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Rio é igual a Sá Carneiro? A história e as lições da última grande cisão no PSD

Quando foi eleito, Rio lembrou a última cisão no PSD, comparando-se a Sá Carneiro. Mas a História não foi bem assim. Agora que Santana sai, convém saber o que aconteceu. E porquê. Por Miguel Pinheiro.

Desde o início, parecia que Rui Rio queria repetir a História. Aliás, se olharmos bem para o calendário, não foi desde o início: foi desde antes do início. Quando já tinha sido eleito mas ainda não assumira a liderança do PSD, Rio deu uma entrevista à RTP durante a qual, confrontado com a oposição interna, lembrou que, no seu tempo, Sá Carneiro “perdeu meio grupo parlamentar” numa cisão traumática: “Era a mesma coisa que daqui por dois meses metade do grupo parlamentar demitir-se e sair do partido”.

Não foram dois meses, foram oito. E não foi metade do grupo parlamentar, foi apenas, para já, Pedro Santana Lopes, que nem sequer é deputado — se bem que, como se sabe, uma parte substancial do grupo parlamentar social-democrata resiste a Rio, oscilando entre a sombra e a comunicação social. Mas, com esta saída de Santana, toda a gente começou subitamente a falar, como Rui Rio, da última cisão no PSD. Há, porém, um problema. Como se percebeu pelas declarações à RTP, Rio  sente que, com esta divisão no partido, está, de alguma forma, a encarnar o espírito de Sá Carneiro — Sá Carneiro foi contestado e Rio é contestado; logo, Rio é igual a Sá Carneiro.

Mas a História é ao contrário. Se olharmos para os factos, percebemos que a cisão de 1979 aconteceu por razões exactamente opostas às que estão a dividir o PSD hoje em dia. Os críticos atuais atacam Rio porque é demasiado elogioso para o PS de António Costa; os críticos de 1979 atacavam Sá Carneiro porque ele era demasiado violento com o PS de Mário Soares. Os críticos atuais atacam Rio porque apoia os acordos de regime; os críticos de 1979 atacavam Sá Carneiro porque não apoiava o “consenso” do regime, que ia dos socialistas ao Presidente Eanes. Os críticos atuais atacam Rio porque admite que a direita funcione como um apoio dos socialistas numa “geringonça” ao centro; os críticos de 1979 atacavam Sá Carneiro  porque insistia que a direita podia — mais: devia — governar sozinha.

A cisão no PSD de Sá Carneiro aconteceu por razões opostas às que estão a dar problemas a Rui Rio

PRODIARIO/ Global Imagens

No início de 1979, começou a tornar-se impossível protelar mais a cisão dos críticos, que ficaram conhecidos pelo nome “inadiáveis”. Os “inadiáveis” próximos do PS já não acreditavam em Sá Carneiro: o Conselho Nacional de 13 e 14 de Janeiro de 1979 decidiu retomar os contactos para um acordo tripartido PSD-PS-CDS, mas as supostas tentativas de aproximação do líder do partido a Mário Soares foram vistas como simples manobras dilatórias destinadas a esconder o verdadeiro objectivo, uma aliança apenas com o CDS. Os “inadiáveis” próximos de Ramalho Eanes já não precisavam de Sá Carneiro: protegidos pela Presidência da República, fizeram várias reuniões, uma delas em Rio Maior, onde conspiraram abertamente pela criação de um novo partido eanista. E os “inadiáveis” que oscilavam entre Soares e Eanes já não podiam com Sá Carneiro: entendiam que ele era o único obstáculo a um gradual e pacífico desbloqueio do sistema político.

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Sá Carneiro não queria saber de gradualismos e estava pouco preocupado em parecer pacífico. No final de 1978, convidou Marcelo Rebelo de Sousa, que hoje se preocupa com a paz à direita mas que na época era outro crítico potencial, para fazer consigo um projecto de revisão constitucional que pretendia acelerar a mudança do regime. Durante mais de um mês, reuniram-se duas a três vezes por semana na casa de Sá Carneiro para prepararem o livro que seria editado pela Dom Quixote em Janeiro de 1979 com o título “Uma Constituição para os Anos 80”.

O resultado foi visto como uma prova de radicalismo: entre muitas outras coisas, a nova Constituição acabaria com a obrigatoriedade de transição para o socialismo, aumentaria a margem de manobra da iniciativa privada, faria alterações na Reforma Agrária, consagraria o referendo, agilizaria as possibilidades de revisão constitucional, extinguiria o Conselho da Revolução e tiraria todo o poder político aos militares. Numa frase: acabaria com a revolução socialista.

Quando chegou a hora de votar, Sá Carneiro ficou à espera dos deputados sociais-democratas, mas, para sua surpresa, dos 73 só apareceram 32. E apenas 27 aceitaram as suas indicações de voto.

Em Fevereiro de 1979, Sá Carneiro preparou-se para o confronto com o seu grupo parlamentar, algo que faz Rio entrar numa escalada de comparações. Ficou decidido num Conselho Nacional que o sentido de voto do partido na Assembleia da República seria sempre definido pela Comissão Política Nacional e não pelos deputados. Na prática, isto forçava os “inadiáveis”, em maioria no grupo parlamentar, a optarem pela submissão ou pela dissidência.

Não era uma verdadeira opção. Até porque os incentivos à cisão vinham de todos os lados: da Presidência da República, que queria liquidar Sá Carneiro e enfraquecer os partidos; do PS, que queria domesticar de uma vez os sociais-democratas; e do CDS, que, através de Adelino Amaro da Costa e de Basílio Horta, mantinha contactos regulares com os “inadiáveis” e imaginava ser finalmente possível encolher o PSD e tornar-se no segundo maior partido português (o sonho de Assunção Cristas não nasceu hoje — como se vê, nasceu ontem).

Antes da AD, o plano de Amaro da Costa era incentivar cisões no PSD que permitissem ao CDS ser o maior partido da direita

Acácio Franco

O pretexto para o confronto seria a apresentação do Orçamento do Estado e das Grandes Opções do Plano pelo governo de iniciativa presidencial que era liderado por Mota Pinto, um histórico do partido que deixara o PSD na sua primeira grande cisão e se aproximara de Eanes. Sá Carneiro já decidira que o PSD se deveria abster, a não ser que o governo aceitasse algumas condições. Logo que isto foi conhecido, percebeu que Mota Pinto o estava a tentar cercar. O primeiro-ministro chamou a São Bento vários dirigentes do partido para que eles convencessem o líder do PSD a mudar de ideias; e enviou Álvaro Barreto, um dos seus ministros, que, além de ser militante social-democrata, mantinha relações de amizade com Sá Carneiro, falar directamente com ele. Chocaram todos contra uma parede.

Perante isto, restava preparar o embate. Na véspera da votação no parlamento, Sousa Franco, um dos líderes dos “inadiáveis”, escreveu um artigo no Correio da Manhã onde defendia que a aprovação do Orçamento e do Plano era uma “questão de bom senso” e que o chumbo seria um “acto irresponsável e reprovável”. No dia seguinte, anunciaria nos corredores de São Bento que “a democracia estava em perigo com a queda de Mota Pinto”.

Sá Carneiro não se impressionou e manteve a sua posição. O PSD iria abster-se, a não ser que o governo aceitasse três mudanças: acabar com o tecto de 18% no aumento da massa salarial, suprimir o imposto extraordinário sobre os rendimentos do trabalho e cumprir a Lei das Finanças Locais. Comunicou pessoalmente essa decisão ao grupo parlamentar e insistiu nestes pontos até aos últimos momentos da discussão na Assembleia da República, a 22 de Março de 1979, num discurso que não foi aplaudido pelos “inadiáveis”.

Quando chegou a hora de votar, aconteceu exactamente aquilo que Rui Rio lembrou na entrevista à RTP. Sá Carneiro ficou à espera dos deputados sociais-democratas, mas, para sua surpresa, dos 73 só apareceram 32. Havia 36 que tinham decidido ficar fora do hemiciclo e cinco estavam ausentes. Dos 32, dois votaram a favor do Plano e outros três, num total de cinco, a favor do Orçamento. Apenas 27 obedeceram a todas as ordens de Sá Carneiro e abstiveram-se nas duas votações. Naquela noite, Mário Soares não resistiu a observar de perto o rosto do seu adversário. Mais tarde, confessaria ter ficado “impressionado”: no meio de um “momento dramático”, ele tinha ficado “imperturbável”.

As cartas de demissão começaram a chegar à sede do partido, como agora chegou a de Santana Lopes. Umas eram mais sucintas, outras violentas: António Rebelo de Sousa (irmão de Marcelo) escreveu contra aqueles que "alimentam o seu ressabiamento pessoal com ódio a tudo o que signifique ponderação".

A seguir, tudo se precipitou. Sousa Franco aumentou a violência dos seus ataques nos jornais. Num artigo publicado a 26 de Março, defendeu ser este o momento de “esmagar politicamente os semeadores de ventos e os palhaços que, com os seus números de circo, vêm perturbar o começo de qualquer trabalho de reconstrução nacional”.

Sá Carneiro reprovou esta “crítica descabelada” e vingou-se no Conselho Nacional da Guarda, no fim-de-semana de 31 de Março e 1 de Abril. Num dos pontos das conclusões, Sousa Franco era convidado a desvincular-se do partido; noutro, era retirada a confiança política à direcção e à comissão permanente do grupo parlamentar.

Fracassaram todas as tentativas de conciliação. Foram três: uma, na véspera do Conselho Nacional, em casa de Cunha Leal; outra, na tarde de domingo; a última, durante um almoço que juntou apenas Sá Carneiro e Magalhães Mota. Ainda houve mais uma reunião com o grupo parlamentar na véspera da cisão, às 10h30 de 3 de Abril – mas já foi um mero pretexto para lamúrias, sem qualquer hipótese de reconciliação. Os “inadiáveis” queixaram-se de estarem a ser vítimas de “perseguições, insultos e calúnias”.

Só restava, de facto, uma saída para a crise: 37 deputados do PSD pediram no parlamento a sua passagem a independentes. No grupo incluíam-se António Rebelo de Sousa (irmão de Marcelo), Sousa Franco, Cunha Leal, Sérvulo Correia e Magalhães Mota (um dos três fundadores do partido). Seguir-se-iam vários outros militantes em todo o país, como Jorge Miranda, Rui Machete, Ernâni Lopes e António Leite de Castro. E ainda 65 jovens da JSD.

As cartas de demissão começaram a chegar à sede do partido, como agora chegou a de Santana Lopes. Umas, mais violentas: António Rebelo de Sousa escreveu contra aqueles que “alimentam o seu ressabiamento pessoal com ódio a tudo o que signifique ponderação” e acusou Sá Carneiro de ter transformado o PSD num “feudo”. Outras, mais sucintas: Rui Machete limitou-se a justificar a sua decisão com a vontade de evitar a “quebra” da sua “dignidade” e “coerência política”. Outras ainda, como a de Magalhães Mota, absolutamente secas: “Nos termos legais e estatutários aplicáveis, venho comunicar por este meio a minha renúncia à qualidade de membro do Partido Social-Democrata, de que sou militante n.º 2”.

Magalhães Mota (na foto, entre Cunhal e Soares) foi um dos dissidentes de 1979. Tinha sido um dos três fundadores do PSD

Casa Comum - Fundação Mário Soares

Por razões afectivas, esta última carta foi a que mais lhe custou ler. Sá Carneiro desabafou com a secretária, Conceição Monteiro:

– O Joaquim, Conceição, o Joaquim também… Não esperava isto dele.

Com isto, restavam apenas 36 deputados a Sá Carneiro: o seu grupo parlamentar era subitamente menor do que o do CDS e menor do que o dos “inadiáveis”. Começou imediatamente a ser escrito o seu obituário político. Ninguém acreditava que ele sobrevivesse a uma dissidência desta dimensão. Os rumores de uma “actividade exuberante” no parlamento insistiam na formação de um novo partido presidencial, promovido por Eanes e Mota Pinto: além dos “inadiáveis”, incluiria alguns socialistas e até alguns centristas. Já circulavam nomes para esta formação política: chamar-se-ia Partido Reformador ou Partido Nacional Independente. E até houve planos para mudar a mobília: o partido eanista sentar-se-ia no hemiciclo entre os deputados do PS e os que restassem do CDS, deixando, provocatoriamente, o PSD de Sá Carneiro na extrema-direita da sala.

Depois da cisão, Sá Carneiro estava sozinho na sede do PSD. Só aparecera Santana Lopes. Quando Snu lhe telefonou. preocupada, respondeu: "O que é que queres que eu te diga? Nunca estive tão sozinho, mas nunca tive tanta certeza de que tenho razão".

Estas fantasias eram levadas a sério por muita gente, convencida de que tinha chegado o fim do líder do PSD. O próprio sentira isso mesmo poucas horas depois da votação do Orçamento do Estado do governo Mota Pinto. A seguir a ser abandonado pelos seus próprios deputados, que recusaram sentar-se ao seu lado no hemiciclo, ficou sozinho. Na manhã seguinte, chegou à sede do partido e apenas tinha à sua espera Conceição Monteiro. Balsemão telefonou, para saber se Sá Carneiro queria fazer alguma declaração que pudesse aparecer na primeira página do Expresso. E Lucas Pires passou por lá para lhe dar um abraço – do PSD, ninguém. Só apareceu Pedro Santana Lopes, que trabalhava de perto com Sá Carneiro e agora está no centro de uma outra divisão no partido. No pesado silêncio da sede, o telefone tocou. Era Snu Abecassis, preocupadíssima.

Conceição Monteiro passou a chamada para o gabinete e Santana Lopes preparou-se para sair e deixar Sá Carneiro à vontade. Ele fez-lhe sinal para que ficasse. Atendeu. Do outro lado, Snu perguntou-lhe como é que estava tudo. Fez uma pausa e respondeu:

– O que é que queres que eu te diga? Nunca estive tão sozinho, mas nunca tive tanta certeza de que tenho razão.

E tinha. Acabara de perder metade do seu grupo parlamentar, mas aquilo que soava a humilhação era afinal uma demonstração de força. A cisão dos “inadiáveis” parecia catastrófica, mas valia zero. Poucos meses depois, Sá Carneiro faria o contrário daquilo que Rui Rio pretende hoje: uniria toda a direita na Aliança Democrática; e, antes que 1979 chegasse ao fim, conseguiria a primeira maioria absoluta da democracia. O PSD podia, finalmente, governar sem o PS.

Percebe-se que Rui Rio goste desta história — há coragem, heroísmo e superação. Mas convém contá-la bem.

Miguel Pinheiro é autor da biografia “Sá Carneiro” (Esfera dos Livros) e parte substancial deste texto é uma adaptação de um capítulo do livro.

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