediatamente cómica. Palhaços no Vaticano é evidentemente cómico. Os americanos, sobretudo, estavam de boca aberta com todas as coisas.
JOÃO
Para alguns, se calhar, era a primeira vez que ali estavam. Não necessariamente em Roma, mas com aquele acesso.
RICARDO
Com aquele acesso certamente. É possível que até fosse, para alguns deles, a primeira vez no Vaticano. Não sei quantas vezes é que a Julia Louis‑Dreyfus e o Chris Rock foram ao Vaticano.
JOÃO
Sentiu uma certa, digamos, sensação de classe? Estavam ali duzentos da sua profissão, parecia um congresso.
RICARDO
Exatamente, parecia um congresso mundial.
JOÃO
Nunca tinha estado numa situação dessas, com tantos?
RICARDO Não. E isso acrescenta graça àquele momento: o facto de esse congresso decorrer naquele recinto. Lá percorremos aquilo. O processo tinha acreditações, era relativamente moroso, e o percurso entre a porta e a sala em que íamos encontrar‑nos ainda levou algum tempo a ser percorrido. Depois, sentámo‑nos na sala e informaram‑nos do seguinte: o Papa está com a comitiva do presidente de Cabo Verde; quando acabar a sua audiência com o presidente de Cabo Verde, são vocês. E pronto, estivemos à espera um bocado.
JOÃO
Duzentos humoristas numa sala solene do Vaticano.
RICARDO
Solene, vetusta, com tetos ricamente pintados. À espera. Jimmy Fallon, àquela hora da manhã, não sei se estava ainda tocado ou já tocado. Não sei exatamente se o pequeno‑almoço dele tinham sido três ou quatro garrafinhas do minibar ou se ele ainda trazia esse rasto. Portanto, estava a comportar‑se de uma forma que os próprios colegas, alguns deles católicos, como o Jim Gaffigan, lhe diziam: «Eh pá, senta‑te, está quieto.» O Chris Rock viu isso e, como uma criança, pensou: «Ai estamos a ser iconoclastas? Então espera aí.» E pôs a tocar no seu iPhone os célebres versos «I like big butts and I cannot lie», de Sir Mix‑a‑Lot. Mas foi apenas uma coisa que durou segundos.
Depois, saiu a comitiva de Cabo Verde. Eu conheço o presidente e a primeira‑dama de Cabo Verde, porque tenho uma casa numa ilha cabo‑verdiana. Vou umas cinco ou seis vezes por ano a Cabo Verde, que é uma espécie de segunda pátria. Tenho de ver se arranjo maneira de ter uma segunda nacionalidade, porque estou sempre a ir lá. Então, os nossos olhares cruzaram‑se e, depois, recebi uma mensagem da primeira‑dama a dizer: «Ricardo, não sabia que estavas lá!» E eu respondi que também não sabia que Cabo Verde ia lá estar, portanto senti a minha segunda pátria ali. E ela: «E nós sentimo‑nos representados por ti.» Tive alguns momentos místicos. Esse foi um e o outro foi tirar fotografias e ter essas interações, lá está, com Stephen Colbert, Chris Rock, Conan O’Brien…
JOÃO
Foi a primeira vez que esteve com eles?
RICARDO
Foi a primeira vez, com certeza. E há de ser a última, em princípio. Depois, abre‑se a porta e aparece o Papa. E Chris Rock, ao meu lado, faz «UAAAU!» — muito alto — por ver o Papa, que vinha com alguma dificuldade em locomover‑se. Sentou‑se e fez o discurso.
JOÃO
Deixe‑me tocar aqui nas palavras dele, que foram de elogio aos humoristas e ao humor. Disse, por exemplo, que os humoristas estão «entre os poucos que têm a capacidade de falar com pessoas muito diferentes, de gerações e origens culturais diversas», que unem as pessoas através do riso «contagioso», que ajudam a «construir uma cultura partilhada e a criar espaços de liberdade».
Há até um momento muito interessante, em que ele vos dá um papel existencial, quando diz que «o Homo sapiens é também Homo ludens» e que «o divertimento lúdico e o riso são fundamentais para a vida humana, para nos expressarmos, para aprendermos, para darmos significado às situações». Isto fê‑lo sentir‑se orgulhoso da sua profissão? O que é que o fez pensar?
RICARDO
Eu já pensava isso. Acho que há aqui uma fronteira entre eu ter orgulho naquilo que faço e achar que aquilo que faço tem uma dimensão de nobreza. Ou seja, que o ato de fazer rir as outras pessoas é bastante mais nobre do que as pessoas costumam pensar. Sempre que alguém me pergunta — normalmente são jornalistas que vêm e querem que eu valide a ideia que trazem de casa — se, especificamente por fazer o programa que faço, tenho poder político, tenho uma resistência enorme em admitir isso. Primeiro, porque estou convencido de que é falso. Segundo, porque eu não quero responsabilidade nenhuma. A irresponsabilidade é decisiva nisso. Eu teria responsabilidade se aquilo que eles dizem se verificasse. Ou seja, se eu tivesse o poder que eles imaginam que tenho — e eles imaginam que eu tenho o poder, por exemplo, de condicionar atos eleitorais…
JOÃO
Dão sempre o exemplo do referendo ao aborto.
RICARDO
Exatamente. Sem nenhuma prova. Não houve nenhuma sondagem anterior de pessoas que disseram que iam votar «não» e uma sondagem posterior de pessoas a dizer: «Mas vi aquele sketch de um minuto e 55 segundos daquele rapaz e mudei de opinião.» Não há prova nenhuma. São sensações e impressões. Todos os estudos, aliás, dizem outra coisa — estudos sobre o fenómeno em si, não especificamente sobre o aborto.
O título do meu podcast é «Coisa que não edifica nem destrói». Quando o Machado de Assis põe o Brás Cubas a dizer isso sobre as suas memórias — «uma coisa que não edifica nem destrói» —, termina dizendo: «Mas que é mais do que passatempo e menos do que apostolado.» Acho que isso é ótimo. É o sítio exato onde está. De facto, é mais do que passatempo e é menos do que apostolado. As pessoas que acham que é um apostolado já passaram a fronteira e estão a fazer‑se maiores do que são, coisa que o humorista se costuma policiar para não fazer; as pessoas que acham que é apenas um passatempo também estão erradas, porque é um pouco mais do que isso.
JOÃO
Então, tendo isso em conta, como é que lê estas palavras do Papa? Ele vai um pouco além: diz que os humoristas são fundamentais para a vida humana, que ajudam a construir uma cultura partilhada e a criar espaços de liberdade, que têm a capacidade de falar com pessoas diferentes. Há um objetivo, uma capacidade do humor.
RICARDO
Eu não sei se ele diz isso apontando um objetivo ou verificando uma consequência de fazer isto. Isso também é interessante, porque a ideia do riso como um bem — ou como uma virtude, até — também não é antiga na história da Igreja. Teve muitos detratores, como temos visto ao longo destas nossas sessões. Portanto, também não é assim tão frequente ouvir essa ideia naquele âmbito, vinda de gente da Igreja.
Repare: eu tenho 50 anos. Dos padres que me educaram, quantos deles é que diriam isto sobre o riso? Algumas dessas coisas, por exemplo, que é um fenómeno gregário: é por isso que os programas humorísticos ou são filmados à frente de um público, ou lhes acrescentam umas gargalhadas. O riso é contagioso. É um fenómeno social: provavelmente, em casa, se vir um espetáculo de stand‑up, não rio nenhuma vez, e riria se estivesse numa plateia com aquele ambiente.
A própria ideia de ser transversal também é curiosa e verdadeira. Primeiro, porque o riso dá prazer. Segundo, quanto menor for o grupo e melhor o conhecermos, mais facilmente o fazemos rir. Em princípio, sabe o que faz rir os seus amigos e a sua família. Sabe que, na mesa de Natal, se disser uma determinada coisa, isso vai produzir um resultado. Agora, um país inteiro? O planeta? Por isso é que o Chaplin e outros são admiráveis: por arranjar maneira de fazer rir uma plateia mesmo muito vasta…
(…)