Foi um Ricardo Salgado cansado, esquecido e algo confuso aquele que se apresentou perante o juiz Ivo Rosa esta segunda-feira. O ex-líder do BES recusou-se a falar sobre a acusação de alegada corrupção ativa de José Sócrates e Henrique Granadeiro que lhe é imputada pelo Ministério Público (MP), assim como de Hélder Bataglia. Mas assumiu que deu ordens para que o ex-chief executive officer (CEO) da Portugal Telecom (PT) recebesse cerca de 25,2 milhões de euros entre 2007 e 2012 da sociedade Espírito Santo (ES) Enterprises, garantiu que o contrato fiduciário que alegadamente foi assinado entre aquela empresa offshore do Grupo Espírito Santo (GES) e Bava não foi forjado, admitiu uma reunião em 2013 com Bava para tratar da devolução dos fundos a GES mas não conseguiu explicar por que razão um contrato assinado a 20 de dezembro de 2010 nada diz sobre a primeira tranche de 6,7 milhões de euros transferida em dezembro de 2007.
Mais: Ricardo Salgado acrescentou uma nova versão para as transferências para Bava. Se antes tinha garantido que as mesmas tinham como objetivo convencer o então líder da PT a não se transferir para a concorrência depois de ter ido para o Brasil em 2013 para liderar a operadora Oi em representação da PT, agora diz que, afinal, o objetivo da transferência de 6,7 milhões de euros realizada em dezembro de 2007 era financiar a entrada de Zeinal Bava no capital da então maior empresa portuguesa. É a primeira vez que Salgado dá uma explicação para essa primeira transferência para Bava, alegando que quando foi constituído arguido não se lembrava que tal transferência tinha sido feita.
Foi precisamente essa a versão que Bava deu perante o juiz Ivo Rosa na semana passada. Mesmo depois de o juiz de instrução criminal ter constatado que a sua versão era diferente da de Ricardo Salgado, Bava manteve a sua versão. Agora, a mesma é corroborada por Ricardo Salgado.
A única pergunta sobre José Sócrates: quando soube da sua detenção?
Numa inquirição relativamente rápida, o ex-líder do BES só aceitou falar sobre o alegado contrato que a ES Enterprises, o famoso saco azul do Grupo Espírito Santo (GES) alegadamente controlado por Salgado, assinou com Zeinal Bava. Na visão da defesa de Salgado e de Bava, é este contrato assinado a 20 de dezembro de 2010 que legitima as transferências 25,2 milhões de euros realizadas entre 2007 e 2012 para o ex-CEO da PT.
Mas não foi por aqui que o juiz Ivo Rosa começou. O magistrado quis saber quando é que Ricardo Salgado teve conhecimento da detenção de José Sócrates no âmbito da Operação Marquês, que se verificou a 21 de novembro de 2014, e que suspeitas sabia existirem naquela altura. No fundo, o juiz queria, com essas perguntas, escrutinar a tese do Ministério Público (MP) de que terá sido a detenção de Sócrates a provocar a assinatura de um contrato que tem a data de 2010 mas que o MP suspeita que tenha sido forjado depois da prisão do ex-primeiro-ministro.
Ricardo Salgado disse que não se recordava da data em que teve conhecimento da detenção nem sabia precisar as circunstâncias da mesma. Sobre os factos que estariam em causa, tinha a ideia de que tinham a ver com o dossiê da PT. Na realidade, em 2014 existia um inquérito autónomo relacionada com a gestão da PT, nomeadamente com os investimentos ruinosos realizados em dívida do GES, mas que só veio a ser incorporado na Operação Marquês.
O juiz Ivo Rosa ainda perguntou a Ricardo Salgado se, em novembro de 2014, receava que pudesse ser envolvido na Operação Marquês, devido à perceção que existia sobre as ligações que o GES tinha ao Governo José Sócrates. O ex-banqueiro foi claro: não — acrescentando que ficou surpreendido com os acontecimentos subsequentes.
A nova versão de Salgado para os fundos transferidos para Bava
Salgado negou ainda, a instâncias de Ivo Rosa, que receasse vir a ser envolvido em investigações criminais por ter feito transferências para o arguido Zeinal Bava. “Isso foram adiantamentos de pagamentos fiduciários”, afirmou. Ou seja, os fundos pertenciam ao GES mas estavam à guarda de Bava numa conta bancária propositadamente aberta para o efeito na Union des Banque Suisses (UBS), em Singapura, em nome de uma sociedade offshore controlada pelo gestor da PT.
A explicação para esses “adiantamentos de pagamentos fiduciários” é que mudou. Se quando foi constituído arguido, em janeiro de 2017, Salgado ligou as transferências de 18,5 milhões de euros realizadas em 2011 com a ida de Zeinal Bava e de uma equipa por si liderada para o Brasil dois anos mais tarde (em junho de 2013) para liderar a Oi/Telemar — agora mudou a sua versão dos acontecimentos.
Em primeiro lugar, Salgado deu agora perante Ivo Rosa uma explicação para a transferência de 6,7 milhões de euros realizada a 7 de dezembro de 2007 — exatamente no mesmo dia em que ordenou também que o saco azul transferisse cerca de 500 mil euros para Henrique Granadeiro, então o líder da PT — e esta nada tem a ver com a ida de Bava para o Brasil. Pelo contrário, encaixa-se na perfeição na versão dada por Zeinal Bava na semana passada.
Diz agora Ricardo Salgado que o acordo que foi assinado a 20 de dezembro de 2010 começou a ser negociado em 2007. Depois da derrota da OPA da Sonae e das mudanças tecnológicas na PT (mudança para a plataforma europeia GSM), Bava encontrava-se numa situação em que tinha contribuído de forma significativa para o sucesso da PT, daí as suas aspirações a ser líder da empresa. Salgado ter-lhe-á negado que o seu nome tivesse sido vetado pelo Governo de José Sócrates — como Bava terá dito no seu interrogatório perante o juiz Ivo Rosa. E disse que o apoiava para sucessor de Henrique Granadeiro.
A transferência de 6,7 milhões de euros realizada a 7 de dezembro de 2007 visava, assim, garantir que Zeinal Bava continuava na PT — tudo porque o gestor ter-lhe-á dito que o seu futuro poderia não passar pela operadora portuguesa. Vendo-o com um estado espírito esmorecido, Salgado pensou nessa operação fiduciária para conseguir mantê-lo na PT, financiando a sua entrada no capital da operadora nacional.
Segundo Salgado, Bava queria um valor a rondar os 15 milhões de euros mas o ex-líder do BES disse-lhe que a disponibilidade daquele momento apenas permitiria transferir um valor entre 5 e os 7 milhões de euros. Jean Luc Schneider, o suíço que era o operacional do saco azul do GES, ficou encarregue, por ordens de Salgado, de perceber que valor seria possível transferir. O ex-banqueiro diz que só soube que tinham sido 6,7 milhões de euros a posteriori. Durante a fase de inquérito tinha admitido que Schneider tinha pedido a si a autorização para fazer tal transferência.
Aliás, acrescentou Ricardo Salgado, só não tinha falado da transferência de 6,7 milhões de euros ao procurador Rosário Teixeira quando foi constituído arguido em janeiro de 2017 porque Jean Luc Schneider não lhe terá dito que tinha executado tal operação e, se o fez, ele não se recordou aquando do interrogatório.
As falhas da nova versão de Salgado e a confiança em Bava
Salgado foi ainda questionado por Ivo Rosa sobre por que razão o contrato assinado em dezembro de 2010 não fazia qualquer referência à transferência de dezembro de 2007. Ou seja, se o contrato tinha sido assinado em 2010, e se o mesmo tinha começado em ser negociado em 2007, então o valor recebido nesse ano deveria constar do contrato.
Ricardo Salgado ficou atrapalhado com a pergunta e reconheceu: “foi uma falha” porque o plafond global de 30 milhões de euros referida no contrato para a alegada aplicação fiduciária, deveria, de facto, incluir os fundos já transferidos. Era uma falha que deveria ter sido vista mas que Salgado não detetou porque tinha muito trabalho no BES.
Outra questão relevante tem a ver com o facto de ter ocorrido um intervalo de três anos entre a transferência de 6,7 milhões de euros para Bava e a assinatura do contrato. Ou seja, o ex-líder da PT recebeu uma transferência milionária e guardou o dinheiro durante três anos sem que tivesse assinado qualquer documento que desse segurança jurídica ao GES. O juiz Ivo Rosa insistiu: tinha de haver uma grande confiança para serem transferidos 6,7 milhões sem um papel assinado. Que garantias existiam para o caso de Bava não restituir os fundos?
Ricardo Salgado disse que a operação revela uma confiança mútua muito grande mas que, se soubesse o que sabe hoje, teria passado esse acordo para escrito. Ivo Rosa quis saber se foi ponderada essa ideia para prevenir qualquer imprevisto, tendo Salgado respondido negativamente. Havia a necessidade de fazer o acordo com pressa para garantir que Zeinal Bava ficava na empresa, argumentou o ex-banqueiro.
Enfatizando que sempre teve “grande consideração pelo sr. Zeinal Bava”, Ricardo Salgado teve de confirmar e analisar o contrato em papel assinado entre a ES Enterprises e Zeinal Bava a pedido de Ivo Rosa. Não só confirmou que aquele era o acordo, como confirmou os seus termos: os 25,2 milhões de euros transferidos para Bava só seriam investidos na aquisição de cerca de 5 milhões de ações da PT no momento em que a empresa fosse 100% privada — momento que estava previsto, segundo o contrato, para 2013.
E rejeitou que o mesmo fosse forjado, dando uma explicação curiosa: se o contrato tivesse sido fabricado, Salgado e Bava não teriam escrito a data de 2013, mas sim 2014 — ano em que a golden share do Estado na PT já tinha sido extinta e a Caixa Geral de Depósitos já tinha vendido a sua participação.
Recorde-se que Zeinal Bava disse ao juiz Ivo Rosa que tinha proposto a Ricardo Salgado, numa reunião que terá ocorrido entre outubro e novembro de 2007, que o BES financiasse a sua entrada como acionista de referência da PT com uma “participação material”. “Queria ser capitalista” e ter um lugar à mesa do Conselho de Administração, afirmou Bava. A versão agora apresentada por Salgado corrobora essa tese.
O lapso e os encontros com Bava em 2013 e 2014
Pelo meio, Ricardo Salgado cometeu um lapso ao afirmar que teria sido Zeinal Bava quem teria tido a ideia de utilizar a ES Enterprises, uma sociedade secreta que nem a família Espírito Santo, com a exceção de Ricardo Salgado, sabia que existia. Deu essa informação errada mas corrigiu-a mais à frente durante o seu depoimento, afirmando que tinha sido Jean Luc Schneider a escolher aquele é conhecido como o saco azul do GES.
Em dezembro de 2010, os temos do acordo assinado com Zeinal Bava passaram a incluir uma equipa executiva — a tal primeira versão que Ricardo Salgado tinha dado a Rosário Teixeira. De acordo com as declarações prestadas ao juiz Ivo Rosa, o negócio da venda da Vivo e consequente compra da participação da Oi/Telemar terão levado Bava a considerar a hipótese de entrar nesse acordo fiduciário uma equipa de quadros na PT que iriam com ele para o Brasil para o ajudarem a liderar a nova operadora brasileira da PT.
As 10 perguntas que o juiz Ivo Rosa deve fazer a Ricardo Salgado
Sabia quem era essa equipa, terá questionado Ivo Rosa. Salgado disse que Bava deve ter-lhe fornecido dados, mas nunca os viu. “Tinha toda a confiança nele”, repetiu Ricardo Salgado.
Uma coisa é certa, confirmou o ex-banqueiro: foi ele, Salgado, quem deu ordens para Jean Luc Schneider transferir em 2011 mais 18,5 milhões de euros, tendo admitido que Zeinal Bava deu-lhe os dados da sua conta na UBS de Singapura e transmitiu-os a Schneider.
Mais tarde, em 2013 e em 2014, Ricardo Salgado admitiu ter tido dois encontros com Zeinal Bava. O primeiro ocorreu na sede do BES a 28 de maio de 2013 — poucos dias antes de ser anunciado que seria o líder da Oi/Telemar — por iniciativa de Bava. O gestor entendia que tinha de devolver os fundos transferidos pela ES Enterprises e foi aconselhar-se com Salgado mas o líder do BES disse-lhe para não o fazer porque, como os fundos deviam ser investidos na PT, e ia assumir a Oi, estava a exercer funções dentro do âmbito e espírito do contrato. Devia continuar com os compromissos aplicando os fundos no novo projeto da Oi/Telemar, terá explicado Salgado.
Apesar de várias falhas de memória ao longo da inquirição, Ricardo Salgado conseguiu lembrar-se do dia exato de uma reunião ocorrida seis anos antes, o que suscitou a curiosidade de Ivo Rosa. O encontro estava registado numa agenda, explicou Salgado.
Depois de sair do BES em 2014, continuou o ex-líder do banco, perdeu completamente o contacto com a situação mas, tanto quanto sabe, os fundos foram restituídos.
No final do interrogatório, o juiz Ivo Rosa ainda disse que outros arguidos, como José Sócrates, Henrique Granadeiro e Hélder Bataglia, tinham requerido a abertura de instrução para contestarem os facto que lhe são imputados por alegada ação de Ricardo Salgado. O ex-líder do BES, contudo, recusou falar sobres os factos relacionados com esses arguidos que constam da acusação.
Apenas estava ali para falar sobre o contrato que tinha sido assinado entre a ES Enterprises e Zeinal Bava, argumentou. Nada mais.