910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

Rui Oliveira/Observador

Rui Oliveira/Observador

Richard Zimler: “A grande doença em Portugal é ter medo da opinião dos outros”

Depois de lançar o seu 13.º romance, Richard Zimler ainda não pensa no próximo livro. Em entrevista, fala de uma infância onde a rua era o escape, de descobertas e insónias, de legumes e da eutanásia.

O dia é de alerta laranja devido ao mau tempo, mas na casa de Richard Zimler não há sinais de temporal, apenas alguma desarrumação. “Isto está tudo desarrumado, desculpem-me”, diz, enquanto segura uma caneca azul com chá e se senta confortavelmente descalço no sofá da sala. Nas paredes há quadros pintados à mão, peças de escultura e estantes cheias de livros, no chão há uma guitarra clássica e um tapete com história.

Recorda a família difícil, a infância atribulada, onde a rua e o desporto eram escapes, a vontade de sair de Nova Iorque e a descoberta da sua homossexualidade em São Francisco, na Califórnia. Apaixonado pela mitologia, matéria “que lida com os assuntos mais importantes da nossa vida de uma forma simbólica”, estudou religião comparada e mais tarde foi empregado de mesa num restaurante húngaro, estafeta e secretário na Victoria’s Secret. Ainda chegou a estudar música, mas foi no jornalismo que conheceu as ferramentas da escrita, o poder das palavras, o ritmo das frases e as técnicas para pesquisar uma boa ideia.

No verão de 1990 chega a Portugal com Alexandre Quintanilha, o seu marido, e é no Porto que quebra as barreiras de uma adaptação difícil, começa a dar aulas e ganha raízes. Queria ser escritor, explorar a ficção e materializar toda a sua imaginação em livros. Começou pelos contos e lançou o seu primeiro romance, O Último Cabalista de Lisboa, em 1996 em Portugal, depois de ter sido recusado por 24 editoras americanas. Garante que o livro foi um milagre que lhe mudou a vida e que o sucesso o encheu de confiança, mas também o deixou confuso.

A capa de "A Aldeia das Almas Desaparceidas", de Richard Zimmler (Porto Editora)

Subindo as escadas em formato caracol, chegámos ao lugar onde Richard Zimler se senta todos os dias, durante várias horas, numa cadeira com almofadas perante uma secretária arrumada, onde em cima de uma pilha de dicionários está um computador portátil. É lá que escreve, quase sempre durante o dia, num processo criativo solitário capaz de o fazer esquecer de tudo e de incorporar as personagens que inventa. Através de uma escrita disciplinada, rigorosa e cruel, canaliza inquietudes, raivas e inconformismos, abordando temas como a violência religiosa, as minorias, as desigualdades ou a intolerância. Com um entusiasmo profundo sobre as injustiças do mundo, tenta dar voz aos que não a têm e no seu mais recente livro, A Aldeia das Almas Desaparecidas, força-nos mais uma vez a não esquecer os crimes contra a humanidade.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Escreveu sete livros infantis – o último, A Cegonha Sem Vergonha, foi lançado em outubro — ganhou vários prémios literários, nacionais e internacionais, e levantou a bandeira de causas como o casamento homossexual, a luta pelo fim da violência contra as mulheres ou a legalização da eutanásia, sem medo das consequências, das represálias ou dos insultos nas redes sociais. Aos 66 anos, Zimler não perde a esperança nos outros e a capacidade de sorrir, a expressão no olhar e a liberdade de viver de forma autêntica. Quando não está a trabalhar, gosta de fazer crochet, tocar guitarra, cantar, observar os pássaros, viajar e cozinhar, o amor parece ser sempre o seu motor e a principal razão para não acreditar em grandes tempestades.

"Quando escrevo entro numa espécie de transe, esqueço-me de onde estou."

Rui Oliveira/Observador

Nasceu em Nova Iorque, como foi a sua infância, a sua casa e a sua educação?
A minha mãe era bioquímica, o meu pai estudou direito, mas nunca exerceu, e acabou por ser publicitário. Nasci em 1956 num bairro pacato, nos subúrbios de Nova Iorque, chamado Roslyn Heights, e naquela altura, muito pouco interessante. As casas eram simpáticas, mas não havia teatros, livrarias ou cinemas, levou muito tempo até essa zona ganhar oferta cultural. Tive uma infância por um lado maravilhosa porque naquela época os pais não tinham medo das crianças caírem ao chão, não havia a ideia de que todos os estrangeiros eram pedófilos, saíamos da escola e íamos para a rua brincar, andar de bicicleta, jogar futebol, basebol ou basquetebol, só chegávamos a casa para jantar. A parte infeliz da minha infância prendeu-se com o facto de os meus pais não se entenderem, havia muitas discussões e discussões violentas. O meu pai era um homem azedo com uma raiva interior quase invisível, gritava connosco sem razão, dava-nos bofetadas na cara sem razão e claro que tinha medo dele. Ele não sabia a diferença entre medo e respeito, não entendia que não é através de bofetadas e gritarias que uma criança vai respeitar o pai.

Era por isso mais ligado ou mais parecido com a sua mãe?
Sim, sempre tive uma ligação mais forte com a minha mãe, embora também fosse uma pessoa muito complicada, passou por uma depressão clínica em que não se vestia, não saía de casa e tinha medo de tudo o que era exterior. Sempre que saía da escola, pensava que podia chegar a casa e ver a minha mãe morta, tinha medo que ela se suicidasse.

Teve consciência disso com que idade?
Muito cedo, com oito ou nove anos, as crianças percebem as coisas. Quando ela já era velhinha, confessei-lhe este meu medo e ela admitiu que eu tinha razão, que isso poderia mesmo acontecer e que ela tinha esses pensamentos. Tenho duas fotografias dela que nunca olho, mas se lhe mostrasse via a cara de uma pessoa sem esperança, sem luz e sem vida, completamente perdida, custa-me muito ver aquelas imagens. Levou muito anos até a minha mãe recuperar, acho que só o conseguiu fazer depois da morte do meu pai. É triste, mas muito comum em casamentos que não funcionam haver essa liberdade e esse espaço para pensar: “bem, agora posso fazer a minha vida sem críticas constantes do meu marido ou da minha mulher”. Sou o mais novo de três irmãos, o do meio morreu com 35 anos com SIDA e o meu pai morreu um ano depois, foi um período incrivelmente difícil para mim e para a minha mãe.

Dava-se bem com os seus irmãos?
Não era especialmente ligado a nenhum deles, eram pessoas muito difíceis e diferentes de mim. Ainda hoje o meu irmão mais velho é muito egoísta, não tenho contacto com ele há uns 15 anos.

Ao ter nascido numa família tão complicada, e ter tido noção disso tão cedo, teve logo vontade de sair daquele lugar?
Sem dúvida. Quando era criança fazia muito desporto, fui considerado o melhor atleta da minha escola primária, mas em parte fazia aquilo para poder fugir da casa, era um escape. Sabia instintivamente que tinha de sair daquela situação e assim que foi possível, aos 17 anos, fui para uma universidade a 800 quilómetros de casa, queria distanciar-me daquilo tudo.

Começa por estudar religião comparada porque sempre gostou de mitologia. Perceber o passado é importante para entender o presente e perspetivar o futuro?
Sim, a mitologia lida com os assuntos mais importantes da nossa vida de uma forma simbólica. Porque estamos aqui? Qual é o nosso propósito? Porque é que coisas negativas acontecem? O que é a traição, a crueldade, a paixão, o amor, a amizade ou o sexo? A mitologia lida com tudo e isso fascinava-me, comecei com a mitologia grega, depois a nórdica, adorava a possibilidade infinita de nos transformamos em árvores, de imaginar um deus brincalhão, de inventar as minhas próprias histórias e fantasias. As regras da religião não me interessam minimamente, não quero que alguém determine o que devo fazer com a minha vida, o que devo dizer, como me devo comportar, o que devo comer, que papel deve ter o homem ou a mulher. Respeito quem queira, tenho muitos amigos rabinos, são pessoas fantásticas, mas quando começam com sermões digo logo que não. A minha família era judaica, embora os meus pais não fossem propriamente religiosos, apenas a minha mãe praticava alguns rituais na altura do Natal.

"As pessoas cá não sabiam o que acontecia no Japão, havia apenas uma loja na baixa que vendia jornais estrangeiros, existiam três restaurantes chineses horríveis, duas pizarias medíocres, um restaurante indiano caseiro e mais nada."

Como é que depois vai parar ao jornalismo?
Depois de tirar o curso de religião comparada, mudei-me para a Califórnia, queria viver num sítio mais cosmopolita e sofisticado para experimentar a minha sexualidade.

Como assim?
Suspeitava que que era homossexual, tinha algumas relações com mulheres e homens, mas não sabia. Li um artigo no The New York Times que dizia que em São Francisco não havia regras, uma pessoa podia ser homossexual, cowboy, basquetebolista, ator ou músico, então decidi ir para lá, com 21 anos, 500 dólares e uma grande mala. Fui sem emprego e sem apartamento.

Foi com medo?
Não, apenas com algum receio e nervosismo. Sabia que era a coisa certa para mim naquele momento, estava muito entusiasmado porque ia viver a minha vida como queria e aquele era o sítio onde isso era possível. Arranjei logo trabalho como empregado de mesa num restaurante húngaro, era um sítio muito turístico com uma vista espantosa para a baía, adorei lá estar. Mais tarde comecei a estudar música. Ouvia muito Beatles e Rolling Stones, fui amigo do saxofonista dos Stones, o Bobby Keys, começámos a falar por e-mail quando descobri que ele tinha feito uma música com o título do meu primeiro romance, O Último Cabalista de Lisboa. Adoro música, toco guitarra quase todos os dias, canto mal, mas adoro cantar. Como não tinha talento suficiente, mudei de trabalho e fui parar à Victoria’s Secret, onde trabalhei como secretário, escrevia para os designers, livros de encomendas e relatórios, estive lá um ano e adorei. Durante esse período sabia que não podia fazer uma carreira como secretário ou estafeta, como sempre adorei ler e escrever, pensei apostar nessa minha vertente.

O que escrevia nessa altura?
Pequenos artigos e algumas críticas de música para um jornal local, mas sabia que queria escrever ficção. Consegui entrar na Stanford University, uma das melhores do mundo, conseguia ir lá apenas três dias por semana porque eu e o Alexandre estávamos a viver na Califórnia. Depois consegui uma bolsa para trabalhar numa agência de notícias em Paris, estive lá quatro meses e adorei. No fim desse estágio aceitei o desafio de dirigir o departamento de comunicação de uma empresa de distribuição em São Francisco, fazia uma revista do início ao fim, lidava com fotógrafos e designers, foram quatro anos incríveis, mas era tudo muito repetitivo. Pedi a demissão e passei a trabalhar como jornalista freelancer ao mesmo tempo que fazia as minhas primeiras tentativas de escrita em ficção. Escrevi cerca de 40 contos, uma dúzia deles foram publicados em revistas inglesas e só em 1989 é que tive a ideia para fazer o meu primeiro romance, O Último Cabalista de Lisboa.

O jornalismo, sendo algo tão factual, era compatível com a ficção que ambicionava explorar?
Queria ser escritor, mas antes tinha de aprender as ferramentas da escrita, como o som, o ritmo, o sentido, a informação, ora o jornalismo é muito bom nisso. Podemos pensar que são campos opostos, mas não, quando estou a pesquisar uma história para um livro, no caso do meu último romance, sobre o efeito da inquisição em Castelo Rodrigo no fim do século XVII, estou a fazer jornalismo de investigação, mas aplicado de uma forma diferente.

"Não sabia falar português, então memorizei 50 substantivos e cinco ou seis verbos no presente para conseguir dar aulas"

Rui Oliveira/Observador

Em agosto de 1990 muda-se com o Alexandre Quintanilha para o Porto. Porquê?
O Alexandre tinha recebido um convite para dar aulas no Instituto Biomédico Abel Salazar, se o convite tivesse surgido de Roma, estaria agora a dar esta entrevista a partir de lá. Quando o meu irmão morreu, percebi que não queria continuar a viver na zona de São Francisco, onde o único tema de conversa nas mesas do café era a SIDA, eu não aguentava mais aquilo. Decidimos mudar, não tínhamos dinheiro e eu não tinha qualquer tipo de relação com a cidade do Porto.

O que sabia sobre Portugal?
Tinha passado férias cá cinco ou seis vezes para estar com o pai do Alexandre, que se mudou de Maputo para Lisboa nos últimos três anos da sua vida. Antes de conhecer o Alexandre já tinha ouvido falar de Portugal na escola, dos descobrimentos e de Vasco da Gama, mas não sabia como era mesmo o país. Portugal, para um jovem americano nos anos 60, era um lugar muito distante, os americanos têm um problema geográfico muito grande, pensam que o mundo começa na Flórida e acaba na Califórnia, não era apenas em relação a Portugal, o resto do mundo parecia não existir. Só agora isso começa a mudar, as pessoas já sabem identificar o país no mapa e até já vão aos Açores.

O que foi mais difícil quando cá chegou?
Tudo [risos], mas principalmente a língua. Fui dar aulas para a Escola Superior de Jornalismo do Porto e disseram-me que podia lecionar em inglês, então preparei-me durante todo o verão para isso, mas no primeiro dia de aulas comecei a falar em inglês e os alunos ficaram a olhar para mim como se eu fosse chinês. Entrei em pânico, não sabia falar português, então memorizei 50 substantivos e cinco ou seis verbos no presente para conseguir dar aulas. Foi incrivelmente stressante, sabia que as minhas aulas eram medíocres, faltava-me a capacidade de comunicação, foi horrível.

A cidade também era diferente, mais cinzenta, fria e fechada.
Lembro-me de escrever cartas para os meus amigos, na altura não havia internet, e no fim assinava o meu nome e acrescentava: “da terra que o tempo esqueceu”. O Porto em 1990 era como os Estados Unidos em 1955, as casas de banho públicas não tinham higiene, os médicos fumavam nos corredores, Portugal estava a evoluir de quatro séculos de atraso, senti-me a voltar atrás completamente. As pessoas cá não sabiam o que acontecia no Japão, havia apenas uma loja na baixa que vendia jornais estrangeiros, existiam três restaurantes chineses horríveis, duas pizarias medíocres, um restaurante indiano caseiro e mais nada.

Nunca pensou em desistir?
Disse ao Alexandre que dava dois anos para aguentar tudo, se ficasse muito deprimido teríamos que nos mudar para outro sítio, podia ser Itália ou França. Foi muito difícil, houve momentos que também o Alexandre pensava se teríamos feito a escolha certa, ele queria construir um instituto de investigação científica, mas existiam muitas barreiras, burocracias e invejas. Portugal era um pais pequeno, muito difícil e fechado. Lá nos conseguimos adaptar, mas nesses dois anos senti que fazia a minha vida como um verdadeiro robô, o meu único pensamento era continuar, aguentar e tentar sobreviver. Não tínhamos grandes amigos, ninguém nos ajudou, ninguém me disse que podia ter um número fiscal muito facilmente, ninguém me explicou nada sobre finanças, transportes ou consultórios médicos, ninguém me disse que quando damos aulas temos de escrever um sumário. Não era maldade, ninguém tinha experiência em lidar com estrangeiros.

"No período mais desesperante, entrava na sala com a mão no bolso, tirava as moedas que tinha para cima da mesa e dizia: a primeira pessoa a falar fica com 10 cêntimos. Perdi 13 euros nessa altura, mas pelo menos tinha mais participação nas aulas."

Já disse que o seu primeiro livro foi um milagre e lhe mudou a vida. Foi recusado por 24 editoras americanas e hoje está traduzido em mais de 20 línguas. Consegue encontrar uma explicação para isto?
Não sabia nada sobre a vida quotidiana portuguesa no princípio do século XVI, por isso precisei de um ano de pesquisa e dois anos de escrita para ter o livro pronto. Estive depois dois anos à espera de resposta às 24 cartas que tinha enviado a editoras americanos, quando chegavam dizia-me que era um excelente livro, dramático, fascinante e verdadeiro, mas que não vai vender. Explicavam-me que havia um problema geográfico, que ninguém naquela época se identificava com Portugal, muito menos com um romance histórico. Fiquei muito deprimido e não sabia o que fazer, até comecei a escrever um outro romance por sugestão de uma amiga. O livro decorria em Portugal, as personagens falavam português, embora eu escrevesse em inglês, então decidi mostrar a uma editora portuguesa. Entrei em contacto com a Quetzal, fui a Lisboa sozinho a achar que iam recusar a minha ideia, cheguei lá a suar de tão nervoso e a única coisa que me perguntaram foi o que queria ver na capa porque o iam publicar. Ao fim de cinco anos da minha vida a trabalhar no livro, nunca tinha pensado na capa [risos].

O Último Cabalista de Lisboa é publicado em 1996 e tornar-se um best-seller, hoje continua a ser o seu livro mais conhecido. O sucesso foi arrebatador? Surpreendeu-o?
Completamente, foi um milagre. Escrevi sobre um evento histórico vergonhoso e completamente esquecido em Portugal e que as pessoas preferiam não saber. Estava preparado para que o livro não vendesse, fiquei obviamente muito satisfeito, mas muito desorientado ao mesmo tempo, afinal ele tinha sido rejeitado por 24 editoras americanas e isso mexeu com a minha confiança, estava confuso. Nessa altura ganhei essa confiança, mas precisava de dinheiro e sabia que não poderia viver apenas da escrita em Portugal, então continuei a dar aulas até 2006. A minha mãe estava muito doente em Nova Iorque e tinha que a visitar várias vezes, a Universidade do Porto recusou dar-me uma licença sem vencimento para a acompanhar e acabei por entregar a minha demissão.

A violência religiosa, as minorias, a descriminação, a perseguição, a crueldade ou a intolerância são temas recorrentes nos seus 13 romances publicados. Porque fala destes assuntos? Há sempre uma mensagem política e social?
Faço-o de uma forma consciente e inconsciente. O meu primeiro objetivo é sempre contar uma história maravilhosa, que vai perturbar e desafiar o leitor, terá momentos de trauma e de alegria, de empatia e de traição, para mim é essencial captar a atenção do leitor, procurar despertar identificação e emoções fortes. Depois fico energizado, acho que faz parte da minha personalidade, quando consigo contar uma história sobre uma injustiça, sobre pessoas esquecidas que não têm voz e que são sistematicamente silenciadas, discriminadas e perseguidas. Se eu não fizer, quem vai fazer? Os primeiros-ministros e os presidentes do nosso mundo podem ser boas pessoas, mas não precisam de mim, têm centenas de biógrafos e propagandistas que vão escrever a história da sua perspetiva. Quem precisa de mim não são os grandes líderes ou os generais que ganham as batalhas, quem precisa de mim são os excluídos e as pessoas mortas em massacres. Não sei explicar porquê, mas fico completamente entusiasmado com estas histórias. Tenho uma personalidade muito subversiva, enquanto uns preferem branquear ou esquecer um crime contra a humanidade, eu fico super entusiasmado ao forçar as pessoas a reconhecer que alguma coisa aconteceu.

Sente isso como uma responsabilidade?
Quando as pessoas me perguntam porque escrevi o meu último livro, Aldeia das Almas Desaparecidas, respondo simplesmente dois nomes de duas pessoas que morreram em Castelo Rodrigo por causa da inquisição. Em Portugal, 99% das pessoas ainda não sabe nada sobre a inquisição, pode perguntar às pessoas do Porto, Lisboa, Faro, Guimarães ou Braga um nome de uma pessoa perseguida pela inquisição, ninguém vai conseguir responder. Uma parte da minha luta é dizer o nome destas pessoas. Aliás, tenho um novo projeto para o Ministério da Educação para que no ensino secundário os alunos façam uma pesquisa sobre uma pessoa que foi presa pela inquisição na sua cidade, sabendo quem era, o que fazia, como era a sua família, o que sonhava acho que inquisição não ficará tão longe de nós. É apenas uma ideia, não sei se irá funcionar, mas era algo tão fácil, sem esta aproximação não conseguimos compreender os crimes contra a humanidade. Falo muito do holocausto nas escolas e nas rádios, faz parte da minha responsabilidade cívica fazê-lo, é importante saber as estatísticas, mas os números não transmitem emoções. Para compreender o efeito do holocausto sobre as vítimas temos de ler os livros do Primo Levi ou de Anne Frank. Quando começamos a compreender a vida quotidiana daquelas pessoas, ficamos abalados e percebemos que estas questões são temas inesgotáveis.

"Revejo-me em todos os meus livros, consigo reconhecer uma frase que escrevi num livro meu, mas nem sempre consigo identificar onde."

Rui Oliveira/Observador

Como é o seu processo criativo?
Sou muito disciplinado, escrevo todos os dias, maioritariamente durante o dia, mas cada dia é diferente. Normalmente começo por ler o que escrevi nos dias anteriores, aperfeiçoando sempre, há parágrafos que foram escritos e reescritos umas 50 vezes, tudo tem que ter o ritmo certo, o som certo e transmitir a informação certa. Por isso é que quando uma editora ou um tradutor muda uma frase, isso pode destruir o ritmo de todo o parágrafo e eu tenho que reescrever. Com 66 anos já não consigo escrever mais que quatro a seis horas por dia, é demasiado exigente, antes escrevia entre oito a dez, era uma loucura. Quando escrevo entro numa espécie de transe, esqueço-me de onde estou. Neste último livro, estava em Castelo Rodrigo, estava na pele da personagem principal, o Isaque Zarco. Escrevi este livro durante a pandemia e era o meu refúgio contra o stress, todo podemos fazer isto porque todos temos imaginação, mas um escritor treina a sua imaginação. Hoje em dia para mim entrar na pele de uma mulher idosa, jovem, um psiquiatra de 70 anos ou uma criança de nove não é difícil, fico no corpo dos meus personagens, sou como um ator. Quando o livro termina, as personagens continuam a existir dentro de mim, continuo a conversar com elas, principalmente quando tenho insónias.

Tem muitas insónias?
Sim, sofro muito de insónias porque tenho uma personalidade obsessiva. Quando estou a escrever um romance, muitas vezes estou na cama a pensar numa cena que não funciona tão bem e não consigo desligar disso.

Acontece a mesma coisa quando escreve livros infantis?
Não, aí o processo é diferente, mais leve.

Escreve romances em inglês e livros infantis em português. Porquê?
Porque adoro desafios [risos]. Nunca tive aulas de português, tudo o que sei aprendi lendo, ouvindo e conversando. Fiz um esforço extraordinário para poder dar aulas, levou-me uns três anos até o conseguir, dar aulas não é fácil, numa língua estrangeira muito menos. Acredito que mesmo as pessoas totalmente bilingues preferem uma língua para escrever, há uma relação e uma identidade diferentes. Escrever livros infantis obriga-me a recuar no tempo, volto a ter sete ou oito anos, tento excluir tudo o que uma criança não compreende, tudo o que vai criar confusão, por isso uso muito o humor, as emoções e os animais para captar a sua atenção.

Escrever para crianças é também fruto da sua experiência como professor?
Sim, quando dava aulas na Escola Superior de Jornalismo fazia perguntas abertas, ninguém queria falar e eu ficava aflito porque não sou propriamente o professor que pega no livro e lê em voz alta. No período mais desesperante, entrava na sala com a mão no bolso, tirava as moedas que tinha para cima da mesa e dizia: a primeira pessoa a falar fica com 10 cêntimos. Perdi 13 euros nessa altura, mas pelo menos tinha mais participação nas aulas. Só mais tarde descobri a razão de existir tanto silêncio nas minhas aulas e isso chocou-me muito, porque mostrava que a mentalidade portuguesa era muito diferente da minha, americana. No final do ano exigia um projeto capaz de ilustrar o que cada um tinha aprendido nas minhas aulas, uma rapariga entregou um trabalho excelente de 17 ou 18 valores, mas ela nunca falava, estava sempre a olhar para baixo e eu julgava que não se interessava minimamente com o que eu dizia. Quando lhe perguntei como era possível ter um trabalho tão bom numa disciplina em que não mostrava qualquer interesse ela respondeu-me que não queria mostrar entusiasmo porque as outras pessoas faziam troça. Aí percebi que a grande doença em Portugal é ter medo da opinião dos outros e fiquei horrorizado. A América não é perfeita, longe disso, mas pelo menos na escola aprendemos a não ter medo de expressar as nossas opiniões e paixões. Escrever para crianças é também uma forma de motivar os jovens a ter uma opinião e, sobretudo, a não ter receio de a mostrar aos outros.

Sente que os seus livros têm algo em comum ou partem todos de momentos diferentes?
Talvez a procura pela identidade e como é que ela muda ao longo da nossa vida. Revejo-me em todos os meus livros, consigo reconhecer uma frase que escrevi num livro meu, mas nem sempre consigo identificar onde.

"Se a Manuela Ferreira Leite ainda pensa que os homossexuais devem ser cidadãos de segunda e não são pessoas normais tem todo o direito de pensar assim. Não estou minimamente interessado em mudar a sua opinião, desde que ela não interfira com a minha liberdade ou com as minhas escolhas."

Tem defendido publicamente causas como o casamento entre homossexuais, a adoção por casais do mesmo sexo, a igualdade de género, o término da violência contra as mulheres ou até a legalização da eutanásia. Porque é que é importante posicionar-se socialmente e politicamente sobre estes assuntos? Não teme que os seus leitores não entendam esse lado?Para mim é importante ter este posicionamento, claro que não exijo isso de outras pessoas e já sei que vou perder 10% dos leitores por falar de certas causas. Já senti isso na pele, recebo muitos insultos sobretudo quando falo de qualquer assunto judaico, principalmente de uma esquerda muito radical que me acusa de crimes contra palestinianos. Eu não sou israelita, é ignorância confundir um judeu com um israelita e confundir a história judaica e medieval com um conflito contemporâneo. Quando alguém me diz que é católico eu também não pergunto se é pedófilo, seria absurdo. Antigamente respondia a essas críticas nas redes sociais, agora já não o faço porque percebi que há pessoas que são ignorantes e não querem ser informadas, orgulham-se mesmo de não ter conhecimento.

Há 12 anos foi uma das primeiras figuras mediáticas gay a casar em Portugal. A esta distância, foi fácil?
Só tenho uma vida neste corpo e tenho de a viver com verdade e autenticidade. Não vou passar 66 anos ou mais viver uma vida que não é minha, mentindo sobre quem sou.  Felizmente vivemos numa democracia, ninguém me pode forçar a fazer isso e quem não gostar, está tudo bem. Não posso forçar as pessoas que têm preconceitos a entender as minhas escolhas. Na altura da legalização do casamento homossexual falei bastante sobre o tema, não para mudar a opinião das pessoas como a Manuela Ferreira Leite, que liderou a campanha contra o casamento gay, ela tem direito a ter sua opinião, mas não pode usar a sua opinião para criar uma sociedade desigual, que negue ou limite direitos civis. Se a Manuela Ferreira Leite ainda pensa que os homossexuais devem ser cidadãos de segunda e não são pessoas normais, tem todo o direito de pensar assim. Não estou minimamente interessado em mudar a sua opinião, desde que ela não interfira com a minha liberdade ou com as minhas escolhas.

Como lida com a passagem do tempo?
Não sou coerente, há dias em que lido bem e outras em que lido mal. Tenho uma vida maravilhosa, fiz o que queria, estou a viver há 44 anos com um homem espetacular que é o melhor amigo, o meu amante e o meu parceiro, sinto que viajamos no mesmo barco, depois de morto vou perder tudo isto e é tão injusto. Queria viver mais, queria escrever mais livros e continuar a viver com o Alexandre. O que acontece depois de morrer? Suspeito que vou desaparecer, mas acredito que há uma forma de reencarnação.

Pensa muito na morte?
Sim, sempre pensei muito na morte, é uma das razões pelas quais não quero desperdiçar a vida e a tento viver com verdade. As pessoas que vivem uma mentira têm que negar que irão morrer, seria demasiado penoso que a única oportunidade de explorar as nossas capacidades fosse assim desperdiçada. Gostaria de pensar menos na morte, confesso. Não sei como gostaria de morrer, é-me difícil pensar nisso, sei que não gostaria de sofrer, disso tenho a certeza, daí o meu apoio para a legalização da eutanásia.

"Não quero que este seja o meu último livro, mas nunca sei se efetivamente será."

Rui Oliveira/Observador

O que gosta de fazer quando não está a trabalhar?
Faço golas em crochet, toco guitarra, canto, observo pássaros e cozinho muito no micro-ondas.

Como assim?
Em casa somos vegetarianos, só comemos frango e peixe fora de casa, e adoro fazer legumes, como brócolos, espargos ou couve flor cozidos no micro-ondas cozinhados no seu próprio vapor. Cubro-os com película aderente e em sete ou oito minutos estão prontos, ficam com muito mais sabor do que em água a ferver, depois é só misturá-los em aladas ou com esparguete. Gostaria de continuar a jogar basquete, mas não temos campos públicos no Porto, é uma pena, tenho de conversar sobre isso com o presidente da Câmara.

Já pensa no próximo livro?
Não. Este último tem dois volumes e levou-me quatro anos e uns meses a escrever, fiquei completamente desfeito e exausto. Para já não quero pensar noutro tema, se começar a pensar nisso chegam logo as insónias. Sempre que me surge uma ideia eu afasto-a, não quero fazer nada por agora. Não quero que este seja o meu último livro, mas nunca sei se efetivamente será.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.