Enquanto escuta as perguntas que lhe são colocadas, Ricardo Araújo Pereira tira notas. O que escreve é indecifrável, fica a dúvida se é um método de raciocínio ou se é tique de quem é pivot de noticiário na televisão. Como o próprio diz, ao domingo à noite, “a seguir ao Rodrigo Guedes de Carvalho, aparece um tipo que está vestido como o Rodrigo Guedes de Carvalho, sentado como ele, mas que está a dizer coisas radicalmente diferentes”.
Isto é Gozar Com Quem Trabalha, na SIC, é o momento mais popular do trabalho atual do humorista que recusa ser performer, apesar de ser a performance uma das principais culpadas da fama que tem conquistado ao longo dos anos. Talvez por isso tenha investido tempo e e dedicação no podcast Coisa Que Não Edifica nem Destrói, transformado em livro e que agora chega ao segundo volume — para mostrar, a todos e ao próprio, que é na escrita e na relação academico-obsessiva que tem com o humor que encontra o grande propósito de vida (talvez as filhas estejam ao mesmo nível, as mesmas que lhe dizem “estás cada vez mais velho” sempre que vão a casa).
Foi por causa desta escrita que voltámos a conversar com Ricardo Araújo Pereira, mas foi por vários outros assuntos que prolongámos a entrevista: a comitiva de humoristas que visitou o Papa Francisco no Vaticano, a relação do humor com a religião, a política como matéria-prima trabalhável pelo riso, a diferença entre “reinar” e “reinar”, a difícil arte do stand-up (à qual, diz-nos, talvez volte em breve) e a morte como coisa que, de facto, não edifica e destrói bastante bem, mas que pode ter muita graça. Houve até tempo para uma referência ao filósofo grego Kostas Mitroglou.
Vamos começar com Shakespeare. Porque no primeiro dos textos deste segundo volume fala de Falstaff. Diz o Ricardo que esta personagem tem, e passo a citar, “um raciocínio astucioso e ágil que costumamos associar aos burlões”.
Exato.
Há quem associe este tipo de raciocínio astucioso e ágil ao Ricardo. O que acha que isto quer dizer?
Fico muito lisonjeado com isto porque é próprio dos humoristas terem esse tipo de raciocínio. E, lá está, esse raciocínio que é próprio dos burlões é o mesmo dos comediantes, eu diria. Já não me lembro de qual é o primeiro texto do livro, mas…
O título é “Sobre políticos e palhaços”.
Ah, certo, sobre o Henrique IV. Essa ideia de que o raciocínio de um humorista tem um parentesco qualquer com o raciocínio do burlão interessa-me muito e acho que se verifica. Há outro texto, já não sei se é neste volume, se é no anterior, em que falo da figura do trickster. Na imaginação das pessoas que falam português, referimo-nos a essa personagem como o malandro. E há várias histórias do maior desses tricksters, que é um senhor chamado Nasreddin Hodja, uma figura da cultura do Médio Oriente. Há histórias dele que indicam essa espécie de raciocínio.
Por exemplo?
Vou-lhe contar uma. Há um homem que está muito pobre, tem um pedaço de pão seco apenas. Trepa ao telhado de um restaurante e fica com o pão a absorver o fumo da chaminé do restaurante para que o pão tenha algum sabor. O dono do restaurante descobre e exige que ele pague o aroma da comida. Ele não quer pagar. Então chamam o Nasreddin Hodja. Ele deixa cair uma moeda, a moeda cai sobre uma mesa, ele fá-la tinir e diz: “Ouviste? O som da moeda paga o cheiro da tua comida”. Essa ideia de que o cheiro se paga com um som é divertida.
E encontra aí um paralelo com a política?
Neste caso concreto não, é algo diferente. Acho que não é surpresa se eu lhe disser que há muita gente que está convencida de que o humor tem poder.
Tem sido assunto frequente com o Ricardo, ao qual, aliás, procura fugir em todas as ocasiões.
Exato. Vim para isto para não ter responsabilidade nenhuma e, como diz o tio do Homem-Aranha, se uma pessoa tem o poder depois tem a responsabilidade, coisa que não me apetece. Mas sim, as pessoas têm essa ideia, de que o humor tem poder, que na minha opinião é muito exagerada. Aquilo que me interessava nesse texto era precisamente distinguir o poder da política e o poder político do poder do humor. O humorista nesse caso é o Falstaff, como o político é o Príncipe Hall, que será Henrique V. Ambos recorrem a uma dissimulação, mas a dissimulação a que recorre o príncipe é para tomar o poder, a dissimulação a que recorre o Falstaff é para que a sua vida seja um pouco mais confortável. Por isso digo que há uma grande diferença entre reinar e reinar: reinar no sentido em que um rei reina e reinar no sentido em que a gente diz “os miúdos estão lá fora a reinar”.
Ser reinadio.
Exatamente. Talvez seja essa uma das razões pelas quais as pessoas fazem essa confusão.
O dicionário online Priberam explica que o burlão é “aquele que recorre a artifícios para enganar”. O humorista também faz isso?
Também faz isso.
Ou não é bem enganar?
Há vários enganos. Há o engano que decorre de surpreender as pessoas, para obter uma gargalhada, dizer alguma coisa de que as pessoas não estão à espera. O engano de fingir que estamos a dizer uma coisa e depois revelar que estamos a falar de outra. Mas há outro tipo de engano, o de olhar para uma coisa e propositadamente entender-lhe um sentido diferente. Em tempos fizemos um sketch para o Gato Fedorento sobre isso. Uma vez estava na Alameda, parado num semáforo, olhei para a esquerda e vi no antigo Café Império a frase “Jesus Cristo é o Senhor”. Provavelmente por estar no trânsito lembrei-me que basta que esta frase seja dita num outro tom para parecer um insulto. Essa capacidade de olhar para uma coisa e ver aquela que não é óbvia é outra das pequenas vigarices. No caso do Falstaff, ele acumula todos os defeitos que há. Muitas vezes ele recorre a estratagemas. A certa altura é assaltado por dois homens, são os amigos dele, embora ele não o saiba.
São meliantes.
Exato. Ele chega à taberna onde confraternizam todos e está a contar aos dois homens que o assaltaram que foi assaltado por quatro, sete, onze e assim sucessivamente. Tudo para que o mundo lhe seja mais confortável, para que ele consiga transformar um momento em que foi cobarde num momento de valentia.
Ainda bem que falou em Jesus Cristo porque o burlão Ricardo Araújo Pereira esteve com o Papa há pouco tempo.
Exato.
Como é que isso aconteceu. Digamos que não é a coisa mais habitual do mundo…
Não é, não é. E isso deu-se às 6h45 da manhã, que foi a hora a que o Santo Padre pediu que os humoristas de todo o mundo lá estivessem.
Só isso já tem graça, essa hora.
Sim. Aglomerámo-nos lá e o Fábio Porchat, o humorista brasileiro, perguntou-me: “Para que é que achas que é isto? Para que é que será?”. Eu disse-lhe: “Há 500 anos era óbvio que seria para nos cortar a cabeça. Desta vez, não é, acho eu”. Foi um convite do Vaticano, convidaram três humoristas portugueses para irem lá. Era impossível não aceitar. E eu nem sequer sabia que a importância do encontro era aquela. Não por nossa causa, mas por causa daquilo que o Papa disse. A certa altura, o Papa diz o seguinte: “Podemos rir de Deus, com certeza”. Não sei se essa frase alguma vez foi dita no Vaticano. Não sei se foi dita por alguém que conservou a cabeça depois de a dizer. E sobretudo tenho quase a certeza absoluta de que nunca foi dita por um Papa. Portanto, nós, as pessoas que ali estavam, presenciámos um momento histórico que foi o Papa dizer que sim, é lícito rir de Deus. Não estava à espera dessa.
E como é que se reage quando se recebe um telefonema que diz algo como “Olá Ricardo, tudo bem? Olha, queres ir conhecer o Papa?”
Sim, sim, é muito bizarro. Nunca me ocorreu não ir. Fiquei imediatamente entusiasmadíssimo. Para já, porque adoro ir a Roma. Segundo, porque gosto imenso de ir ao Vaticano, tinha estado lá de férias ainda muito recentemente e houve o pretexto para entrarmos por uma daquelas portas que não é habitual as pessoas usarem e ver aqueles frescos de episódios bíblicos no teto, que as pessoas não costumam ver — são sítios onde que as pessoas não costumam passar. Não foi assim tão difícil de acreditar no convite por duas razões. Primeiro porque a Joana Marques me disse que havia um convite e, enfim, lá na Renascença eles devem ter acessos… E depois porque foi o padre Tolentino, que eu continuo a designar desta forma, porque há 30 anos o conheci como capelão da Universidade Católica. E agora ele é sua eminência, o Sr. Cardeal Tolentino, e eu já o confrontei com esta situação. Lá no Vaticano, então, é uma coisa inacreditável. As pessoas dobram a espinha de uma maneira que eu não sabia que era possível à frente do padre Tolentino. E sim, foi o padre Telentino que me mandou uma mensagem muito, muito pouco formal, dizendo “Olá Ricardo, um grande abraço, estamos aqui a preparar uma coisa…” E pronto, foi isso. E eu disse que sim senhor.
Neste livro, e por acaso ou não, a dada altura escreve que “o Deus da Bíblia não parece ser dado ao riso, apesar de ter motivos para isso”. Provavelmente isto tem a ver com alguma tradição menos humorística da Igreja Católica. Ou então está a pôr-se no lugar de Deus que olha para a humanidade e pensa “hum, esta rapaziada não tem muita graça, na realidade eles estão-se todos a matar uns aos outros”.
Conheço os argumentos a favor de olharmos para a Bíblia e concluirmos que sim, que Deus ou tem sentido do humor, ou não tem nada contra o riso. Eu acho que há mais e mais fortes argumentos para acharmos o contrário. Desde o livro do Génesis, o próprio Deus anuncia a Sara que vai ser mãe — aos 90 anos — ela ri-se e ele pergunta-lhe “de que é que te estás a rir” e ela prefere mentir, dizer “eu não ri” do que confessar a verdade, que era bastante óbvia, que era “epá, tenho 90 anos, vou ser mãe, achei graça”. Ou, por exemplo, quando à Virgem, já no Novo Testamento, lhe aparece um anjo que faz um anúncio igualmente difícil de acreditar. Ela não hesita, é um modelo de fé, ela não acha graça à notícia, está compenetrada no seu trabalho, na sua situação. Até às Bem-Aventuranças, na altura em que Jesus Cristo diz “felizes aqueles que choram agora porque rirão mais tarde” e “ai daqueles que riem agora porque chorarão mais tarde”. Além do aspeto que terá sido São João Crisóstomo o primeiro a notar: Jesus Cristo nos Evangelhos chora duas vezes, quando Lázaro morre e quando avista Jerusalém, e não ri nenhuma. Essa observação do São João Crisóstomo foi muito pesada para a história das relações da Igreja com o riso. Relações essas que estão claramente a mudar, tendo em conta aquilo de que falámos há pouco, da mensagem do Papa.
Mas parece-lhe que essa mensagem pode ter algum efeito?
Não sei, não sei, mas quer dizer: essa já eu levo para a cova. Eu vi o líder espiritual de um terço da humanidade a dizer “podemos rir de Deus, podemos sim senhor”. O sucessor de Pedro, portanto, é o Papa. Não sei a partir de quando é que a Igreja se tornou assim, digamos, tão séria. É que há várias razões para o riso ser desconsiderado ou para as pessoas desconfiarem do riso. E há boas razões para que a Igreja, para que uma religião organizada, faça isso. Mas há boas razões para o contrário também. Há um livro de um senhor que estava lá, curiosamente estava na comitiva dos americanos, com Chris Rock, Stephen Colbert, Julia Louis-Dreyfus, Jim Gaffigan, Jimmy Fallon. James Martin, “vírgula SJ”. É um jesuíta americano. Foi uma das pessoas que abordei, disse-lhe “gostei imenso do seu livro”. É uma leitura sobre aquilo que Jesus diz, a uma luz bastante diferente. Ele diz, por exemplo, que Jesus usa muitas vezes a ironia e é muito interessante a leitura que ele faz, só que não foi a leitura dominante na Igreja durante séculos e séculos. Acho que Deus tem motivos para rir porque parece-me flagrantemente engraçado que um ser omnipotente e perfeito produza uma criatura como nós. Se a gente disser que está aqui este senhor que é oleiro e é o melhor oleiro do mundo e ele faz uma caneca rota no fundo, é óbvio que isso tem graça. E que um ser como Deus tenha produzido um ser como nós, acho que é fatal que seja divertido. E ele não parece… ele irrita-se mais do que acha graça.
Corrija-me se estiver errado, mas tenho-o por não crente.
Exato.
Mas escreve a palavra “Deus” com letra maiúscula.
Escrevo sempre, sim. E quando me refiro a “Ele”, escrevo com o “E” grande.
É por tradição? É para não desrespeitar ninguém? É uma questão ortográfica?
São todas essas coisas. E é o hábito de ler estas palavras assim escritas. Repare, eu fiz a primária numa escola de freiras Vicentinas. Do 5.º ao 9.º andei numa escola de padres franciscanos. Do 10.º ao 12.º estive num colégio de padres jesuítas. E depois fiz a Universidade Católica. Portanto, não me lembro de ter lido textos em que Deus aparece com letra pequena e quando a gente se refere a “Ele”, isso não está em minúscula.
Apesar da formação em ambiente católico, não é crente. Isso também tem graça.
Pois tem.
Se calhar foi por causa disso.
Não foi, foi apesar disso. Penso muito nisso. Os meus pais ainda por cima não mentiam. Na ficha de inscrição dos colégios dizia lá “o menino é batizado?” e eles punham “não”. E os padres não só me aceitavam, como não senti nenhuma tentativa de proselitismo, nenhuma pressão. Isso tem duas leituras, evidentemente. Uma, benévola, em que os padres respeitam a liberdade individual e não querem impor. Outra…
Acharam que nem valia a pena.
Isso. Não vale a pena. Não vamos gastar sacramentos com este selvagem.
É a religião, qualquer uma, qualquer confissão religiosa, o maior tabu do humor? Aliás: ainda há tabus no humor? Isto em relação a quem recebe a mensagem. Porque em princípio o humorista não tem tabus.
Exatamente. Até porque o humorista compreende o que uma piada é e como funciona. Não só isso: compreende que o discurso humorístico, por natureza, não é sério. Nas nossas relações interpessoais, muitas vezes dizemos assim: “Estás a falar a sério?”. E, dependendo da resposta, a gente sabe como é que há de reagir. E se a resposta for “não, estava a gozar”, então está tudo bem. Se a resposta for “sim, sim, estou a falar a sério”, isso já é outra coisa. Mas, tendo em conta que o discurso humorístico é, por natureza, não sério, tomá-lo como se as pessoas estivessem a falar a sério, coisa que hoje se faz muitas vezes…
Não é boa ideia?
Não. Por exemplo, de cada vez que alguém põe um especial de stand-up na Netflix, aparece alguém, um jornal, normalmente, a dizer “e depois o Dave Chappelle diz o seguinte”, dois pontos, e começam a citar, como se ele tivesse convocado uma conferência de imprensa. Como se citando aquelas palavras estivéssemos a citá-lo a ele. Isso não é verdade. Citando assim, sem o contexto, sem a ideia de palco, sem a ideia de espetáculo de comédia, sem a ideia de vigarice no final, tratando aquela citação como se alguém tivesse chamado os jornalistas e tivesse dado uma conferência de imprensa, isso produz um resultado absurdo.
Vamos imaginar que o Ricardo está sozinho ou com a sua equipa, a trabalhar numa graça que envolve religião. Há um cuidado especial, consciente?
Diria que não. Mas tenho a impressão que não respondi à sua pergunta. Acho que há muitos tabus hoje em dia. A questão é o que é que é sagrado para as pessoas. E para várias pessoas há coisas sagradas. Para vários grupos de pessoas há coisas que são sagradas com muita intensidade. Acho isso ótimo, devo dizer. Quanto mais tabus houver, melhor.
Mais trabalho terá.
Sim. Acho é que a zona do tabu se moveu do sagrado religioso para outros tipos de sagrado.
Para um sagrado profano, mais próximo?
Sim. Isso nota-se quando verificamos que a humorista da Rádio Renascença, da beata Rádio Renascença, produz tanto ranger de dentes. Acho que isso só é possível porque, de repente, temos outros tabus. Temos um tabu, que a Joana explora muito e bem: é este tempo em que as pessoas pretendem apresentar-se em público de uma determinada forma e querem muito que os outros acreditem que aquilo corresponde à verdade. Até que vem uma desmancha prazeres dizer duas coisas: primeiro, que a vaidade é ridícula; e segundo, que talvez aquilo não corresponda à verdade. Talvez os altos padrões que as pessoas estabelecem para si próprias sobre o seu talento, a sua inteligência, a sua beleza, talvez não correspondam à verdade. Essa atitude de desmancha prazeres, acho que é exasperante para as pessoas que querem fazer isso. Já conheço a conversa sobre “as coisas boas” das redes sociais, encontrar o colega que não vemos desde o oitavo ano. Certo, tudo bem. Mas há um espírito que não toleramos fora dali. Ninguém toleraria se eu viesse para aqui dizer “Sabe quem é que disse bem de mim há bocado? Uma pessoa. E ontem outra pessoa”.
Ou seja, vê as redes sociais como uma espécie de universo paralelo, um metaverso, onde é possível outra realidade, em que há algumas coisas que podemos fazer e ninguém nos vai julgar?
São coisas permitidas lá, perfeitamente aceitáveis lá, abjetas cá fora. Esse tipo de vaidade, cá fora ninguém toleraria. O próprio vocabulário é próprio daquele espaço. Por exemplo, “partilhar” normalmente significa “exibir”. Eu vou partilhar uma fotografia das minhas férias. A partilha tem uma componente de generosidade que não está presente ali. É uma mera exibição. “Olha, eu estive aqui nas Maldivas e tu não estiveste.”
Curiosamente, a palavra “partilha” até tem um lado religioso.
Pois, pois tem. O que gosto mais, devo confessar, é quando morre uma figura pública e alguém vem fazer o…
O apreço na hora do luto.
Sim. É curioso que se tratem de elogios fúnebres a quem elogia. São coisas do género “ah, minha amiga, ainda me lembro da nossa última conversa em que tu me disseste que eu era realmente incrível”. E isso pelos vistos é perfeitamente aceitável. É engraçado porque um humorista faz uma piada de mau gosto no momento da morte de alguém e as pessoas ficam furiosas, mas se alguém faz este tipo de coisa não há ninguém que proteste, não há ninguém que diga “espera aí, isso é pornográfico o que tu estás a fazer, é obsceno, é muito mais obsceno do que qualquer piada de mau gosto”.
Se Herman José tivesse feito aquele sketch da Última Ceia em 2024 e não em 1996, será que ainda haveria polémica? Haveria alguma queixa?
Não creio. O que me parece ótimo. Acho que o Herman é o Martim Moniz da minha geração de comediantes, por várias razões. Ele meteu o corpo na porta para a gente entrar e esse foi um dos momentos. Curiosamente, às vezes esse momento é dado como exemplo de cancelamento. Embora nesse caso concreto, da Última Ceia, não tenha acontecido nada ao Herman. Rigorosamente nada. O programa continuou, tal como tinha estado, o sketch foi para o ar, não aconteceu nada. Na semana seguinte houve programa novamente e assim sucessivamente. Aconteceu que o líder da oposição pronunciou-se, a Igreja fez barulho, talvez tenha ligado para a RTP. E acho que isso é suficiente para a gente dizer “espera, houve aqui uma pressão inadmissível”, mesmo que não tenham conseguido nada, e graças a Deus não conseguiram…
Graças a Deus.
Graças a Deus. O facto de tentarem define as pessoas que tentam. Isso continua a ser verdade, hoje. Sempre que alguém, por qualquer razão, pressionar no sentido de que haja uma punição, qualquer que ela seja, mesmo que não consiga, isso importa. Há gente que tenta. Essas pessoas ficam definidas.
No Vaticano, conheceu humoristas que admira?
Conheci.
Estava como um miúdo numa loja de gomas? Foi profissional ao máximo?
Com certeza. Devo confessar-lhe que estava entusiasmadíssimo por estar ali. Repare, à minha esquerda estava o Chris Rock, à minha direita estava o Stephen Colbert.
Foi o lugar que lhe calhou?
Sim, eram lugares marcados. Acho que há uma espécie de assessor do padre Tolentino que é de Guimarães e ficou fã do Gato Fedorento entre a infância e a adolescência. Por causa disso, veja-se o resultado. Foi ele que definiu onde é que as pessoas se sentam e, portanto, tenho a impressão que foi isso que fez com que, por uma razão que mais ninguém no mundo compreenderia, estavam Chris Rock, Ricardo Araújo Pereira e Stephen Colbert. Foi uma das sortes da minha vida. Como calcula, tentei não incomodar as pessoas. Há aquele pudor natural de estar a aborrecer, a chatear alguém para tirar uma selfie quando o teto foi pintado pelo Rafael. Ainda assim tirei duas ou três fotografias. E devo dizer-lhe que o Stephen Colbert, que é católico, levou a irmã. É um tipo mesmo muito simpático. E estava a conversar comigo como se nos conhecêssemos.
Portanto, houve algum tempo para socializar.
Houve. Primeiro o Papa fala. Depois forma-se uma fila, uma coisa muito ordeira, só para cumprimentar o Santo Padre. No final, o Stephen Colbert diz assim: “Aconteceu-me aqui uma coisa bizarra. Cheguei ao pé do Papa e disse ‘sabe, no audiolivro da sua autobiografia em inglês, o narrador sou eu’. E ele reagiu como quem diz ‘oh filho, tenho mais 190 pessoas para cumprimentar'”. O Stephen Colbert pegar na minha mão para me contar essa história foi… repare, minutos antes tinha cumprimentado o sucessor de Pedro.
Ouça aqui a entrevista na íntegra em podcast.
Os humoristas dão-se bem uns com os outros?
Não tenho razão de queixa, sinceramente. Às vezes ouço coisas sobre isso e não percebo de que é que estão a falar. Ouço “os humoristas portugueses não se juntam”… Juntam. Juntam. Eu fiz umas coisas com outros três, agora estou a fazer umas coisas com outros sete e, portanto, juntam. E, até ver, corre tudo bem. Não só corre tudo bem, como corre melhor do que noutro tipo de trabalhos, diria eu. Justamente por causa da elasticidade que isto permite. Compreendermos que aquilo é — mais uma vez, tal como as redes sociais — um espaço à parte. Que quando estamos todos de roda do guião, é legítimo dizer “não, isso não; vamos continuar; é isso, é isso”. Não há nenhuma vaidade, do género “como assim, eu dei esta sugestão e ela não foi seguida à risca? Foi alterada? Foi transformada para dar não sei o quê?”. Toda a gente tem a consciência muito clara de que não há más ideias. Mesmo as que não entram, as que objetivamente não são boas, muitas vezes fazem germinar uma que é boa. E a boa não teria existido se alguém não tivesse primeiro dado esse chuto para o pinhal que nunca na vida acertaria na baliza.
E, portanto, toda a gente compreende que o processo é assim e que não vale a pena haver melindres nem espírito de competição?
Exatamente, é isso. No princípio — e quando digo “no princípio”, é no início mesmo, naquelas alturas do stand-up e tal — sinto que havia duas coisas. Primeiro, havia competição, até porque isto é um ofício em que a gente percebe imediatamente se o nosso trabalho foi bem sucedido ou não, porque o público assinala isso, rindo ou não rindo. E, provavelmente para mitigar o espírito da competição, havia uma espécie de indulgência desconcertante: “Tu és o melhor em palco”; “Mas tu és o melhor em observação”; “Em non-sense és tu o melhor”; “E este gajo aqui? Este gajo aqui é o melhor em storytelling”. Toma lá o teu presente, dá cá o meu e vou para casa muito satisfeito porque sou o melhor numa categoria qualquer.
É curioso que fale sobre stand-up. Podemos dizer que, à parte crónicas e outros textos, ou este podcast, por exemplo, o Ricardo é um homem que trabalha em equipa. Porquê? Porque é mais fácil, porque é mais interessante, porque é mais desafiante? Alcançou um estatuto que lhe permite esgotar salas com espectáculos de stand-up, vender o seu produto para uma plataforma de streaming, se calhar resolvia a reforma, mas não parece estar para aí virado…
Em primeiro lugar, não me posso queixar da minha reforma, não me vai ouvir fazer queixas nesse capítulo. E para a Rádio Comercial também trabalhava sozinho, sim. De resto, gosto desse tipo de dinâmica colaborativa. Às vezes alguém diz uma coisa que não tem nenhuma hipótese de entrar no programa, mas foi decisiva que tivesse sido dita, porque fez com que outra pessoa se lembrasse. E esse processo é absolutamente fascinante. Na televisão, é necessário que seja assim, porque torna tudo muito mais rápido. Já para não falar sobre o tempo que a gente perde a ver comissões parlamentares de inquérito, toma lá duas horas para ti, dá cá duas horas… Às vezes, para encontrar 30 segundos é preciso ver 4 horas, ou estarmos cada um a monitorizar o seu canal de televisão. Isto não é trabalho burocrático, é um trabalho que requer um olhar humorístico, não poderia ser feito por outra pessoa. Tem de ser feito por nós.
Mas isso não justifica a outra parte, sobre o stand-up. É porque o assusta? É um mundo com o qual não lida bem?
Não nasci para isto, sabe? Não sou um performer, digamos assim. Sou uma pessoa cujo ambiente natural é estar em casa a ler e a escrever. Continuo a ser um guionista, é isso que tenho nas Finanças. Depois, ao domingo à noite sento-me e faço aquilo para aquela nossa plateia e para as pessoas que estão em casa, mas isso eu ofereço, isso é oferecido. Mas não escondo que tenho vontade de voltar a fazer. É um processo que requer alguma coragem e requer também tempo.
E tem vindo a tentar acumular ambas as coisas, é isso?
Eventualmente, sim, vamos ver, qualquer dia pode ser que sim. Até porque muita gente me vem dizer “podias fazer uma tour”. Qualquer dia, pode ser que sim.
Às tantas diz que “a estratégia humorística baseia-se na ideia de que pensar nas coisas da maneira certa é quase sempre insuportável”. E que, portanto, o humorista tenta dar a volta a isso. Mas será que existe um Ricardo na vida real um pouco diferente, que é sempre sério, cumpre todas as regras e preocupa-se a toda hora com todos os seus deveres e responsabilidade?
Isso faz-me lembrar quando vou à loja do cidadão, porque preciso de fazer uma coisa qualquer, e as pessoas olham para mim, os funcionários mas também as outras pessoas que estão à espera. Metem-se comigo sobre o facto de estarmos ali naquela situação, o funcionário pergunta se eu estou a gozar ou se é mesmo uma coisa de que eu preciso… E não tenho nada contra isso. Sou um ser humano relativamente funcional, é possível confiar em mim até certo ponto. Por outro lado, não lhe escondo que em minha casa não faço nada do que é importante. Sabe aquela situação que o Benfica viveu em que o Luís Filipe Vieira pode ou não ter feito lá umas coisas do ponto de vista financeiro? Eu sou o Rui Costa em minha casa. Eu não sei de nada. Ora isso não me qualifica para desempenhar cargos de responsabilidade.
Já falou várias vezes sobre o “poder das celebridades” e também menciona isso no livro, o facto de não querer qualquer tipo de responsabilidade e que se a quisesse não tinha vindo para este modelo de negócio e fazia outra coisa qualquer. Ainda assim, a política tem sido um dos seus principais objetos de trabalho nos últimos anos. Escolhe essa matéria-prima com algum sentido de missão ou só porque é uma matéria-prima muito trabalhável?
Sem nenhum sentido de missão, não tenho a mínima vontade, quer de fazer proselitismo, quer de ser justiceiro, ninguém me investiu dessa responsabilidade e desse papel, não sou juiz, não sou carrasco. Há uma coisa que me interessa: aquilo é importante, é um tema importante. Aquelas pessoas são importantes, o primeiro-ministro é importante, o Presidente da República é importante e, portanto, é divertido quando o palhaço atira uma maçã podre à testa do primeiro-ministro, isso é mais giro do que quando atira à testa de uma pessoa qualquer. Também tem graça, atenção. Mas não tem tanta graça. Faz mais contraste quando é na testa do Presidente da República que acertamos. E há uma outra questão. O consumo televisivo alterou-se. Hoje em dia ninguém esperaria ansiosamente para ver um programa de sketches. Há duas ou três coisas que continuam a levar as pessoas a ligar a televisão para ver no momento em que acontecem: futebol, ninguém guarda para ver no domingo; telenovelas.
E notícias?
Exatamente. A terceira coisa são notícias. Caiu uma ponte na China e a gente está a ver em direto o que está a acontecer. Creio que o nosso programa se insere no terceiro grupo de coisas, que é “esta semana aconteceu isto e está aqui este paralelo”. A seguir ao Rodrigo Guedes de Carvalho, aparece um tipo que está vestido como o Rodrigo Guedes de Carvalho, sentado como ele, mas está a dizer coisas radicalmente diferentes e num tom bastante diferente e com uma abordagem muito diferente. Acho que é isso.
Ou seja: podem chamar palhaço ao humorista, mas o humorista pode ter noção daquilo que vale a pena quando chega a hora de fazer negócio, não é?
Com certeza. Podem chamar palhaço ao humorista e agradeço que chamem. Agradeço e recebo com orgulho. É uma profissão bastante nobre. Só não o refiro mais vezes porque me parece que da parte dos humoristas há uma espécie de pudor. Pudor em dizer “não é incrível isto que estou a fazer, não é uma coisa assim tão nobre”. Mas aqui para nós que ninguém nos ouve, acho que sim, acho que fazer rir os outros é uma ambição bastante elevada. Sobretudo quando aquilo que os humoristas dizem já passou pela cabeça de quem os ouve. As coisas mais absurdas já passaram pela cabeça das pessoas, mas nunca as disseram em voz alta. E é giro haver um tipo que está a dizê-lo, que não tem nenhum pudor em dizer em voz alta aquilo que escondemos e que, na melhor das hipóteses, dizemos ao analista. Isto por um lado. Por outro, o humorista apresenta-se como reles porque pensa durante imenso tempo em coisas que aparentemente não têm importância. Portanto, apresentar-se aos outros como reles, como o pior, parece-me uma boa definição. Repare que isso acontece também no humor físico. A melhor queda normalmente é dada pelo humorista mais acrobático. O Chaplin era um atleta extraordinário. Só se consegue ser tão trapalhão sendo muito apto fisicamente. Essa também me parece ser uma ótima definição de humorista: aquele que é o melhor a ser o pior. É por isso que me parece que uma pessoa subir ao palco para exibir a sua superioridade moral perante os outros é uma atitude profundamente anti-humorística. Portanto, das duas uma: ou somos mesmo moralmente superiores, e isso é apenas chato, estarmos a aborrecer os outros com a nossa superioridade, ou não somos, que é o mais provável, e é uma hipocrisia um bocado ridícula.
A atualidade nunca vai acabar. Os políticos nunca vão acabar. Os noticiários, os momentos estranhos que o Ricardo e os seus companheiros trabalham nunca vão acabar. Isso quer dizer que pode ter este tipo de trabalho e este tipo de programa para sempre? Isso preocupa-o? Aborrece-o?
Não, não exatamente. Às vezes as pessoas falam sobre “zona de conforto”. Uma pessoa estar instalada e o programa estar em velocidade de cruzeiro. A atualidade é infinita, como diz. E em Portugal há algumas peripécias que são divertidas. Mas sempre que me falam com esse paleio dos livros de autoajuda sobre a “zona de conforto”, não sei do que é que estão a falar porque eu nunca estive confortável na vida. A tensão que sentimos todas as semanas, ao domingo, às nove e meia ou às dez… Aquilo continua a ser um suplício semanal. Continuamos a não saber…
Como é que se faz o programa?
Exatamente. Aliás, se aquilo fosse confortável, tenho a impressão que outros canais também tinham aquele tipo de programa. A não ser que os outros canais olhem para um programa que tem bastante audiência e digam “nós não estamos interessados”. A verdade é que não têm. Por alguma razão será.
Já disse várias vezes que não quer ser pedagogo, não quer ensinar nada a ninguém, mas quando decide fazer um podcast como este, transformá-lo em livros, é simplesmente por gozo?
Sim, é por gozo. E não é por acaso que é um podcast. Um podcast é uma coisa milagrosa, podemos falar sobre o que nos apetece. Não há ninguém no meu ouvido a dizer “atenção, Ricardo, 30 segundos para o intervalo, não te esqueças”. Se eu quiser falar duas horas, aquilo não custa dinheiro, não há nenhum problema, não há anunciantes à espera do intervalo, não há concorrência que já recomeçou após o intervalo. De facto, é um sítio em que posso aborrecer as pessoas com coisas que me agradam pelo simples prazer de o fazer. Uma vez, um filósofo grego chamado Kostas Mitroglou jogava no Benfica e renovou o contrato. Perguntaram-lhe “Mitroglou, porque é que renovou o contrato com o Benfica?” e ele respondeu “Because I like it”. E eu achei uma resposta magnífica. E é a que dou também. Porque é que se faz este podcast? “Because I like it.” E sim, em setembro vai regressar.
Vou citá-lo novamente: “Faz parte do ofício de humoristas e pugilistas uma atitude de indiferença à dor”. Sabendo que o Ricardo é ambas as coisas, humorista e pugilista, o que é que isto faz de si? É uma espécie de super-herói que não sente dor nunca?
Realmente, tenho apreço por ambas as atividades.
A palavra-chave é “atitude”?
Sim. Não quer dizer que não sinta a dor, essa atitude faz qualquer coisa nos outros e em nós. Não sei se já reparou, mas a melhor maneira de rechaçar um ataque é concordar e acrescentar.
Voltamos à religião? Dar a outra face?
Não é bem dar a outra face porque é uma estratégia defensiva e também de ataque. Porque aquilo desarma o adversário. Imagine que passa por dois gandulos num beco escuro e, antes que eles lhe consigam tocar, começa a agredir-se a si próprio.
O gandulo vai parar, vai observar e vai-se embora.
E em princípio foge com algum receio. A ideia de que aquilo que os outros nos dizem — ou no caso do boxe, nos fazem — não nos afeta, é importantíssima. Faz qualquer coisa no outro, desmoraliza-o. Provavelmente, a segunda ou terceira coisa que lhe vão dizer quando for treinar boxe, se alguma vez o fizer, é “se apanhar, sorria para o adversário”.
Lembra-se disso quando treina?
Lembro muito bem, simular indiferença. É o que escrevo noutro texto: qual é a melhor maneira de não nos trespassarem o coração? É infalível. É não ter coração. Se não tiver, não há nada para trespassar.
O humor é uma ótima ferramenta para conseguir isso.
O [Henri] Bergson, o filósofo que também foi prémio Nobel da Literatura e escreveu um livro chamado O Riso, a certa altura diz que o riso é uma espécie de anestesia momentânea do coração. Diz que num mundo em que estivéssemos com a empatia sempre à flor da pele, em que estivéssemos a pôr-nos sempre no lugar do outro, o humor seria impossível. O humor é um exercício aparentemente, mas só aparentemente, cruel.
Às tantas escreve que “talvez a vida seja mais vida para quem é capaz de se rir da morte do que para quem a teme”.
Exato.
A morte é um dos temas que também surge em diferentes partes do livro. É porque tem muita graça ou porque o preocupa?
As duas coisas. Confesso que sou contra a morte. Acho que é no primeiro volume que falo de uma entrevista que o Umberto Eco deu à revista Paris Review em que eles lhe perguntam se há um livro que ele gostava de ter escrito. Ele diz que sim, mas não quer falar sobre isso. Eles insistem, ele diz: “Gostava de ter uma teoria unificada sobre o riso, sobre a comédia, mas não sou capaz. E como não sou capaz, escrevi O Nome da Rosa”. Eles insistem: “Mas qual é a sua teoria?”. Ele diz: “É a reação quintessencialmente humana ao medo e ao medo da morte especificamente”. A razão pela qual a vida é mais vida para quem não teme do que para quem vai preocupado… Imagine que lhe reduzem a vida aos 30 segundos que leva um condenado à morte da cela até ao cadafalso. Se ele for a rir à gargalhada a gente pensa “este tipo não está bem”. Um ser humano, que é um bicho que tem noção da sua própria extinção, cada gargalhada que dá é uma demonstração de não estar muito bem. Para todos os efeitos, convivemos com a mesma informação com que convive o condenado à morte naquele percurso. A única coisa é que o nosso percurso dura 80 anos, se tivermos sorte. Mas pode ser menos do que isso. O fim pode ser agora. Ainda assim, é sempre bizarro que um animal como nós, que tem a informação que nós temos, consiga rir. Morremos todos, como diz o poema do Philip Larkin, disso não há dúvida, mas tenho a impressão de que a vida é melhor para quem não vai acabrunhado com a ideia de que isto vai fatalmente acabar. É melhor a outra atitude. Até porque devo dizer que se calhar não é mau isto acabar. Se os jogos de futebol fossem infinitos, ninguém via aquilo. O facto de durarem 90 minutos é importante.
Quando alguém diz que não tem medo da morte, acredita ou isso dá-lhe muita vontade de rir porque só pode ser piada?
Eu sei uma coisa: se não tem medo da morte, não é uma pessoa corajosa. Às vezes as pessoas dizem “não tenho medo de nada”. Então não tens coragem. Porque a coragem implica ter medo. Fazer coisas de que temos medo. Não preciso de coragem para pegar na caneta que está aqui à minha frente. Normalmente quando um valentão diz que não tem medo de nada, isso afigura-se-me engraçado, porque significa que não é corajoso.
Fez 50 anos há poucos meses. Está a achar graça?
Estou. Já reparou na minha cabeça? Estou a ficar cada vez com menos cabelo. As minhas filhas estudam no estrangeiro. A mais nova, no outro dia, disse-me: “Cada vez que venho a casa, tens menos cabelo, e isso deprime-me, porque significa que estás a caminho do fim”. E isso dá-me vontade de rir.